A atriz Giovana Bombom, que se identifica como ativista e atua em
filmes do segmento pornografia feminista
Foto: Divulgação
Publicado originalmente no site G1 Globo Pop Arte, em 24/05/2018
Pornô feminista ganha espaço no mercado de filmes adultos do
Brasil: 'Mulheres também gostam de sexo'
G1 falou com atrizes e profissionais do segmento que coloca
a personagem feminina como protagonista das produções, evita estereótipos e
serve de alternativa ao convencional.
Por Cauê Muraro, G1
É o clichê do filme pornográfico. Uma mulher – em geral,
loira, curvilínea, com silicone e maquiagem muito visível – escuta a campainha
de casa. Ao abrir a porta, ela dá de cara com um homem – em geral, musculoso,
tipo galã e entregador (de pizza, por exemplo).
Eles iniciam um diálogo bastante aleatório que dura menos de
30 segundos. Motivo: é hora do sexo. Afinal, os dois estavam ali para isto
mesmo: o ator, na figura do dominador que vai ser satisfeito; a atriz, como a
submissa que mais geme do que fala (palavrão). Tudo para entreter um público
majoritariamente masculino.
A pornografia feminista tem a proposta de ser justamente uma
alternativa a este tipo de filme adulto hegemônimo, conhecido por "pornô
mainstream" (ou "pornô tradicional"). A vertente ganhou força já
a partir dos anos 1980, nos Estados Unidos. Mas, nos últimos tempos, vem
ampliando cada vez mais seu espaço no mercado de filmes adultos.
No lugar de corpos necessariamente esculturais, físicos
imperfeitos. No lugar do sexo sem propósito e do prazer encenado, o realismo.
E, sobretudo, no lugar do homem controlador e da mulher obrigatoriamente
servil, o protagonismo feminino.
Atrizes, profissionais do setor e pesquisadoras do tema
ouvidas pelo G1 atribuem o crescimento do pornô feminista, em parte, aos
recentes movimentos que lutam por igualdade entre gêneros e por respeito e
reconhecimento do papel mulher na sociedade.
"Mulher gosta de sexo também", afirma a atriz Emme
White, de 37 anos, que faz filmes pornôs há três. "O que mulher não gosta
é de ver gemido fake, do sexo sem sentido e sempre visando só o prazer do
homem. A mulher quer ver coisas que ela, de repente, se imagina fazendo."
Maurício Paletta, diretor da Playboy do Brasil, grupo que
controla o canal a cabo Sexy Hot, principal exibidor do país no segmento, diz
que o nicho do pornô feminista "é um negócio que está completamente em
voga, e a gente acompanha essa tendência".
De acordo com ele, o selo Sexy Hot Produções, lançado neste
ano, finalizou até agora 14 das 36 produções previstas para 2018. "Dessas
14, quatro já estão nesta linha [feminista]. Até o final do ano, queremos mais
três, no mínimo", antecipa.
"É uma demanda que vimos, sim, nos nossos assinantes.
Estamos buscando isso da melhor maneira possível, inclusive pautando esse tipo
de filme."
Dentre as características do pornô feminista, estão:
A mulher é protagonista;
A equipe por trás das câmeras (diretora, produtoras etc.)
também é formada por mulheres;
A mulher em cena não é obrigatoriamente submissa (a menos
que seja esse o desejo dela);
Não há preconceito com corpos, mas, sim, variedade de tipos
no elenco, que pode fugir do estereótipo (branca, loira e siliconada, no caso
delas; musculosos, no caso deles);
Filmes com histórias: nada de ir de cara para o sexo sem
contexto (isso não significa que seja uma versão romântica ou inocente do pornô
convencional);
Sexo realista, sem tanta encenação;
Cuidado com a estética da produção (fotografia, figurino,
maquiagem);
Sexo oral nas mulheres tem mais espaço e não precisa ser
rápido;
Mostra a fragilidade do homem (ele pode aparecer como o
submisso, se for o caso);
Filmes que se preocupam em agradar o público feminino, mas
que não são voltados somente a mulheres nem são contra homens;
Os enredos não se limitam a sexo entre mulheres, pois há
sexo variado: hétero, gay, lésbico, trans etc.
Além disso, entre 2006 e 2015 a sex shop canadense Good For
Her promoveu um prêmio chamado The Feminist Porn Awards (espécie de Oscar do
segmento, voltado a produções feministas e trans).
Dentre os critérios de avaliação, estavam: destaque para o
prazer feminino, qualidade técnica, inclusão (de "sexualidades
marginalizadas ou ignoradas"), desprezo por estereótipos e público
variado.
O mote do Prêmio do Pornô Feminista era uma frase da famosa
atriz e performer Annie Sprinkle: "A resposta para o pornô ruim não é
acabar com o pornô... é tentar e fazer um pornô melhor!".
A partir de 2016, o evento mudou seu nome para Toronto
International Porn Festival, que acontece anualmente.
Com a palavra, as atrizes pornôs
Alessandra Maia:
A atriz pornô Alessandra Maia
Foto: Divulgação
Aos 40 anos e fazendo filmes há dez (apareceu em quase cem
produções), Alessandra Maia diz que era "uma atriz extremamente
hardcore".
Ganhadora do Prêmio Sexy Hot, tido como "o Oscar do
pornô nacional", ela recentemente passou a atuar também em produções
feministas.
"São histórias reais [nesses filmes], é o que acontece
na vida: uma pessoa normal, com um biótipo normal, nada de mulher cavalona,
fitness."
Alessandra comemora o fato de ter tido de decorar textos
para uma recente produção desse novo nicho ao qual aderiu. Demorou um mês para
gravar quatro cenas (no pornô convencional, diz que conclui o trabalho em dois
dias):
"Foi uma preparação bem maior, ensaio com um ator
profissional, bastante exercício de posição, nível de emoção. Tem um desgaste
psicológico também".
Para a atriz, o filme pornô feminista "passa por não
ficar só denegrindo a imagem da mulher".
"Nos filmes de antigamente, era só palavrão, baixo
calão. Agora, deu uma melhorada. Porque era disso que o público gostava. Hoje,
já existem outros tipos de público para assistir."
Giovana Bombom:
Giovana Bombom, de 27 anos, faz filmes pornôs há dois.
Apareceu em cerca de 30 produções. "Ainda tem muito essa ideia de que o
homem faz pornô, e a mulher é carne", lamenta.
A atriz, que diz não fazer somente filmes adultos, se
descreve como militante:
"Para eu entrar [no mercado pornográfio] foi difícil.
Falei: 'Não vou apagar minhas raízes para fazer meu nome'. Porque eu estaria
sendo só mais uma de cabelo liso, e não vim para isso. Ainda mais que faço
teatro e cinema negro – isso tem uma ligação com meu pessoal e meu trabalho.
Sou ativista."
Bombom lembra ter ouvido elogios de espectadoras:
"Elas me falam: 'Eu não gostava de pornô. Mas, quando
você começou a gravar, fui assistindo, porque seu cabelo é igual ao meu, o
tamanho dos seus seios é igual ao dos meus'".
Ela arrisca uma explicação para o fato de o público feminino
não consumir habitualmente o pornô convencional:
"Eu já ouvi muitas mulheres falarem: 'Ah, eu não vou
assistir pornô, porque eles colocam uma mulher gostosona, siliconada. E a gente
– que não tem silicone, que tem defeito – vai ficar como? Diminuída'".
Emme White:
Emme White nas gravações de 'Urbex fuckers'
Foto: Divulgação/Sexy Hot
"O pornô feminista é aquele que, sobretudo, respeita a
vontade da mulher e dá mais atenção ao prazer da mulher. Não é aquele filme em
que a mulher vai chegar e focar só no prazer do homem", compara Emme
White.
Também ganhadora do Prêmio Sexy Hot, a atriz faz filmes
tradicionais e feministas. "Feminismo é a liberdade da mulher para fazer o
que quiser e como quiser", opina.
"As feministas radicais que são contra o pornô, veem o
pornô com maus olhos. Porque muitas vezes a mulher está ali [no filme] submissa
e cedendo à vontade dos homens. Mas existem muitas mulheres que, mesmo sendo
feministas, gostam de um sexo assim: mais submisso."
Emme conclui: "Eu me considero feminista. E quero ter
essa liberdade de poder ser atriz pornô sem ser julgada nem condenada. Eu me
sinto livre em frente às câmeras para fazer sexo. Gosto de sexo e não tenho
vergonha de me mostrar fazendo sexo."
A diretora de filmes pornôs
Diretora de filmes pornográficos, Mayara Medeiros, a May,
começou a trabalhar em 2006 na produtora XPlastic. Inicialmente, atuava como
produtora, mas há três anos passou a dirigir.
"[No mercado pornô] Tem mais demanda e mais mulheres
trabalhando. Antes, era muito difícil ter aceitação de meninas", lembra.
"Quando comecei, aos 18 anos, eu era a única menina
atrás das câmeras que eu conhecia. Hoje, já tem outras. Poucas, mas tem mais,
já não ando sozinha. Algumas se sentem mais à vontade. E quem está assistindo
também."
A diretora diz que "o lugar da sexualidade sempre
pertenceu aos homens e sempre foi negado às mulheres": "Qualquer
mulher que quisesse ser dona da própria sexualidade era considerada bruxa e
puta, no pior sentido da palavra".
Em seus filmes, May procura "colocar a fragilidade
masculina, um tabu". "Do mesmo jeito que a gente quer descontruir a
imagem da mulher subjugada durante o sexo o tempo todo, nenhum homem precisa
ser o super-herói o tempo todo", afirma.
"Essa fragilidade masculina pode aparecer em vários
takes: desde um personagem que está em dúvida se quer ou não fazer alguma coisa
ou até mesmo mostrar um take do cara de pau mole. Num filme tradicional, isso
nunca vai acontecer (risos)."
A diretora dá um exemplo prático da abordagem que propõe:
"Sabemos que um fetiche masculino é ver duas mulheres
[fazendo sexo]. Mas não vamos colocar uma delas com a unha gigante. Porque não
faz sentido, nunca vai acontecer, vai machucar a outra (risos). Numa produção
mainstream, é isto que a gente vê: duas mulheres esculturais, com corpo
tradicional, aquilo que se entende porr sexy – e elas se pegando com as unhas
enormes. Gente, essa unha vai se perder lá (risos)."
Mas May faz uma ressalva:
"Não acredito que nenhum produto pode ser caracterizado
como feminista. Lógico que fica fácil para o público entender quando a gente
coloca nomenclatura nas coisas. Mas acho muito mais interessante colocar que é
uma 'produção feita por mulheres'. Não acredito que exista uma caneta
feminista, restaurante feminista, estúdio de tatuagem feminista... Colocar que
a gente está fazendo pornô feminista – parece que é uma categoria numa gôndola.
Isso deveria ser o comum, só que infelizmente não é".
Feminismo e pornografia: história
A psicóloga Maria Eduarda Ramos é autora da tese
"Pornografia, resistências e feminismos: estratégias políticas feministas
de produções audiovisuais pornográficas", defendida em 2015 na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
"A 'guerra dos sexos' ou 'sex war' teve como cenário os
Estados Unidos e teve importância para a história da pornografia feminista. Não
há um feminismo, mas feminismos. Nesses, há ideias diferentes sobre a questão
de pornografia", lembra a pesquisadora.
"Nos anos 1970 e 1980 (nos EUA), feministas
reivindicavam leis antipornografia, argumentando que a pornografia era a causa
da violência contra mulheres. Por outra parte, algumas feministas contra-
atacavam esses discursos e apoiavam alternativas sexuais que implicavam na
defesa do prazer (sex positive). Essa discussões permanecem entre feministas
atualmente, encontram-se grupos das duas vertentes nas redes sociais."
Maria Eduarda cita que "entre as que defendiam o prazer
e a possibilidade de a pornografia ser utilizada e inventada de outra forma
como luta de liberdade sexual estavam feministas militantes, estudiosas,
lésbicas, pessoas do movimento sadomasoquista, prostitutas, atrizes
pornôs".
Em 1984, estrelas do segmento, como Annie Sprinkle, Candida
Royalle, Veronica Vera, Gloria Leonard e Veronica Hart, formaram o grupo Club
90 para discutir a seguinte questão, dentre outras: "Há uma pornografia
feminista?".
Como definir 'pornografia feminista'?
A diretora sueca de filmes pornôs Erika Lust, em foto de
perfil no Facebook
Foto: Divulgação
De acordo com Maria Eduarda Ramos, "não há critérios ou
alguém que diga quando um filme é feminista ou não".
O termo "pornô feminista", portanto, se aplicaria
a filmes definidos assim por seus seus diretores e diretoras. E "também
filmes pornôs que podem nos fazer refletir questões a partir de ideias feministas".
Como exemplo de diretoras que se denominam femininas, a
pesquisadora cita Petra Joy e Erika Lust, a sueca que talvez seja o nome mais
conhecido do mundo neste nicho.
Autora de um livro sobre o tema, Lust deu em 2014 uma
palestra no TED intitulada "É hora de o pornô mudar".
Do site oficial da diretora, consta a seguinte declaração de
princípios:
"Eu prometo criar uma nova onda no cinema adulto. Quero
mostrar toda a paixão, intimidade, amor e luxúria no sexo, onde o ponto de
vista feminino é vital, a estética é um prazer para todos os sentidos, e
aqueles que buscam uma alternativa ao pornô mainstream podem se sentir em
casa".
Maria Eduarda observa que "o feminismo de Lust tem como
sujeitos mulheres brancas, de camadas abastadas, que fantasiam com cenários
luxuosos, etc.". "É válido? Claro, é feminismo com sujeitos
específicos. Mas há outros feminismos que abarcam outros sujeitos, outras
mulheres."
Erika Lust não é unanimidade: há quem não a considere uma
autora feminista de fato e quem a critique justamente por não evitar tanto
assim certos clichês estéticos, além de carecer de uma suposta falta de
representatividade.
'Continuidade'
A jornalista chilena Oriana Valentina Miranda Navarrete é
integrante do coletivo feminista Vaginas Ilustradas e autora da dissertação de
mestrado "Muestra Marrana 2015: Corpos femininos no pós-pornô
latino-americano", defendida em 2016 na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Ela não acredita que o pornô feminista ou o pós-pornô
representem ruptura com relação ao pornô tradicional. "Mais do que isso, é
uma continuação. Não é tipo: 'O pornô tem de terminar ou é errado'",
afirma.
E continua: "O que pode estar acontecendo é um
questionamento de parte da feministas sobre como a sexualidade está sendo
transmitida às pessoas mais novas, incluindo as crianças".
"As primeiras imagens ou regras sobre o sexo que as
crianças recebem provêm do pornô. O que o pornô está dizendo a essas mulheres e
homens jovens? Como é a forma como vão se relacionar? O que o pornô mainstream
está dizendo sobre a possibilidade de outras sexualidades e opções?".
Texto e imagens reproduzidos do site: g1.globo.com/pop-arte
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