Guillermo del Toro, fotografado com exclusividade para ICON, com jeito de
não estar pensando em monstros que sofrem e em criaturas de aspecto
ameaçador, mas ultrassensíveis. (PEP ESCODA).
Publicado originalmente no site EL PAÍS Brasil, em 12 JAN 2018
Guillermo del Toro: “A violência espiritual, física e moral
que a família exerce à criança é o germe do horror”
Diretor mexicano leva o prêmio de melhor direção no Globo de
Ouro por ‘A Forma da Água’, história de amor entre um ser anfíbio e uma faxineira
muda
Por Carmen Cocina
Outro mundo — um verdadeiramente fantástico — é possível.
Guillermo del Toro (Guadalajara, México, 1964), deu sua contribuição para
aproximar esse desejo à realidade ao fazer com que um filme de gênero
(fantástico) se levante como vencedor absoluto em um dos quatros grandes
festivais de cinema do mundo (Veneza) e vença o Globo de Ouro de melhor direção
(além de melhor trilha sonora), além de quatro prêmios do Critics' Choice,
entre eles outro de melhor diretor. Um feito para a História e um tapa na cara
do núcleo duro da crítica ancorado em uma ultrapassada concepção da sétima
arte, segundo a qual o fantástico não é suficientemente sério.
Mas aí está: a história de uma faxineira muda que se
apaixona por um maltratado anfíbio humanoide nos corredores cinzas de um
laboratório norte-americano durante a Guerra Fria disparou os níveis de empatia
e venceu o grande prêmio do último Festival de Cinema de Veneza. Só isso.
Falamos, claro, do novo filme de Del Toro, A Forma da Água, que estreia em 1 de
fevereiro no Brasil.
O diretor mexicano, um outsider, vê tudo com calma: “Não
acredito que um só caso mude algo a nível geral”. Mais conciliador do que
categórico, mas sempre com as ideias claras, seu discurso em A Forma da Água
precisa ser entendido menos como um chamado à insurgência (mas também é) e mais
como uma reivindicação da diferença individual frente à asfixiante uniformidade
institucional. Algo sobre o que um inconformista como Del Toro fala com prazer
durante essa entrevista.
Pergunta: A Forma da Água é o primeiro filme fantástico a
obter o prêmio de melhor filme no Festival de Veneza. Acha que se aproxima uma
certa abertura em relação ao não poucas vezes subvalorizado cinema de gênero?
Resposta: Não sei se é para tanto. Com melhores e piores
resultados, estou há um quarto de século fazendo-o. Em minha carreira existe
uma coerência que permite que as pessoas digam: “Bom, isso é o que ele faz, não
importa como se chama”. Em todo caso, o gênero nos deu algumas das imagens
primigênias e primordiais do cinema: Nosferatu, o Frankenstein de James Whale,
Lon Chaney... O cinema nasce com duas vocações: a da crônica, encarnada pelos
Lumière, e a de fábula, por Méliès. Inevitavelmente, ambas se combinam. Tolkien
expressou uma máxima preciosa em seu ensaio Sobre Contos de Fadas: “É preciso
fazer o mundo suficientemente reconhecível para nos ancorar em uma realidade e
suficientemente mágico para nos transportar para fora dela”.
P: Sua obra é prolixa em monstros e fantasmas. De onde vem
essa inclinação?
R: Já começa na minha infância. Em meu país existe uma
tendência à fabulação, o que chamamos de alebrijes: mundos fantásticos que se
aproximam do mágico o máximo possível. Cresci nos anos sessenta, vendo o cinema
fantástico da Universal e o de terror da Hammer, assim como uma enorme invasão
de caricaturas e filmes de ficção científica japoneses. Foi um momento muito
rico e tudo isso convergiu em minha imaginação de garoto.
“Ninguém torce pelos aviões em ‘King Kong’, todo mundo
aposta no gorila. Acho que essa segunda opção se encaixa melhor com minha forma
de entender o mundo”
P: O senhor tende a mostrar um viés amável dos seres
sobrenaturais. Por que essa simpatia?
R: O gênero de terror apresenta desde suas origens uma
cisão: a visão pró-estrutura, em que o monstro, o outro, se apresenta como um
agente do além que causa medo, e a visão pró-anarquia, em que é um mensageiro
que desperta empatia, nos conectando a uma realidade terrenal. Existem filmes
xenófobos, onde se teme o que vem de fora, e existem filmes integradores, em
que o monstro é o mais humano do elenco. Ninguém torce pelos aviões em King
Kong, todo mundo aposta no gorila. Acho que essa segunda opção se encaixa
melhor com minha forma de entender o mundo.
P: Muitos de seus personagens são criaturas frágeis que
encontram alívio em outros que sofrem. O que é mais comum, a empatia ou a
vontade de submeter?
R: O que nos move à ação é a empatia. Em quase todos os meus
filmes cada ser é incompleto em separado. Quando nos unimos nos completamos. A
união leva à autoaceitação e dá força aos diferentes, que por sua condição são
invisíveis ao mundo.
“Com raras exceções, o caldeirão da maldade está na
infância. Se pudéssemos evitar em uma geração, só uma, os maus-tratos e a
incompreensão, o mundo mudaria”
P: De onde surgiu a ideia para ‘A Forma da Água’?
R: Começou quando eu tinha seis anos. Vi O Monstro da Lagoa
Negra na televisão, essa criatura nadando por baixo de Julie Adams e seu maiô
branco. Eu me apaixonei pelos dois e pela ideia desse amor: queria que
acabassem juntos, coisa que não aconteceu. De modo que ficou gravada em minha
cabeça a ideia de corrigir esse erro cinematográfico [risos]. Procurei muitas
formas, até que em 2011, tomando café da manhã com Daniel Kraus [co-escritor de
seu romance Trollhunters] ele me disse: “Tenho essa ideia de uma mulher que
trabalha como faxineira em um escritório ultrassecreto no qual há um anfíbio”.
Isso me pareceu o caminho perfeito, porque era pouco comum. Se você vai me
contar um filme de super-herói, me interessa saber o que acontece quando eles
vão embora: quem lava a roupa do Super-Homem, quem limpa esse local chamado A
Fortaleza da Solidão. Com meu filme acontece a mesma coisa: prefiro centrar-me
no ponto de vista do monstro e das pessoas que tomam conta dele.
P: Por que decidiu ambientar a história nos tempos da Guerra
Fria?
R: É um reflexo do presente. O sonho americano que evoca
Trump com seu “façamos a América grande novamente” é idêntico ao estado mental
dos EUA em 1962, com JFK na presidência, a corrida espacial, as urbanizações,
os carros de linha... Era a época ideal para o homem branco protestante
anglo-saxão, mas se você fazia parte de uma minoria estava ferrado. Isso é
exatamente o que está acontecendo agora: dia a dia vivemos a repressão, o
racismo e a intolerância sexual da mesma forma que aconteceu com esse sonho que
nunca se realizou, porque tudo parecia ótimo até o assassinato de Kennedy e o
aumento da violência no Vietnã.
P: A hostilidade entre Trump e Kim Jong-un é alarmante. Se o
senhor escrevesse um roteiro sobre isso, existiria alguma forma de consertar a
situação sem precisar recorrer a um ‘Deus ex machina’?
R: A situação global é de um surrealismo pavoroso. O dia a
dia foge a minha compreensão. Um centésimo dos escândalos revelados deveria
bastar para produzir uma mudança presidencial nos EUA. O que torna nosso tempo
diferente é que suas pessoas, sejam de direita e de esquerda, são incrivelmente
ativas: no Twitter, votando, fazendo doações... A população está mais ativa
politicamente do que nunca. A mudança virá das pessoas. Dos políticos só
podemos esperar politicagens. Eles sim tiram meu sono.
P: O individual é então uma alternativa sólida ao
institucional?
R: Sem dúvida. E a coletividade pode existir sem
instituições no meio. Uma família cujos membros vivem em separado, mas com a
vontade de permanecerem unidos, é uma grande família. O Exército, a Igreja, a
Escola e a Família são estruturas que se unem e se sustentam mutuamente não
pelo desejo de cada um de seus membros, mas por ideologias. E a ideologia é a
morte do pensamento.
P: Seus filmes às vezes exploram a origem do mal, que
costuma explicar como fruto de um trauma. Acha que não existe o mal por geração
espontânea?
R: Com raras exceções, o caldeirão da maldade está na
infância. Se pudéssemos evitar em uma geração, só uma, os maus-tratos e a
incompreensão, o mundo mudaria. A violência espiritual, física e moral que a
família exerce à criança é o germe do horror.
P: Continua apostando em efeitos especiais mecânicos, apesar
de filmar em digital. Não é um anacronismo curioso?
“A população está mais ativa politicamente do que nunca. A
mudança virá das pessoas. Dos políticos só podemos esperar ‘politicagens’. Eles
sim tiram meu sono”
R: Eu gosto de usar efeitos físicos sempre que é possível e
adotar o digital com comedimento. Essa é agora a segunda natureza do cinema, e
eu o vivo de maneira muito espontânea, ainda que às vezes voltaria ao celuloide
unicamente pela possibilidade que traz de formatos maiores. Alguns diretores,
como Tarantino e Nolan, defendem expressamente a recuperação do analógico, mas
eu estou muito confortável no digital.
P: A indústria audiovisual aposta agora nas séries, que
vivem sua época de ouro graças a plataformas pagas como a Netflix e a HBO. O
senhor mesmo está por trás de uma, ‘The Strain’. Acha que a longo prazo essa
tendência acabará prejudicando o longa-metragem e as experiências em salas de
cinema?
R: Dizem que as séries estão ganhando terreno ao cinema e
que acabarão matando-o, da mesma forma que se disse que o cinema mataria o
rádio, a televisão mataria o cinema e o rádio, a leitura. Mas continuamos tendo
rádio, televisão, cinema e até ópera. Os meios mudam de tamanho e de público,
mas não desaparecem. Não acho que o cinema irá desaparecer, mas irá mudar. Há
uma parte dessa narrativa de fôlego que pode passar à televisão a cabo, mas
suas imagens não têm a permanência que têm no cinema. As histórias e os
personagens, sim; você nunca irá esquecer de um Walter White [protagonista de
Breaking Bad]. A narrativa hoje em dia se inclina por esses ganchos, que
funcionam muito bem na televisão. Mas a imagem, a sugestão, a emoção, para mim
continuam no cinema.
P: O senhor completou 53 anos há pouco tempo. Como
comemorou?
R: Eu me reuni com alguns amigos em Londres para jantar no
restaurante The Ivy, em que servem um excelente frango assado. Demoram muito a
fazê-lo, mas a espera vale a pena. Como quase tudo nesse mundo.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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