quinta-feira, 1 de março de 2018

A geração Y e o tabu da morte

Como a juventude irá lidar com a percepção incontornável de que um dia, 
enfim, seremos velhos? (Cena do filme '500 Dias Com Ela' Divulgação).

Publicado originalmente no site da revista Carta Capital, em 28/02/2018 

A geração Y e o tabu da morte

Por Felipe Arrojo Poroger* 

Como uma juventude obcecada pela novidade vai encarar o seu prazo de validade?

Quando o funcionário do cemitério nos informou que não havia quem carregasse o caixão de meu avô e eu, em silêncio, me vi segurando uma de suas quatro alças, percebi que não tinha mais volta: com exatos vinte anos, cruzei a linha da juventude e, à força, me tornei adulto.

A fila seguiu: não demorou para que a vida começasse a ser, de fato, uma sucessiva despedida daqueles que tanto amava. Assisti ao fim de minha avó materna, seu rosto calmo, frio - que bonita era ela! - e, mais recentemente, coube a mim reconhecer o corpo de meu outro avô, que, além de pai de meu pai, era também meu melhor amigo.

E foi, assim, agora com vinte e sete anos, sensibilizado e confrontado por questões que só morte de alguém querido pode trazer à mente, que me veio a curiosidade um tanto aflitiva: como a minha geração - a tal da Geração Y - irá lidar com o próprio envelhecimento e com a percepção incontornável, assombrosa, de que um dia, enfim, seremos velhos? Como uma juventude obcecada pela novidade vai encarar o seu próprio fim, seu prazo de validade?

Vamos aos poucos: faço parte um grupo de pessoas - e de uma bolha social - que veio ao mundo com a curiosa singularidade de ter vivido, na primeira infância, a transição concreta do analógico para o digital, mudança esta que as décadas anteriores vivenciaram somente como ensaio.

Para além dos discursos saudosistas de nossos pais  - que, se são verdadeiros, são também fantasias de passado -, a prática nos colocou, dentre tantos outros, ao menos dois desafios ambivalentes.

Em primeiro lugar, com o advento da internet, vimos a completa reformulação dos conceitos de esfera pública e privada. Sem manual de instruções, nascemos como pessoas públicas, construindo nossas imagens na virtualidade de salas de bate-papo, ICQ, MSN e redes sociais.  Se, por um lado, isso significou confinamento e individualização de experiências, não é menos verdade que reforçou também a louvável preocupação com questões de identidade.

Afinal, à medida que passamos a nos expor e a nos reconhecer dentre milhões de desconhecidos virtuais, questões que anteriormente eram tabus puderam ocupar  a arena pública: dentro de uma bolha específica, ao menos, crescemos dispostos  a afirmar ideais libertários, desafiar padrões de gênero e encontramos ambiente possível (mas nem por isso fácil) para defendê-los.

A segunda consequência desta virada geracional evidenciou o outro polo: nosso apreço cego à novidade e o consequente descarte de tudo o que é tido como velho e obsoleto. Em um nível raso de reflexão, esta configuração nos leva a trocar, compulsivamente, de objetos, roupas, companhias, empregos, de acordo com as flutuações da indústria do consumo.

Soterrado em uma camada mais profunda, no entanto, um eterno fantasma ganhou novos significados: como, insisto, lidaremos com o envelhecimento e com a morte, tendo sido criados em um contexto complemente hostil à ideia da finitude? Nós, cobaias de um novo tipo de sociabilidade, nos tornamos uma juventude ansiosa pelo rápido consumo de prazeres e produtos, que, embora acostumada a colocar todas as cartas íntimas na mesa, insiste em esconder a solidão.

Encenamos a alegria, nos expomos em selfies e stories, desafiamos o conservadorismo e as formas típicas de sexualidade, mas evitamos a comunhão pública das experiências do vazio - justos estas que são a nossa única certeza e destino comum. O medo da disfuncionalidade, de tornar-se obsoleto feito o (pen)último produto da prateleira, permanece como um dos últimos itens trancafiados na intimidade.

O quão absurdo seria imaginar um cenário em que as redes sociais fossem tomadas por registros de tristeza e desânimo, da mesma maneira em que vemos imagens de homens e mulheres desafiando padrões de comportamento? Sob quais argumentos isso se explica se não pela aversão a todo estado emocional que pareça contradizer nossa mocidade e sua promessa de felicidade incondicional? Por que a exposição da própria sexualidade, por exemplo, goza de um espaço privilegiado ao qual melancolia não tem direito?

Quando, por fim, contei aos meus amigos que, ao final de 2018, meus avós fariam setenta anos de casado, foi comum escutar que nossa geração jamais chegará a esta data. Alguns acham que morremos antes, outros estão certos de que os laços afetivos modernos jamais alcançarão esta barreira; a maioria, no entanto, diz preferir evitar o tema.

E foi por isso, acredito, que me dispus a reconhecer o corpo de meu avô: olhar para a frieza da morte é como olhar em um espelho que nos devolve, refletida, a imagem de um futuro terrível, impossível de ser postado, mas, que quando verbalizado ou encarado frente-a-frente, deixa de ser somente assombro para tornar-se também processo.

Desestigmatizar a morte e o envelhecimento, encarando de olhos e braços abertos naqueles que mais amamos, me parece, hoje, uma das mais fortes transgressões possíveis.

*Felipe Poroger é diretor do filme "Aqueles Anos em Dezembro" e responsável pelo Festival de Finos Filmes, mostra paulistana de curtas

Texto e imagem reproduzidos do site: cartacapital.com.br

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