Carlos Heitor Cony um cronista agudo e lírico
Por Revista Prosa Verso e Arte
Por Bernardo Ajzenberg* – Especial para a Folha
O romancista, escritor, jornalista e colunista da Folha,
Carlos Heitor Cony morreu por volta das 23h desta sexta-feira (5) aos 91 anos,
no Rio de Janeiro. Ele estava internado no Hospital Samaritano e morreu em
decorrência de falência de múltiplos órgãos. A informação foi confirmada pela
ABL (Academia Brasileira de Letras), da qual ele era membro desde 2000. O corpo
deve ser cremado na tarde de terça (9) no Memorial do Carmo, no Rio.
O Carlos Heitor Cony que conhecemos –cronista agudo e
lírico, romancista prolífico de texto ágil e conciso– forjou-se de uma
brincadeira e de uma clausura. A primeira se deu aos oito anos de idade, quando
o garoto, que por problemas de formação pronunciava ditongos com dificuldade e
trocava letras ao falar (o “g” pelo “d”, por exemplo), foi desafiado pelo irmão
mais velho e amigos, numa festinha, a dizer “Dona Jandira adora um fogão”.
Ingenuamente, disse-o, e foi objeto de agressiva caçoada.
Angustiado, em seguida escreveu “fogão” inúmeras vezes numa folha de papel e
mostrou-a ao mesmo grupo, que nisso não viu graça alguma. Donde o menino
concluiu que, se não falava direito, podia escrever corretamente e ter, na
escrita, uma forma de defesa e de manifestação da qual ninguém podia caçoar.
Nascido em 14 de março de 1926, em Lins de Vasconcelos, zona
norte do Rio de Janeiro, Cony fora considerado “mudo” pela família até os
quatro anos de idade. Só emitira o primeiro som ao levar um susto na praia de
Icaraí (Niterói) ante o surgimento de um hidroavião vermelho vindo do mar em
direção à areia. Em 1941, quando já estava com 15 anos, uma cirurgia poria fim
ao problema.
Já a clausura –segundo pilar do Cony que conhecemos– foram
os anos passados no Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio Comprido, de
1938 a 1945, período em que estudou os clássicos gregos e romanos, praticou
diversas línguas, conheceu música lírica e, principalmente, trocou muitas
idéias, em especial consigo mesmo.
Do seminário, onde ingressara por vontade própria e de onde
saiu aos 19 anos e meses antes de obter a tonsura, Cony herdou grande
capacidade de concentração e o hábito de sempre se ocupar com alguma coisa, o
tempo inteiro, além do gosto pela liturgia. Mas conheceu, também, o valor da dúvida,
a experiência dolorida da ruptura e o alto custo a pagar pela livre expressão
de pensamento e opinião.
Em “Informação ao Crucificado” (ficção com tonalidade
autobiográfica em forma de diário publicada em 1961), o jovem seminarista João
Falcão relata o tenso e decisivo diálogo no qual, acuado, respondendo a uma
pergunta do Senhor Arcebispo (“por que você quis ser padre?”), explicava:
“Porque achei bonito ser padre. Bonito e difícil”. Pouco a ver com “levar almas
a Deus” ou com apego religioso, portanto. Réplica do Arcebispo: “…ou você muda
radicalmente sua maneira de pensar, ou faça-me o extraordinário favor de
abandonar o quanto antes o Seminário”.
Ao longo dessa experiência, solidificou-se uma personalidade
marcada pelo ceticismo, alérgica a grupos –fossem ou culturais–, assumidamente
individualista e, por isso mesmo, também errática, imprevisível. Em maio de
2000, no discurso de posse da cadeira número 3 da Academia Brasileira de
Letras, Cony definiu-se, citando Eça de Queiroz, como um “anarquista
entristecido, humilde e inofensivo”. “Não tenho disciplina suficiente para ser
de esquerda, não tenho firmeza suficiente para ser de direita e não tenho a
imobilidade oportunista do centro”.
Em 1946, aos 20 anos, como quem busca um novo eixo, o
ex-seminarista ingressa na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do
Brasil. Abandona a instituição, porém, no ano seguinte. De 1948 a 1950,
frequenta o Curso de Preparação de Oficiais de Reserva (CPOR). Nesse intervalo,
casa-se em 1949. Nascem as filhas Regina Celi (1951) e Maria Verônica (1954).
Ao longo da vida, Cony teve mais três casamentos formais e duas uniões
informais –além de um filho, André Heitor, nascido em 1973.
JORNALISMO
Filho de Julieta de Moraes e do modesto jornalista Ernesto
Cony Filho –morto em 1985 aos 91 anos e celebrizado em 1995 como protagonista
de “Quase Memória”–, Cony ingressa oficialmente no jornalismo aos 26 anos, em
1952, como redator na Rádio Jornal do Brasil. Antes tivera passagens como
“setorista” da Gazeta de Notícias na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em
substituição ao pai. Foi também no lugar do pai –vítima de uma isquemia
cerebral– que Cony passou a ser credenciado pelo “Jornal do Brasil”, em 1955,
na Sala de Imprensa da Prefeitura da cidade.
O primeiro romance (“O Ventre”) é escrito nesse ano. Em
1956, o autor o inscreve sob pseudônimo para o Prêmio Manuel Antonio de
Almeida, concurso da Prefeitura. A comissão julgadora considera o livro “muito
bom”, mas nega-lhe o prêmio por achá-lo forte demais para um certame oficial.
Em apenas nove dias, para cumprir o prazo de inscrição, o autor produz seu
segundo romance, “A Verdade de Cada Dia”, e com ele vence o concurso, em 1957.
Com “Tijolo de Segurança”, recebe o mesmo prêmio, em 1958.
Os três romances viriam a ser publicados respectivamente em
1958, 1959 e 1960 pela Civilização Brasileira, dirigida por Ênio Silveira, que
“adota” Cony como autor de ponta da prestigiosa editora. Seguem-se “Informação
ao Crucificado” (1961), “Matéria de Memória” (1962) e “Antes, o Verão” (1964).
Nessa inusitada avalanche de romances, a crítica observou a
composição de um retrato impiedoso da classe média carioca, em compasso
existencialista com elevada dose de autocomiseração, assim como a expressão do
vazio individual, da incomunicabilidade e da ausência de perspectivas coletivas
–tudo isso, na perfeita contramão da euforia da era Juscelino Kubitscheck.
Voluntária ou involuntariamente, Cony já assumia, em todas essas obras, a
postura muito própria de enfrentamento que marcaria toda a sua trajetória
pessoal e profissional.
Ao comentar “A Verdade de Cada Dia” em 1961, o crítico Paulo
Rónai classificava os romances de Cony como “chocantes e pungentes”, com um
“lugar definitivo na história da ficção brasileira”. Na “História Concisa da
Literatura Brasileira”, Alfredo Bosi via a obra do autor como uma “experiência
cortante de neo-realismo psicológico”.
O projeto inicial do ficcionista, segundo confidenciou o
próprio em diferentes ocasiões, era compor um conjunto de dez romances, uma
série sobre a “condição humana”. Auto-ilusão, sem dúvida, pois Cony, desde o
início, sempre foi, acima de tudo, uma máquina humana de escrever; vulcânica,
acelerada, infatigável, fora de controle do próprio dono.
Não só produziu bem mais do que dez romances (foram 17 no
total), como enveredaria incansavelmente pela crônica e outros vários gêneros:
romance-reportagem, biografias, ficção infanto-juvenil, adaptações de clássicos
nacionais e estrangeiros. No total, sua produção reúne 65 publicações, sem
falar naquelas realizadas em parceria ou a participação em coletâneas.
Certamente não tinha preocupação de fazer obras-primas.
Escrevia, simplesmente, de modo compulsivo, como extensão, no papel, de sua
fisiologia. Muitas vezes se classificou como um autor “sem estilo” –embora,
segundo diferentes críticos, isso esteja longe da realidade. Sempre
auto-irônico, disse numa entrevista: “Acho que já poluí demais o mercado
editorial. O Ibama deveria tomar uma providência contra mim”.
CRONISTA
Se o reconhecimento literário veio cedo, expresso em prêmios
e resenhas elogiosas, foi como cronista –cuja estreia se deu em 1962 no
“Correio da Manhã” (onde fora contratado em 1960 como copidesque e depois
editorialista)– que Cony surgiu para uma faixa mais ampla de leitores. A
coluna, em revezamento com o escritor Otávio de Faria (1908-1980), chamava-se
“Da arte de falar mal”.
Quando de sua reunião em livro, em 1963, o crítico Fausto
Cunha destacou o domínio da língua e a temática individual, elogiando-lhe,
entre outros aspectos, a “audácia da afirmação”, uma qualidade, segundo ele,
ausente em “nossos cronistas”.
A explosão pública de Cony, porém, ocorreria no ano
seguinte, logo após a implantação da ditadura militar, em 1964. E não por
acaso. Avesso a grupos, sem laços partidários nem compromissos programáticos, o
cronista pôde se dar o luxo de, a partir de abril daquele ano, agir por
instinto, atirar sozinho, expor-se como e quando achasse melhor em reação à
implantação do regime militar.
As crônicas dos dias e semanas imediatamente posteriores ao
Golpe são de uma ousadia sem igual em toda a imprensa. Cony dava nome aos bois.
Chamava o golpe de “quartelada”, ironizava a presença político-militar dos
Estados Unidos no país, investia contra os altos comandantes do novo regime. O
impacto de seus textos era proporcional ao pasmo que tomara conta da maior
parte dos setores atingidos pelo golpe, ainda mais por serem provenientes de um
autor antes freqüentemente tachado de “alienado” e individualista -rótulos que
ele próprio, diga-se, nunca rejeitou.
“Era o nosso respiradouro”, escreveu em 1996 Moacyr Scliar.
Testemunha o também escritor Luiz Fernando Veríssimo: “Em pouco tempo, aquele
ato, ler o Cony, se tornou um exercício vital de oxigenação para muita gente, e
a sua coluna uma espécie de cidadela intelectual em que também resistíamos
-mesmo que a resistência consistisse apenas em dizer “É isso mesmo!”, ou
“Dá-lhe, Cony!”, a cada duas frases lidas. “Leu o Cony hoje?”, passou a ser a
senha de uma conspiração tácita de inconformados passivos cujo lema silencioso
seria “Pelo menos, eles não estão conseguindo engambelar todo o mundo”.
Os relatos da noite de autógrafos de “O Ato e o Fato, livro
que reuniu essas crônicas poucos meses depois de publicadas em jornal, dão
conta de um sucesso retumbante: mais de 1.600 exemplares vendidos na ocasião;
edição esgotada em poucas semanas.
Aquilo que socialmente aparecia como protesto politizado,
engajamento determinado e firme, tinha para o autor, porém, um sentido
diferente, particular: mais dever de consciência do que atitude programática.
Cony explicou certa vez: “(…) não tive motivação política alguma para escrever
como escrevia (…) não estava em jogo o fato político: estava em jogo, em grande
parte, um lado humano. Pessoas que trabalhavam comigo desapareciam, eram
espancadas nas ruas, eram torturadas… Foi um espetáculo deprimente, abominável
(…) Isso tudo me enojou de uma tal maneira que eu comecei a escrever sobre o
assunto. E com uma violência toda pessoal”.
A ousadia valeu-lhe fama e simpatia, mas custou-lhe, também,
inúmeros transtornos. As filhas foram ameaçadas por militares, que rondavam o
prédio onde Cony morava, no Posto 6, em Copacabana. O então ministro da Guerra,
general Costa e Silva, moveu ação com base da Lei de Segurança Nacional,
considerando as crônicas ofensivas às Forças Armadas. Mais tarde, a defesa do
jornalista conseguiu que o processo ocorresse sob a Lei de Imprensa (em que as
penas eram menores). Cony foi condenado a três meses de prisão, com direito a
sursis.
De 1964 a 1972, sofreria 12 processos, sendo detido em seis
oportunidades; na mais grave delas, ao final de 1968, com a decretação do Ato
Institucional N° 5, chegou a ficar quase um mês na prisão. Em 1965, sob
pressão, o escritor deixa o “Correio da Manhã” e começa a trabalhar nas Edições
de Ouro (Ediouro) –fazendo adaptações de clássicos, traduções e prefácios–,
além de colaborar com diferentes publicações. Chega a escrever uma telenovela
(“Comédia Carioca”) para a TV Record, censurada.
No começo de 1966, sai o romance “Balé Branco”, dedicado a
Carlos Drummond de Andrade, Austregésilo de Athayde, Alceu Amoroso Lima e
Fernando de Azevedo, os quais haviam deposto em favor de Cony na Justiça
durante o processo que sofrera pela ação de Costa e Silva.Nesse período
publicaria, entre outros livros, uma coletânea de contos (“Sobre Todas as
Coisas”, 1968) e produziria, para a Bloch Editores, reportagens que mais tarde
redundaram no livro “Quem Matou Vargas?” (1972).
A Civilização Brasileira edita em 1967 o mais polêmico dos
romances do autor: “Pessach: a Travessia”, obra que tematiza o drama vivido por
boa parte da esquerda e da intelectualidade em relação ao engajamento ou não na
luta armada contra a ditadura. Embora com uma orelha assinada pelo filósofo
Leandro Konder, um dos responsáveis então pela política cultural do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), o livro é explicitamente crítico quanto ao papel
desempenhado por essa organização no enfrentamento ao regime.
Primeira ficção com fundo político de Cony, “Pessach” causou
debate até mesmo na sua reedição, em 1997, oportunidade em que o autor afirmou
ter sido boicotado à época pelos jornalistas e intelectuais ligados ao PCB na
difusão do livro –denúncia contestada por dirigentes comunistas daquele período
como Ferreira Gullar e o próprio Konder.
Em circunstâncias políticas e pessoais desconfortáveis, Cony
viaja ao exterior, passando por Paris, Moscou, Praga e Havana. Na capital
cubana –inicialmente como jurado do concurso Casa de Las Américas–, permanece
durante onze meses, entre 1967 e 1968.
Sem perspectiva profissional, na volta ao Brasil Cony aceita
o convite de Adolpho Bloch para trabalhar no seu grupo editorial –cujo apoio
aos governos militares era explícito–, onde permaneceria por cerca de 30 anos.
No dizer do próprio jornalista, foi uma opção por ajustar-se a uma espécie de
“prisão de luxo”, com bons salários e viagens constantes ao exterior.
Ali, de início, ajudou a finalizar o livro das memórias de
Juscelino Kubitschek, para depois exercer sucessivamente diversos cargos
executivos, dirigindo revistas de entretenimento como “Ele & Ela”,
“Desfile” e “Fatos & Fotos”. Em meados dos anos 1970, passaria a escrever
para a “Manchete”, carro-chefe da Bloch, datando de 1976 a entrevista que
realizou com o delegado Sergio Paranhos Fleury, do Dops, então símbolo maior da
aplicação da tortura no Brasil, fato que lhe rendeu ainda mais animosidade por
parte da oposição ao regime.
Para a esquerda, ao integrar o grupo de Bloch Cony fizera
uma espécie de pacto com o diabo. Para a geração mais nova, que começava a
entender alguma coisa apenas em meados dos anos 70, seu nome já se associava,
ainda que indiretamente, à zona de influência do regime -o mesmo que ele
combatera anos antes de modo tão escancarado e impetuoso.
Mas o “lobo solitário de feroz individualismo” (expressão de
Ênio Silveira) não estava nem um pouco incomodado com tudo isso. Arredio,
reagiu de maneira bem própria, bem “conyniana”, escrevendo o romance “Pilatos”
(1974). Trata-se de um livro cáustico, com traços escatológicos e
pornográficos, cujo protagonista, um sujeito que fora castrado depois de sofrer
um acidente, perambula pelas ruas do Rio com seu pênis preservado num vidro de
compota.
Um texto “originalíssimo (…) não tem semelhança com nenhuma
outra obra da literatura brasileira”, nas palavras de Otto Maria Carpeaux. “(…)
Este romance pede inteligências abertas, capazes de descobrir, em meio à
falação desabrida, ao grotesco à la Goya ou à mordacidade à Daumier, o quanto
há de humano, sofrido e pungente nessa parábola escrita antes com sangue e
lágrimas do que com riso”, analisava Mário da Silva Brito.
Cony sempre viu em “Pilatos” o seu melhor livro. Não tanto
pelas qualidades literárias, mas principalmente por ser, segundo dizia, o único
que o expressava integralmente e que só ele poderia ter escrito. Com essa obra,
ele “chuta o pau da barraca”, à esquerda e à direita. Lava as mãos e se despede
da ficção.
Nesse período, segundo contava, vivia feliz, um “clone às
avessas do seminário”. Sentia-se bem casado, passou a andar com rabo-de-cavalo,
vestia calça vermelha, pintava quadros, viajava. Teve um filho e uma neta.
Assessorava Bloch em assuntos pessoais e profissionais. Publicou
livros-reportagem e pequenas obras infanto-juvenis. No final da década de 1980,
chegou a assumir o departamento de teledramaturgia da TV Manchete e a esboçar
sinopses de novelas como “Kananga do Japão” e “Dona Beja”.
Por que deixou de produzir literatura? Ele mesmo respondia:
“Preferi viver. A vida estava boa, divertida, foi uma fase em que não senti
necessidade de escrever”. Como o publicitário Augusto Richet de “A Casa do
Poeta Trágico” (1997), porém, Cony “se recusava ao crepúsculo”.
COLUNISTA DA FOLHA
Em março de 1993, por sugestão do colunista Janio de
Freitas, ele volta a ficar sob os holofotes da mídia, assumindo a coluna “Rio
de Janeiro” da página A2 da Folha, antes assinada por Otto Lara Resende. Seu
público mais antigo retoma o contato diário com uma verve ímpar, independente,
carregada de anedotas curiosas e vastas experiências, sem ser, no entanto,
saudosista. Para os leitores mais jovens, surge uma prosa cuja contundência,
vivacidade e agilidade nem de longe denunciam tratar-se, na verdade, de um
retorno.
A energia produtiva de Cony, que de novo se manifestava em
crônica diária, serviu-lhe, também, para retomar a ficção num momento de
infelicidade, dois anos depois, quando obrigou-se a permanecer noites acordado
a cuidar de sua setter Mila, gravemente adoecida. Nesses momentos, sem
premeditação, acabou por escrever, num período intensivo de três semanas, o
livro “Quase Memória” (1995), misto de romance, reportagem e crônica centrado
na figura de Ernesto Cony Filho, obra que marcou a sua volta ao mundo da
ficção.
Mais do que elogio à personagem pitoresca do velho
jornalista, trata-se de um lírico pedido de desculpas do filho pelo desprezo
que sempre alimentara em relação ao pai. Mila, a cadela, morreria poucos dias
antes de encerrar-se o livro, que é a ela dedicado.
O êxito de crítica e de público desse “quase romance” levou
Cony a deixar para trás a promessa, feita mais de vinte anos antes, de
abandonar a literatura. Aos 70 anos de idade, ele inaugura uma nova avalanche
de romances: “O Piano e a Orquestra” (1996), “A Casa do Poeta Trágico” (1997),
“Romance sem Palavras” (1999), “O Indigitado” (2001), “A Tarde da sua Ausência”
(2003) e “O Adiantado da Hora” (2006).
Com esses livros, receberá sucessivamente oito prêmios
literários, dentre eles o “Machado de Assis”, da Academia Brasileira de Letras
(ABL), pelo conjunto da obra, em julho de 1996. No mesmo ano, em agosto, passa
a integrar o Conselho Editorial da Folha e a assinar uma coluna na Ilustrada
aos sábados. Retoma a rotina de conferências em universidades ou instituições
culturais, passa a fazer comentários em rádio.
Em 1998, recebe do governo francês, em Paris, a comenda de
Chevalier da Ordre des Arts et des Lettres. Em março de 2000, é eleito para a
cadeira número 3 da ABL, com 25 dos 37 votos possíveis.
O pessimismo desabrido e incisivo, os comentários ferinos e
a postura amarga de “soy contra” –em especial dirigida os governos de plantão
(antes João Goulart ou os militares, depois FHC ou Lula)- certamente levou
muita gente a imaginar Cony como um homem intratável e rabugento. Nada mais
falso, porém.
Divertido, com um brilho quase infantil nos olhos
pequeninos, fácil de fala, Cony era um sedutor de conversa rica e sempre
prolongada. Um galanteador irreverente, cético e meio cínico. Brincalhão e
autoirônico. Quase sempre calçava tênis, trajes descontraídos, com um discreto
charme nos onipresentes suspensórios. Em palestras, era envolvente e fazia rir
com facilidade.
Alimentava muitas histórias, às vezes sugestivamente
fantasiosas, sobre si mesmo. Entre a memória e a invenção, seus textos –seja na
crônica seja no romance-e suas entrevistas transpiram essa figura. Em 2016, em
entrevista à Folha, disse que havia retomado o projeto do livro “Messa pro Papa
Marcello”, espécie de continuação de “Informação ao Crucificado” (1961).
Nas instituições por que passou, Cony sabia aliar o estilo
informal, às vezes galhofeiro, ao rigor cerimonial das reuniões e ao
cumprimento dos prazos imperativos da produção editorial. Assim nos tempos da
“Manchete” e mais tarde na Folha; assim nos compromissos da Academia.
Embora agnóstico, mantinha em casa uma pequena imagem de
Santo Antônio. Nos últimos anos, especialmente a partir de um problema grave de
saúde sofrido em 1991 que o levou à UTI de um hospital e a sofrer uma anestesia
de nove horas de duração, tornou pública uma revisão interna a respeito do tema
(religiosidade). Em depoimentos, manifestou apego a santos (José e Maria, além
de Antônio) e uma aproximação com a idéia da existência de Deus.
Tal movimento deveria se expressar, ou melhor, deveria
burilar sua própria definição na escritura do romance “Messa pro Papa
Marcello”, um projeto de décadas, sintomaticamente inacabado. Nele, o
ex-seminarista em crise João Falcão, de “Informação ao Crucificado”,
ressurgiria muitos anos depois, buscando resolver seu “drama” religioso, o
mistério íntimo que Cony –homem que sempre escreveu com rapidez e facilidade–
aparentemente nunca logrou solucionar.
Em 2001, surgiu outro problema de saúde, que o acompanhou
até a morte: o escritor foi diagnosticado com um câncer linfático. Com a
quimioterapia, perdeu força nos braços e nas pernas. Em 2013, levou um tombo na
Feira de Frankfurt. O impacto gerou um coágulo em seu cérebro.
* Bernardo Ajzenberg, jornalista e escritor, ex-ombudsman da
Folha, é autor de “Gostar de Ostras” (Rocco), entre outros.
Carlos Heitor Cony – foto: Mauro Pimentel/Folhapress
Confira seis obras essenciais de Carlos Heitor Cony
“O Ventre” (1958)
Antes de chegar às livrarias pela Civilização Brasileira, o
romance de estreia de Carlos Heitor Cony participou um concurso oficial –na
comissão julgadora, estavam Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira– mas
não pôde ser premiado por ter sido considerado forte demais para os padrões da
época. É o livro mais sartreano do autor.
EDITORA Nova Fronteira
QUANTO R$ 39,90 (208 págs.)
E-BOOK R$ 24,90 (Nova Fronteira)
“Informação ao Crucificado” (1961)
Escrito em forma de diário, com evidente fonte
autobiográfica, narra a trajetória de um jovem que decide entrar para o
seminário e ordenar-se padre, mas tem dúvidas sobre a sua vocação.
“Deus acabou” é a última linha da narrativa.
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 39,90 (120 págs.)
“Pessach: A Travessia” (1967)
Romance que discute a ditadura militar no calor da hora,
enquanto ela estava acontecendo no Brasil.
Um escritor que antes evitava tomar qualquer posição
política mais radical paradoxalmente acaba por aderir à luta armada. Parte da
esquerda brasileira jamais perdoou o autor pela publicação do livro.
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 59,90 (336 págs.)
“Pilatos” (1974)
Livro radical, representa uma ruptura na produção do
escritor que, depois dele, passaria 21 anos sem publicar um romance. Não tem
semelhança com nenhuma outra obra da literatura brasileira ao narrar a
deambulação, pelas ruas mais sórdidas do Centro do Ri, de um homem que carrega
o próprio pênis dentro de um vidro de compota.
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 47,90 (224 págs.)
“Quase Memória” (1995)
Marca o retorno de Cony. Em forma circular, é o registro das
reminiscências do narrador a respeito do pai morto que lhe apareceu em um
sonho. Relato lírico e sentimental, foi um campeão de vendas a partir do boca a
boca dos leitores e conquistou os prêmios Jabuti de melhor romance e de Livro
do Ano, pela Câmara Brasileira do Livro.
EDITORA Nova Fronteira
QUANTO R$ 34,90 (244 págs.)
E-BOOK R$ 19,90 (Nova Fronteira)
“A Casa do Poeta Trágico” (1997)
Como o anterior, foi eleito Livro do Ano e levou o Prêmio
Jabuti na categoria ficção. Em uma viagem de cruzeiro pelo Mediterrâneo, um
publicitário fica entediado com o que encontra à sua volta e passa a desprezar
os passageiros. Até que avista uma moça calada e solitária, 30 anos mais jovem
do que ele. Passa, então, a persegui-la.
EDITORA Nova Fronteira
QUANTO R$ 19,90 (176 págs.; coleção Clássicos para Todos)
E-BOOK R$ 19,90 (Nova Fronteira)
Fonte: Originalmente publicado em Folha Ilustrada/Folha de
S. Paulo.
“A pergunta fundamental, a única que realmente é pergunta –
pois todas as demais são respostas disfarçadas – é a da existência de Deus. Se
Deus existe ou não – é problema da filosofia. Se eu creio ou não em Deus – é o
meu problema. Todos os outros problemas giram em torno deste.”
– Carlos Heitor Cony, “Deus”, em ‘Posto Seis’. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
Texto e imagens reproduzidos do site: revistaprosaversoearte.com
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