Publicado originalmente no site Huffpost Brasil, em 29 de dezembro de 2017
Os poderes limitados da razão como agente de mudanças
Segundo o neurocientista Antônio Damásio, somos incapazes de
tomar qualquer tipo de decisão sem antes consultarmos nosso campo emocional.
Por Michele Müller **
A consciência nem tem acesso à maior parte do que está sendo
processado em nosso cérebro e é ali, nesse universo desconhecido da nossa
identidade, que são feitas nossas escolhas.
A sofisticada capacidade de buscar justificativas lógicas
para tudo o que acontece dentro e fora de nós não é, ao contrário do que
parece, a protagonista das nossas decisões. A verdade é que as razões que
arquitetamos por vezes com tanta engenhosidade têm pouca influência sobre a
forma como vivemos – dos hábitos e tarefas que executamos até as pessoas das
quais nos aproximamos.
A consciência nem tem acesso à maior parte do que está sendo
processado em nosso cérebro e é ali, nesse universo desconhecido da nossa
identidade, que são feitas as escolhas que moldam a vida. É dali que surgem o
que chamamos de insights, ali que nascem as paixões, que se forma o senso de
conexão e pertencimento e tudo o que consideramos produto da intuição.
Isso explica por que as melhores ideias são aquelas que dão
a impressão de que nos encontraram, chegaram a nós – e não o contrário. Não
raramente, a forma como respondemos a situações emocionalmente muito
significativas causa o mesmo estranhamento.
Não nos conhecemos tão bem quanto pensamos e os desafios da
convivência social e suas inevitáveis falhas de comunicação nos enviam
constantes pistas desse fato. Para que possamos nos entender melhor é preciso
redefinir o conceito de 'conhecer', conforme conclui o neurocientista David
Eagleman em Incognito – As Vidas Secretas do Cérebro.
"O autoconhecimento requer agora entender que o você
consciente só ocupa uma salinha na mansão do cérebro e que ela tem pouco
controle sobre a realidade que você constrói. A invocação 'conhece-te a ti
mesmo' precisa ser considerada de novas maneiras", avalia.
A sensação de ter o controle absoluto dos próprios atos e
reações pode trazer segurança em alguns momentos, mas ser um peso esmagador em
outros, pois vem com carga de responsabilidade e culpa. Não apenas somos pouco
compreensivos com relação às próprias fraquezas ou falhas: dificilmente
interpretamos os comportamentos dos outros como resultados de fatores que ficam
fora do campo do intelecto.
Como já verificou o neurocientista português Antônio
Damásio, somos incapazes de tomar qualquer tipo de decisão sem antes
consultarmos nosso campo emocional. E nossas emoções são extremamente
suscetíveis aos mais variados fatores, momentâneos ou enraizados: carências
plantadas ainda na infância, dificuldades, alterações hormonais, cansaço, falta
de sono, problemas de saúde e todos os tipos de medos influenciam profundamente
a forma como agimos, pensamos e nos relacionamos.
"Sentimentos, juntamente com as emoções de onde eles
surgiram, não são um luxo supérfluo. Eles servem como guias internos e nos
ajudam a comunicar sinais que também servem de guias aos outros. Não são
intangíveis nem elusivos. De forma contrária à opinião científica, são tão
cognitivos quanto outras percepções", escreveu Damásio em O Erro de
Descartes.
Ao investigar pessoas com danos no sistema límbico, onde as
emoções são geradas, ele percebeu nelas uma incapacidade de fazer até as mais
simples escolhas. A imparcialidade em qualquer tipo de julgamento, portanto, é
sempre suspeita, e até o mais racional dos seres humanos é refém de suas
emoções, mesmo que escondidas timidamente sob o manto da razão.
Por isso, armar embates contra o intelecto, ao superestimar
sua capacidade de controlar o comportamento, em algumas circunstâncias pode ser
muito ineficaz.
Um bom exemplo disso está na dificuldade de mudarmos alguns
comportamentos, tendo a razão nos convencido de que é o que deve ser feito. Não
nos falta o conhecimento de argumentos lógicos que suportem a mudança, nem quem
tente nos influenciar usando racionalidade. Mas a lógica, apesar de
impressionar, é pouco motivadora quando o que se busca é um movimento profundo.
Dentro desse desafio, encontram-se vícios de todos os tipos
– das condenadas dependências químicas às inevitáveis e mais aceitas
dependências emocionais. Seja qual for a forma que assumem, elas surgem da
mesma necessidade, que é a busca por vínculos. Portanto, se o comportamento
nasce e reside na via emocional, é somente por meio dessa via que pode ser
alterado.
Para exercer uma ação transformadora na vida de alguém é
preciso buscar conexão afetiva antes de oferecer qualquer solução baseada na
razão. Isso se constrói pela forma como nos comunicamos. Uma comunicação eficaz
atinge positivamente o campo emocional em um nível subconsciente – algo muito
mais poderoso que a supervalorizada comunicação verbal. O amor e a empatia não
se transmitem apenas com palavras. Elas têm seu papel e podem assegurá-los, mas
pertencem ao universo limitado e questionável da razão.
O desastre mundial no combate à dependência química pode ser
considerado um retrato da nossa insistência em reduzir a importância do afeto
como agente de mudança, colocando-o à sombra do intelecto.
Lutamos, usando palavras e castigos como armas e, quando o
método falha, promovemos o isolamento dos desobedientes. E o vínculo com as
drogas, na falta de outros significativos, torna-se ainda mais necessário.
Aos poucos, a discussão sobre o que o vício de fato
representa está se distanciando do preconceito e oferecendo soluções mais
humanas e eficazes. O caso de Portugal é um exemplo disso: diante da evidente
ineficiência dos tratamentos tradicionais, que partem de um julgamento moral, o
país tomou a inédita iniciativa de descriminalizar o uso de todas as drogas.
A questão passou a ser tratada como um problema emocional e
de saúde. A penalização foi convertida em ações motivadoras, com a atuação, em
casos mais graves, de profissionais da saúde mental e assistentes sociais.
Podemos dizer que 16 anos depois o resultado foi um sucesso. Os índices de reincidência
e uso contínuo de drogas caíram de forma inédita e os casos de morte por
overdoses foram reduzidos drasticamente.
No Brasil, a conquista recente no tratamento da dependência
foi a liberação, pela Anvisa, da importação e uso da Ibogaína, uma substância
psicodélica retirada da raiz de uma espécie de arbusto africano. Até hoje não
se encontrou forma mais eficaz de livrar alguém de algum vício.
Enquanto centros de recuperação alcançam êxito próximo do
zero no abandono definitivo às drogas, o uso da planta oferece, em uma única
sessão, uma taxa de 70% de chance de recuperação. A substância promove
alterações químicas no cérebro favoráveis à mudança, mas seu grande êxito está
em manter o paciente livre do vício – o que pode ser explicado por sua profunda
ação psicológica.
A droga permite o acesso a memórias e a todas as emoções
encobertas pela capa impermeável da lucidez. Atua no nível onde as verdadeiras
transformações ocorrem, como uma sessão intensiva da mais eficaz das terapias –
aquela que age onde a lógica não chega e promove percepções que não cabem em
palavras.
*Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas
do HuffPost Brasil e não representa ideias ou opiniões do veículo.
Mundialmente, o HuffPost oferece espaço para vozes diversas da esfera pública,
garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.
**Jornalista especialista em neurociências e neuropsicologia
Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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