Como a juventude irá lidar com a percepção incontornável de que um dia,
enfim, seremos velhos? (Cena do filme '500 Dias Com Ela' Divulgação).
Publicado originalmente no site da revista Carta Capital, em 28/02/2018
A geração Y e o tabu da morte
Por Felipe Arrojo Poroger*
Como uma juventude obcecada pela novidade vai encarar o seu
prazo de validade?
Quando o funcionário do cemitério nos informou que não havia
quem carregasse o caixão de meu avô e eu, em silêncio, me vi segurando uma de
suas quatro alças, percebi que não tinha mais volta: com exatos vinte anos,
cruzei a linha da juventude e, à força, me tornei adulto.
A fila seguiu: não demorou para que a vida começasse a ser,
de fato, uma sucessiva despedida daqueles que tanto amava. Assisti ao fim de
minha avó materna, seu rosto calmo, frio - que bonita era ela! - e, mais
recentemente, coube a mim reconhecer o corpo de meu outro avô, que, além de pai
de meu pai, era também meu melhor amigo.
E foi, assim, agora com vinte e sete anos, sensibilizado e
confrontado por questões que só morte de alguém querido pode trazer à mente,
que me veio a curiosidade um tanto aflitiva: como a minha geração - a tal da
Geração Y - irá lidar com o próprio envelhecimento e com a percepção
incontornável, assombrosa, de que um dia, enfim, seremos velhos? Como uma
juventude obcecada pela novidade vai encarar o seu próprio fim, seu prazo de
validade?
Vamos aos poucos: faço parte um grupo de pessoas - e de uma
bolha social - que veio ao mundo com a curiosa singularidade de ter vivido, na
primeira infância, a transição concreta do analógico para o digital, mudança
esta que as décadas anteriores vivenciaram somente como ensaio.
Para além dos discursos saudosistas de nossos pais - que, se são verdadeiros, são também
fantasias de passado -, a prática nos colocou, dentre tantos outros, ao menos
dois desafios ambivalentes.
Em primeiro lugar, com o advento da internet, vimos a
completa reformulação dos conceitos de esfera pública e privada. Sem manual de
instruções, nascemos como pessoas públicas, construindo nossas imagens na
virtualidade de salas de bate-papo, ICQ, MSN e redes sociais. Se, por um lado, isso significou confinamento
e individualização de experiências, não é menos verdade que reforçou também a
louvável preocupação com questões de identidade.
Afinal, à medida que passamos a nos expor e a nos reconhecer
dentre milhões de desconhecidos virtuais, questões que anteriormente eram tabus
puderam ocupar a arena pública: dentro
de uma bolha específica, ao menos, crescemos dispostos a afirmar ideais libertários, desafiar
padrões de gênero e encontramos ambiente possível (mas nem por isso fácil) para
defendê-los.
A segunda consequência desta virada geracional evidenciou o
outro polo: nosso apreço cego à novidade e o consequente descarte de tudo o que
é tido como velho e obsoleto. Em um nível raso de reflexão, esta configuração
nos leva a trocar, compulsivamente, de objetos, roupas, companhias, empregos,
de acordo com as flutuações da indústria do consumo.
Soterrado em uma camada mais profunda, no entanto, um eterno
fantasma ganhou novos significados: como, insisto, lidaremos com o
envelhecimento e com a morte, tendo sido criados em um contexto complemente
hostil à ideia da finitude? Nós, cobaias de um novo tipo de sociabilidade, nos
tornamos uma juventude ansiosa pelo rápido consumo de prazeres e produtos, que,
embora acostumada a colocar todas as cartas íntimas na mesa, insiste em esconder
a solidão.
Encenamos a alegria, nos expomos em selfies e stories,
desafiamos o conservadorismo e as formas típicas de sexualidade, mas evitamos a
comunhão pública das experiências do vazio - justos estas que são a nossa única
certeza e destino comum. O medo da disfuncionalidade, de tornar-se obsoleto
feito o (pen)último produto da prateleira, permanece como um dos últimos itens
trancafiados na intimidade.
O quão absurdo seria imaginar um cenário em que as redes
sociais fossem tomadas por registros de tristeza e desânimo, da mesma maneira
em que vemos imagens de homens e mulheres desafiando padrões de comportamento?
Sob quais argumentos isso se explica se não pela aversão a todo estado
emocional que pareça contradizer nossa mocidade e sua promessa de felicidade
incondicional? Por que a exposição da própria sexualidade, por exemplo, goza de
um espaço privilegiado ao qual melancolia não tem direito?
Quando, por fim, contei aos meus amigos que, ao final de
2018, meus avós fariam setenta anos de casado, foi comum escutar que nossa
geração jamais chegará a esta data. Alguns acham que morremos antes, outros
estão certos de que os laços afetivos modernos jamais alcançarão esta barreira;
a maioria, no entanto, diz preferir evitar o tema.
E foi por isso, acredito, que me dispus a reconhecer o corpo
de meu avô: olhar para a frieza da morte é como olhar em um espelho que nos
devolve, refletida, a imagem de um futuro terrível, impossível de ser postado,
mas, que quando verbalizado ou encarado frente-a-frente, deixa de ser somente
assombro para tornar-se também processo.
Desestigmatizar a morte e o envelhecimento, encarando de
olhos e braços abertos naqueles que mais amamos, me parece, hoje, uma das mais
fortes transgressões possíveis.
*Felipe Poroger é diretor do filme "Aqueles Anos em
Dezembro" e responsável pelo Festival de Finos Filmes, mostra paulistana
de curtas
Texto e imagem reproduzidos do site: cartacapital.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário