Foto Suzzy Muniz
Publicado originalmente no site NLucon, em 17 de dezembro de 2017.
Diva Florescer, Tatiane de Campobello relata como superou
clínica de "cura trans", ruas e Cracolândia: "Era o
submundo"
Por Neto Lucon
Quem vê Tatiane de Campobello, mulher transexual de 28 anos,
trabalhando como agente de saúde no centro de São Paulo e fazendo dublagens no
espetáculo Divas Florescer, nem imagina a sua história de vida, marcada por
muita luta, violações e superação.
Vinda da periferia de São Paulo, ela soube desde cedo o que
era falta de oportunidade e situação de vulnerabilidade. Sendo uma mulher
transexual, viu a transfobia mostrar suas garras de perto, as portas do mercado
de trabalho formal se fecharem, as da prostituição se abrirem, acompanhadas das
drogas e das violações.
Foram longos anos em que teve que driblar o estigma social,
a cocaína e o crack, o acolhimento transfóbico da família evangélica, que a
colocou em uma clínica para que ela deixasse de ser mulher transexual, as
violações que sofreu na pista e também do “abraço forte” que recebeu da
Cracolândia e nas ruas.
Nos momentos de dificuldade ela afirma que recorria à fé e a
Deus. Até que em maio deste ano ela conheceu a Casa Florescer, um espaço que
acolhe, dá abrigo, alimentação e encaminhamentos para travestis e mulheres
transexuais sujeitas à vulnerabilidade social - ou seja, aquelas cujas
condições excluem e as colocam à margem da sociedade e em situações precárias
de vida.
Em bate-papo sincero com o NLUCON, Tatiane Campobello fala
sobre essas experiências, faz reflexões sobre o que viveu e novas perspectivas.
- Como foi que você conheceu a Casa de Acolhida Florescer?
Eu cheguei no mês de maio, no inverno. Foi um dia muito
marcante para mim, muito intenso na minha vida. Eu fiquei vulnerável e durante
dois meses eu fiquei na rua, me prostitui durante 10 anos.
- Dez anos? Mas você é muito novinha...
Eu tenho 28 anos, vou fazer 29. E fui para a prostituição
com 16. Foi quando comecei a trilhar o caminho do submundo, pois foi a porta
que se abriu para mim e que acolheu o que eu queria ser. Eu achava que ser
mulher era ter cabelão, andar com decote, unha feita, perfumada. Eu tinha essa
referência de mulher. Como eu morava na periferia, aquele mundo não comportava
esse sonho, era muito pequeno para mim.
- Foi logo depois que você disse ao mundo que é uma mulher
transexual que aconteceu a situação de vulnerabilidade?
É, quando eu me autoafirmei como transexual foi um baque
para a minha família. Ela até aceitava a homossexualidade, mas a
transexualidade não. Com 15 anos, eu assumi que era homossexual. E com 16 eu me
autoafirmei Tatiane. Tive que desbravar o mundo. Fugi da casa da minha mãe em
uma sexta-feira com a roupa do corpo. Só retornei com 22 anos e a minha mãe já
estava com uma cabeça bem diferente. Ela estava com câncer e evangélica, então
a situação estava pior do que já era.
Em qual sentido estava pior?
A gente começou a conviver, eu arrumei um trabalho na época,
mas tinha a questão da dicção. Foi a bagagem que eu adquiri da prostituição: a
droga, a cocaína. Por volta dos 24, minha mãe me ofereceu ajuda para me
internar em uma clínica. Só que ao chegar lá era uma clínica de "cura
gay". E eu tinha um baita de um cabelão liso, pois eu alisava o cabelo, e
eles rasparam tudo e ainda fizeram risquinhos na minha cabeça. Aquilo era uma
identidade minha, as pessoas colocavam vulgo de índia, pois me conheciam pelo cabelo.
Eu trabalhava no Jacques Janine e já acordava passando prancha. Quando me vi
com o cabelo curto, tive três dias com 40 graus de febre. Fiquei de cama por
causa do emocional.
- O que mais você poderia falar sobre a experiência dentro
desta clínica?
Eu estava vivendo coisas intensas naquela época: meu irmão
havia sido preso, minha mãe com câncer, tinham raspado o meu cabelo, eu tinha
voltado da prostituição com uma mãe na frente e a outra atrás, eu tinha voltado
para a casa da minha família, era muita informação. Então aquele ambiente era
um lugar de calma, a convivência com os meninos era tranquila. Mas o que mais
me marcou foi esse corte de cabelo. Fiquei durante seis meses e, ao retornar
para a casa da minha mãe, estava pior do que estava. Minha mãe tinha doado
todas as minhas roupas femininas, que eu ganhava no salão.
- Sua mãe achava que havia te "curado" e que você
havia deixado de ser mulher transexual?
Sim, ela me trouxe com vestes masculinas, cabelo raspado e
tinha comprado terno, gravata, bermuda... Minha família é muito humilde, muito
simples e eu pensei: Poxa, quanto minha mãe deve ter gastado na clínica e com
essas roupas? Daí eu fiquei com pena de mim e dela por essa situação. Pensei:
"meu Deus, não vou aguentar tudo isso". Fiquei 15 dias após a
internação e fui para a casa da cafetina de novo.
- E como foi retornar à prostituição?
Voltei de forma mais agressiva, pois eu já sabia como
funcionava aquilo. Eu não tinha muita paciência. Se tirasse uma comigo, eu já enfiava
a mão na cara e puxava a chave, ainda que eu apanhasse. Você traz aquela coisa
da marginalidade, quando você percebe que o homem tem medo da exposição, do
vexame, da vergonha. Daí ameaçava expor, que vai tirar o dinheiro. A combinar o
valor e sair com muito mais do que você entrou. E nisso você vai entrando cada
vez mais no submundo do submundo do submundo. Mas daí eu não tinha só a questão
da cocaína, mas do crack também.
- Como a droga aparece nesses espaços?
É assim: você está parada na rua, cada carro é um universo,
uma oportunidade diferente. Eu já conheci homens maravilhosos, homens nem tanto
assim, homens cheirosos, homens fedidos, homens muito educados, mal educados,
homens que te pagam bem e homens que vão tirar com você. E, ali, também vai
haver homens drogados, que você não advinha. Por diversas vezes eu entrei no
carro nem sonhando que rolaria droga e rolava, porque já traziam ou porque no
meio do programa ele gozava e queria droga. E a gente já sabia onde rolava a
droga, as biqueiras. Você começa a definhar no submundo, que vai descendo,
descendo, descendo...
- Você consegue identificar quando está dependente da droga?
Você acha que há controle?
Não há controle, mas você se percebe. Sua aparência muda,
tudo fica diferente... Você não toma mais o hormônio, não cuida mais do cabelo.
E para a prostituição isso é muito válido: ser a mulher do cabelão, do salto
alto, do vestido de tubinho, dos cílios, do vestido de tubinho, um perfume
marcante, o rebolado...
- Eu observo que muita gente tem preconceito em relação à
prostituição e tem muita gente que fala só do lado positivo. O que você tirou
desta experiência?
Eu tirei uma imagem muito negativa da prostituição. Nunca
tive nada. Eu não vou ficar contando história, dizendo que era uma lenda.
Imagina, meu amor. Era só mais uma na rua, ralando para pagar a cafetina e
comer uma comida adequada. Mas essa não é a realidade de algumas, que dão muito
certo. E isso não está relacionado com beleza, com aparência e cirurgia
plástica. Está relacionado com axé, com estrela, nasceu para fazer aquilo ou
não. O que eu trouxe de positivo é a vivência, a malandragem da rua, olhar no
olho e perceber a malícia do mundo. Isso me despertou muito cedo.
- Você chegou a ir para a Cracolândia, né?
Quando eu saí da casa da minha mãe, fui para a casa da
cafetina e acabei parando na rua. As portas que se abriram para mim foi a
Cracolândia, que me abraçou de uma forma tão forte que fiquei uma semana.
Fiquei vulnerável, fiquei em situação de rua. Sabia que não poderia mais voltar
para a casa da minha mãe e que perderia a minha sanidade e a minha lucidez. E
eu pedi assistência à vida. Sabe aquela bagagem do evangelho, do amor, de não
desistir da vida, pois sou a imagem e semelhança de um Deus muito supremo? Eu
invocava à vida e a existência de Deus. Conheci uma pessoa que me acolheu em
uma situação de vulnerabilidade, embora estejamos em uma relação abusiva. Ele
tem uma imagem muito forte, ele me assumiu, eu abracei, ele me abraçou... Eu estava
na rua, mas tinha um homem para cuidar de mim, sabe? Eu permaneci durante dois
meses. Até que quis fazer meu RG, recebi a ajuda de uma assistente social e
peguei depois de 15 dias. Fiquei numa felicidade tão grande que quis ir atrás
das minhas coisas.
- Mesmo com o RG com o nome masculino?
Mesmo com o nome masculino, porque ali era uma identidade,
tinha um número e eu era alguém. Não devo nada para a polícia e quando alguém
pergunta "tem documento", eu mostro o RG. Se é para segurar uma vaga,
já segura. Pensei por esse lado. Eu conheci o Prats, onde lavava a roupa,
tomava banho e fazia a comida. E conheci o projeto Reviravolta, que entrei em
um projeto de reciclagem. Só que meu marido fez uma agressão física visível e
horrível, que me faz ter medo de ir morar com ele até hoje. Fui trabalhar com o
hematoma e a assistente social veio falar comigo, falou sobre relacionamento
abusivo e falou que me colocaria em uma casa de transexual. Eu falei: Meu Deus,
só pode ser aquela casa que eu passo em frente todos os dias.
- Como foi chegar na Casa Florescer?
É a parte que eu mais gosto da história, pois foi uma
guinada na minha vida de oportunidades. A vida é cheia de altos e baixos, mas
tem oportunidades que você precisa abraçar. Uma delas é estar aqui no Florescer.
Quem entender o que é essa casa e o que ela representa na questão política e
social sabe porque ela vem para quebrar estereótipos e preconceitos. Cheguei em
maio, num frio absurdo e pensei: "Meu Deus, vou contar minha história e
acho que eles vão me aceitar". Cheguei encontrei a Edilene, que tem uma
imagem muito forte. Era uma conversa totalmente diferente do que eu vivia no
submundo. Era uma sala, com cortina, veio um kit de higiene e uma coberta
gostosa, confortável. Não era essas cobertas de albergue, que é qualquer
coberta. Eu dormi um sono muito confortável e quando acordei, pensei:
"Aqui vai ser o lugar onde vou conseguir organizar meus pensamentos, que
eu estou tendo oportunidade de mudar minha vida".
- De qual maneira a Casa Florescer tem contribuído em sua
vida?
Primeiro, a assistente social disse que eu estaria protegida
dentro do espaço da casa. Também consegui me empoderar de muitas coisas: do
espaço que eu ocupava no planeta, de quem eu era, do que eu posso fazer, que eu
sou uma mulher como qualquer outra, que eu posso ter minha família, que eu
posso trabalhar, que eu não preciso ir para a prostituição, que eu não preciso
alisar meu cabelo para ser mulher. Aliás, essa mulher fatal é de mídia, longe
da real. Também tirei todos os meus documentos e consegui emprego.
- Como foi ir para o mercado formal de trabalho?
O primeiro durou três meses. Tive uma questão de saúde muito
séria, que foi bagagem da prostituição. A sífilis. E quando eu tomava injeção,
eu teria que ficar internada. Mas não tinha internação. Pensavam: "É
sífilis, que se foda, vai morrer". Só que essa medicação me dava um efeito
colateral que eu dormia em todo lugar onde encostava. O psicólogo chegou a ir
lá conversar com o médico, mas não obtivemos êxito. Daí decidi sair do serviço,
pois sem ter saúde não conseguiria me organizar. Saí, fiz o tratamento de
saúde, comecei a estudar. Mas daí surgiram as necessidades básicas do dia a
dia, vontade de comer alguma comida diferente, de comprar um perfuminho... Me
deu uns cinco minutos, fui sentir o ar, trilhei mais seis meses longe da casa e
retornei. E quando retornei com tudo mais firmado, de que aquele mundo não era
mais pra mim, que daqui a pouco estava com 30 e não tinha nada firmado. Agora a
história melhora, que é quando eu comecei a trabalhar como agente de saúde, sou
responsável por uma cracolândia e lido com todos os tipos de pessoas.
- Você acha que ter tido essa experiência em situação de
vulnerabilidade te ajuda neste novo trabalho como agente de saúde?
Com certeza. É uma ferida aberta - cicatrizada, mas aberta -
que ainda está no meu corpo. Vejo muitas coisas que criam por uma questão de
marketing, que eu tenho que dizer: "isso não funciona. Já fui sua cliente
e posso falar com propriedade que esse serviço não funciona". A pessoa já
entra em pânico. Mas também tenho que aprender que não é sempre que terei
oportunidade de falar. E tenho que aprender a lidar com o dinheiro recebido no
fim do mês. É uma nova maneira de se ganhar o dinheiro.
- O que você diria para as pessoas que costumam a julgar
quando veem uma pessoa em situação de vulnerabilidade?
Às vezes a gente vê uma pessoa na rua e diz: "Olha, um
nóia na rua. "Olha, que mulher vagabunda". "Acho que ela vai
fazer programa para fumar pedra". Peraí: você foi lá perguntar de onde
essa mulher veio? Você foi lá perguntar se ela já comeu alguma coisa hoje? Por
que você não pergunta o nome da pessoa antes de julgar ela? Por que a gente é
assim? Por que esse diálogo previsível? Por que essa visão previsível de ver a
vida, se cada pessoa é mundo, se cada oportunidade é uma oportunidade?
- Oportunidade, você acha que é uma palavra-chave?
É a chave. Eu posso ter uma blusa que é linda, mas que não
cabe mais em mim e que pode ficar ótima nas pessoas. Eu posso ter uma empresa e
posso dar uma oportunidade diferente para alguém. Essa pessoa pode ser
deficiente, pode ser uma transexual, pode ser uma pessoa com perfil muito
diferente, pode ser uma pessoa com tatuagem... A oportunidade é uma coisa
maravilhosa, que muda a vida das pessoas de várias formas. É transformadora.
Mas infelizmente são poucas as pessoas que dão oportunidade para as mulheres
transexuais. E isso é um bafo, pois quem acaba perdendo são eles. Temos
capacidades maravilhosas, somos mulheres muito inteligentes, pois desde muito
novas recebemos muitas pauladas de quatro quinas. Somos jóias lapidadas na base
da quatro quinas.
- Eu te assisti no espetáculo Divas Florescer. Foi a
primeira vez que esteve no palco?
Para mim foi uma oportunidade que transformou a minha vida.
No mesmo ano que eu estive na rua eu também estive num palco, eu vesti um
vestido de pedraria, eu me vi no camarim, e eu escutei gente perguntando da
minha história, do meu nome. Eu me empoderei de uma certa forma que disse:
"Agora os homens não têm vez de querer decidir se eu estarei com cílios
grande, bunda grande, para mim pouco importa a opinião". Divas foi o
empoderamento de ir, soltar, que Deus realmente existe, que a gente é muito
bonita, que a gente pode brilhar. Eu era uma pessoa muito preconceituosa.
- Como assim, preconceituosa?
Eu não me aceitava. Não aceitava ser transexual e não me
aceitava o tom da minha pele. Eu me agredia todo dia alisando o cabelo. Quando
rasparam a cabeça e eu tive que deixar o cabelo crescer, disse: "vou
deixar ele crescer natural".
- Tem alguma coisa que eu não perguntei, que é muito
importante falar?
Eu queria falar sobre um mundo melhor, com mais oportunidade
e do empoderamento das mulheres transexuais. Como diz o texto da peça Divas
Florescer, nós não somos só peito e bunda. Nós podemos ser o peito, a bunda, a
casa, a família, o trabalho, o respeito, a dignidade, a humildade, o amor, a
vida. Nós podemos também falar de Deus, porque somos filhas e somos a imagem e
semelhança de Deus. Ainda que as pessoas queiram nos roubar essa imagem e
semelhança, ainda que a religião venha dizer que a gente é algo do demônio, ora
lá quando Jesus Cristo veio na Terra, os próprios pastores da época, os
fariseus, o crucificaram dizendo que era Deus Zebu, ele sendo o próprio filho
de Deus. Então, quem é essa sociedade para me roubar essa herança? Eu sou a
imagem e semelhança de Deus, sim.
Texto e imagem reproduzidos do site: nlucon.com
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