O geógrafo David-Harvey - Marcos Alves/Agência O Globo
Publicado originalmente no site da revista ÉPOCA, em 18/09/2018
David Harvey: "É o dinheiro quem controla o processo
democrático, não as pessoas"
O geógrafo britânico, autor de "A loucura da razão
econômica: Marx e a economia do século XXI" (Boitempo), defende reduzir
drasticamente a influência do mercado na sociedade
Por Ruan de Sousa Gabrilel
1. O que é a “loucura da razão econômica”?
Segundo a análise marxista, o capital é uma forma
político-econômica contraditória: promete liberdade e entrega escravidão;
promete crescimento e entrega crise e destruição. (Karl) Marx expôs essas
contradições. A maioria dos economistas não gosta de contradições. Eles
acreditam que a economia tende a um equilíbrio benéfico, embora forças externas
possam perturbá-la. Marx afirma que a economia não tende ao equilíbrio, mas ao
acirramento das contradições, o que produz as crises, que são momentos de reconfiguração
do capitalismo. Marx fazia piada com os economistas: quando enfrentam uma
crise, eles geralmente dizem que isso não aconteceria se a economia se
comportasse de acordo com os manuais.
2. Como resolver essa “loucura racional” (ou “razão louca”)
da economia dentro dos limites da democracia e do livre mercado?
Não há solução possível dentro do capitalismo, porque o
capital é uma contradição. E de que tipo de democracia você fala? Os Estados
Unidos são uma democracia controlada pelo dinheiro. A Suprema Corte diz que o
financiamento privado de campanhas eleitorais é liberdade de expressão. Isso
significa que milionários podem comprar eleições. (O escritor) Mark Twain
(1835-1910) disse que os EUA têm o melhor Congresso que o dinheiro pode
comprar. É o dinheiro quem controla o processo democrático, não as pessoas. É
difícil ter uma democracia genuína se as eleições são tão caras. E, atualmente,
vemos cada vez mais o dinheiro apoiando o autoritarismo, que esvazia as
democracias parlamentares e concentra todo o poder no Executivo.
3. Qual a solução?
Agora não há um Palácio de Inverno para invadirmos, mas
podemos pensar um sistema em que os recursos econômicos sejam geridos
democraticamente. O neoliberalismo transformou tudo em mercadoria — até o
conhecimento! Estendemos os limites do mercado mais e mais, e enormes segmentos
da população, que não têm recursos, não podem comprar educação, moradia digna,
crédito, nada. Precisamos “desmercadorizar” a saúde, a educação, a moradia
popular e a cesta básica. Uma sociedade decente garantiria saúde gratuita para
todos. Moradia popular não pode ser uma mercadoria. Estamos falando de uma
plataforma anticapitalista, o que, obviamente, não significa que vamos romper
com a economia capitalista amanhã. É um processo de “desmercadorização”.
4. Por que o senhor critica as propostas de renda básica
defendidas, nos EUA, pelo Black Lives Matter (movimento social de combate à
violência contra negros) e pelo senador socialista Bernie Sanders?
Há vários problemas com essas propostas. Alguns na direita
querem a renda básica porque sabem que a automatização e a inteligência
artificial reduziram as possibilidades de emprego e que, por isso, há um grande
número de pessoas desempregadas que não participam do mercado consumidor. O
pessoal do Vale do Silício sabe que a diminuição dos empregos vai encolher o
mercado consumidor. A renda básica é a solução deles para preservar o mercado:
dê dinheiro a todos para que eles possam ficar no sofá e assinar a Netflix. O
problema com os progressistas que defendem a renda básica é que eles ignoram
que as pessoas estão preocupadas em ter vidas significativas, trabalhos
significativos. Não trabalhar pode ser extremamente negativo. Além do mais, se
você dá dinheiro para as pessoas, os aluguéis vão subir. A renda extra vai ser
imediatamente tomada pelos proprietários de apartamentos, pelo comércio e pelas
empresas de cartão de crédito.
5. O senhor já defendeu o crescimento zero e que a
prioridade deve ser a distribuição de renda, e não o crescimento da economia.
Os candidatos à Presidência do Brasil defendem a retomada do crescimento
econômico. Eles deveriam reavaliar suas prioridades?
Sempre disseram que não há como distribuir renda sem
crescimento econômico. Mas quanto do crescimento econômico dos últimos 30 anos
serviu para distribuir renda? Reformas tributárias como a de Trump, que cortou
impostos dos mais ricos e das empresas, e os programas de ajuste fiscal do
Fundo Monetário Internacional (FMI) redistribuem renda dos pobres para os
ricos. A crise das hipotecas em 2008 redistribuiu a renda da população para os
bancos. Não adianta falar de crescimento, é preciso falar do tipo de
crescimento. A transição para uma economia de crescimento zero se dará no longo
prazo, porque há países que dependem de crescimento econômico. Mas para quem?
Não sou favorável a esse desenvolvimento econômico que vemos hoje, baseado na
construção de condomínios para os ricos.
6. No Brasil, obras públicas e construção civil são usadas
para alavancar o crescimento econômico.
Se construíssem pontes e ferrovias, seria ótimo, mas só
constroem estádios de futebol, condomínios para os muito ricos e shoppings, em
vez de investir em urbanismo. Discordo desse tipo de crescimento econômico.
Nova York cresce muito graças ao mercado imobiliário voltado para consumidores
de alta renda. Ao mesmo tempo, as moradias se tornaram inacessíveis, e a
população em situação de rua cresceu. Infraestrutura é importante, mas não os
elefantes brancos espetaculares que prefeitos adoram construir, embora não contribuam
em nada para o bem-estar da população.
7. Seu trabalho atualiza conceitos marxistas. Ainda podemos
falar em luta de classes num mundo onde o operariado fabril decresce e minorias
raciais e sexuais lideram movimentos sociais?
Luta de classes sempre foi um conceito que precisou ser
entendido em suas muitas nuances. É importante reconhecer que as lutas
anticapitalistas se articulam de diversas maneiras. Nos EUA, o operariado
desapareceu, e as lutas sociais ocorrem menos nos locais de trabalho e mais nas
cidades. Na China, por outro lado, há luta de classes no sentido clássico,
existe um proletariado em ação. É um momento que terá efeitos maciços e
ramificações globais — inclusive para o Brasil. A desaceleração do crescimento
chinês, por causa da dinâmica da luta de classes, vai afetar vocês. No que se
refere às lutas identitárias, muitas estão ligadas a sensibilidades
anticapitalistas. O Black Lives Matter, assim como Malcolm X (militante na luta
contra o racismo nos EUA na década de 60) e Martin Luther King (maior líder do
movimento dos direiros civis dos negros nos EUA), reconhece que luta racial
também é luta de classes — o que, nos EUA, é perigoso. Outros movimentos
identitários, como o #MeToo (contra o assédio e a violência sexual), não têm
essa dimensão classista. Muitas feministas afirmam que também é preciso abordar
e entender a situação da mulher na sociedade por uma perspectiva de classe. A
maioria das lutas sociais pode ter um conteúdo anticapitalista. A perspectiva
anticapitalista é mais ampla do que a perspectiva do proletariado fabril, que
prevaleceu em algumas organizações políticas de esquerda.
Texto e imagem reproduzidos do site: epoca.globo.com
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