"Pernambuco é um país, uma superpotência cultural,
que vai de Ariano Suassuna a Chico Science"
Foto: Bob Wolfenson/ Divulgação
Publicado originalmente no site JConline, em 07/12/2017
'Política se tornou um fim em si mesmo', diz Fernanda Torres
em entrevista
A atriz falou com o Jornal do Commercio sobre seu novo livro
e temas que são abordados na obra
Por Valentine Herold
Atuando há 35 anos na televisão, Fernanda Torres vem desde
2013 dividindo com o público seu outro talento, o da escrita. Ela acaba de
lançar pela Companhia das Letras seu segundo romance, A Glória e Seu Cortejo de
Horrores (216 páginas, R$ 44,90) e conversou com a repórter Valentine Herold
sobre arte, representação política e sua relação com Pernambuco.
JORNAL DO COMMERCIO - O título do livro é uma frase
conhecida de sua mãe, para quem também você dedica o livro. Ela teve um papel
importante na sua formação literária e na sua decisão de publicar romances?
FERNANDA - Meus pais sempre foram leitores vorazes, mesmo
quando não tinham dinheiro para pagar o aluguel, recém-casados, gastavam o que
não tinham em livros. Eles nunca me obrigaram a ler, mas as estantes da nossa
casa sempre me atraíram, a vontade de saber o que estava escrito naquele monte
de livros. Em “Freakonomics”, o economista Steven Levitt e o jornalista Stephen
J. Dubner afirmam que ter livros em casa, mesmo que os pais não leiam para seus
filhos, influencia no hábito da leitura das crianças. Comigo foi um pouco
assim. Minha mãe sempre escreveu muito bem, ela adaptou romances na rádio,
quando estava em início de carreira e usava o nome Fernanda Montenegro para
diferenciá-lo do de atriz, Arlette Pinheiro. O nome da adaptadora acabou
vencendo. Mas ela nada teve a ver com a minha carreira literária. Foi o Mario
Sérgio Conti, na época editor da Piauí, quem me chamou para escrever na
revista, e acabei colaborando com alguns artigos. Depois a Veja Rio e a Folha
de S. Paulo me chamaram para manter colunas fixas. Acabei chegando à Companhia
das Letras através de um convite do Fernando Meirelles para escrever um conto
sobre a terceira idade. Era um projeto de série para a televisão, que acabou
não saindo. Esse conto se transformou no primeiro capítulo do “Fim”. Eu também
colaborei e escrevi roteiros de cinema, meu lado literário foi uma grande
surpresa, mas não foi uma influência direta da minha mãe.
JORNAL DO COMMERCIO - Parte de "A Glória e Seu Cortejo
de Horrores" se passa ao longo das décadas de 1960 e 1970. Você traça um
panorama social, econômico e político do Brasil de então, inserindo no
cotidiano de Mario Cardoso fatos verídicos da época, como a participação de
Sônia Braga em Hair. Como foi o processo
de pesquisa daqueles anos para a escrita do livro? Você sempre quis que a
ficção dialogasse de certa forma com a realidade?
FERNANDA - Eu queria escrever um livro que refletisse sobre
a potência que o teatro possuía, quatro décadas atrás, e a encruzilhada em que
ele se encontra hoje. O livro acabou extrapolando o teatro, e se transformando
numa reflexão sarcástica da cultura do país nesse quase meio século, visto
através da carreira de um ator. Não pensei em retratar a realidade, nem sei se
existe a realidade, ou só uma fantasia que a gente faz dela. Eu me vali de
muitos artifícios, entrevistei pessoas, visitei um presídio, mas contei muito
com a minha memória, não só do que vivi, como do que me foi relatado. Por ser
filha de dois atores e estar nessa profissão desde os 13 anos de idade, convivi
com muitos artistas mais velhos do que eu. Sei de histórias que vão de Dulcina,
Procópio, até o Asdrubal. Fiz cinema, teatro, televisão, rodei em festivais
pelo mundo. Fui testemunha da crise que se abateu sobre a indústria
fonográfica, com a chegada da internet, que depois se alastrou pela imprensa,
pela televisão, pelo cinema. Cresci num país pós-Ditadura, onde o artista era
considerado o símbolo da justiça, da liberdade de expressão; hoje, a classe
recebe ataques violentos, que vão de mamadora das tetas a esquerdopata. Acho
que essa é a grande potência do livro, mostrar que a cultura de um país não é
um fenômeno isolado, você pode narrar a nossa história, através das agruras de
um ator. Há uma grande dose de fantasia na vida do Mario Cardoso do livro, tudo
é ficção, embora esteja embaralhado com pessoas reais e com fatos verídicos.
JORNAL DO COMMERCIO - Dentre as críticas tecidas ao longo do
romance há uma m particular que conversa muito com a contemporaneidade: a
análise que Mario faz de Campos, o professor de teatro que leva seus alunos à
Zona da Mata pernambucana no intuito de revolucionar o modus operandi dos
cortadores de cana. É possível ver na figura de Campos a hipocrisia de uma
suposta gestão horizontal e que se coloca no lugar do outro. Como você enxerga
as atuais lideranças políticas brasileiras?
FERNANDA - Vejo um vazio imenso. Nós levamos vinte anos para
construir as lideranças que nos representaram nesses últimos vinte anos de
democracia. A passagem de faixa de um sociólogo para um líder sindical, de FHC
para Lula, foi um momento impressionante na história política brasileira. Duas
figuras que lutaram pela redemocratização, um saído do mundo acadêmico, o outro
da classe operária; FHC entregando para Lula um país mais ordenado, com a
inflação controlada. Havia um sentimento de futuro, alcançado depois do caos
absoluto, de tragédias incuráveis, como a morte de Tancredo, como o confisco da
Zélia e o impeachment do Collor. Vinte anos depois, houve a grande decepção:
todos os partidos, à direita e à esquerda, se valeram de esquemas de corrupção,
de superfaturamento de obras públicas e da ineficiência para sustentar a
máquina eleitoral. A política se transformou num fim em si mesmo, ela
sequestrou o país. O catastrófico governo Dilma coroou o fim desse ciclo.
Agora, vivemos essa terra arrasada, feita de líderes sem grande dimensão, numa
espécie de parlamentarismo provisório. A revolta é tamanha, a desilusão, que
parte da população acredita nas promessas simplórias de líderes tacanhos e
autoritários. A política perdeu a grandeza. Acho que enfrentaremos um longo
período de vazio, com a economia ditando as regras, mas sem uma visão maior de
país, cívica mesmo, cultural, educacional, empresarial. Sinto falta de grandeza
de espírito, de sentido de futuro, de projeto de longo prazo, de algo além do
toma lá da cá.
JORNAL DO COMMERCIO - Mario fica muito impactado com a
produção de Hair que ele assiste e chega a dizer que nunca mais foi o mesmo
depois. Você também já ficou fascinada por uma peça em específico? Se sim, qual
foi e em que ocasião?
FERNANDA - O “Seria Cômico se Não Fosse Sério”, adaptação de
Düremat para uma obra do Strindberg, com meu pai, minha mãe e Zanoni Ferrite,
dirigidos pelo Celso Nunes, que vi aos onze anos. O Zanoni tem muito do Mario
Cardoso do livro. O Asdrúbal, que assisti aos doze, no “Trate-me Leão”, foi um
divisor de águas. Todos nós queríamos ser Regina, Luiz, Perfeito, Evandro, Hamilton.
“Macunaíma”, do Antunes Filho, que vi aos treze, seguido do Nelson Rodrigues
que ele montou. O trabalho da dupla Pedro Cardoso e Felipe Pinheiro, quem viu,
nunca esqueceu. Todos os monólogos de Spalding Gray, que assisti em série, em
Nova York, e que me levaram a fazer “A Casa dos Budas Ditosos” sentada numa
cadeira diante de um microfone. “Fool Moon”, com os palhaços David Shiner e
Bill Irwin; Pina Bausch; “Einstein On A Beach,” do Bob Wilson. O “Eu Malvólio”,
de Tim Crouch, um assombro de ator e escritor. Recentemente, a extraordinária
reedição de “O Rei da Vela”, do Zé Celso, com texto de Oswald de Andrade e o
Abelardo de Renato Borghi. “Os Sertões”, do mesmo Zé Celso. Teatro é perigoso,
mas quando acerta, não há nada que se iguale a ele, ao tour de force de um
ator, ao vivo, na sua frente.
JORNAL DO COMMERCIO - O Recife é citado em dois momentos
distintos na história, primeiro na chegada do protagonista a Pernambuco, antes
de seguir para Xexéu, e depois como sendo o local onde ele estava quando o pai
morre. Qual sua ligação com a cidade?
FERNANDA - Algumas cidades brasileiras possuem a força de
terem sido capitais. Salvador, Rio e Recife, a Maurisstad dos Holandeses,
emanam essa potência, possuem um sentido de fundação, de raiz do Brasil. O que
acontece nessas cidades, por mais miseráveis, ou mal administradas que estejam,
como é o caso do Rio, reverbera no resto do país. Pernambuco é um país, uma
superpotência cultural, que vai de Ariano Suassuna a Chico Science, poderosa o
bastante para ter um polo de cinema independente, de onde surgiu Claudio Assis
e Kleber Mendonça. O teatro, a música, as artes plásticas tudo que esse estado
produz é violento, antenado, alucinado, retado, independente, criativo e
revolucionário. O pernambucano não conhece o complexo de vira-lata, eu acho até
que ele tem pena de quem não é pernambucano. Nelson Rodrigues, o mais carioca
dos dramaturgos, é pernambucano; Chacrinha é pernambucano; Luiz Gonzaga, João e
Evaldo Cabral, Manuel Bandeira, é uma lista humilhante. O público de Recife é
um povo culto, crítico, exigente, eu me sinto sempre meio acuada, meio
raquítica, quando estou aí. Recife foi mais do que uma capital, ela foi a
capital do levante contra a coroa portuguesa; isso resiste até hoje, esse
caráter revoltoso, indomável. Pernambuco fundou o Brasil.
JORNAL DO COMMERCIO - Cada personagem que Mario já
interpretou o marcou de maneira distinta porém quase definitiva. É difícil
conseguir se "despir" da personagem após trabalhar um longo período
interpretando-a?
FERNANDA - Se despir é fácil. Você não precisa carregar o
personagem para casa, esse não é o problema, a questão é incorporá-lo, é chegar
nele, se livrar é o de menos. Um ator é
fruto dos personagens que encarnou, das experiências que teve no palco, ou em
frente a uma lente. É o personagem que te dimensiona. Cabe a você fazê-lo
grande ou pequeno, acertar ou falhar, esse é o teste. O Mario fala sobre isso,
quando, muito jovem, consegue dar conta de Astrov, o anti-herói de “Tio Vânia”,
de Tchekov, algo muito maior do que ele. Mario fala do delírio de alcançar
aquele ser mítico, de conseguir virar outro, ser outro, quantos quiser; de ir
além dessa prisão chamada eu mesmo. Isso é uma dádiva que essa profissão te dá,
experimentar ser outro. De vez em quando acontece, de você atingir uma tal
identificação, compreensão do personagem, que não há mais esforço, você pensa como outro, mas é só de vez em quando.
Então, o problema é menos deixar ou não o personagem no fim do dia e ir para
casa, isso não é difícil. A questão é na arena, é ser, ou não ser.
JORNAL DO COMMERCIO - O livro é narrado na primeira pessoa e
o protagonista é um homem de sessenta anos, antigo astro de telenovela agora
com a carreira em declínio. Foi natural ou desafiador para você se colocar como
Mario Cardoso?
FERNANDA - Escrever também é se por na pele de outro. É
menos físico do que o teatro, mais mental. É uma outra anomalia. Eu gosto de
gente falha, em crise, e homens sessentões dão boas crises. Quando escrevi o
capitulo do Rei Lear, que abre o livro, vi que havia encontrado um personagem.
Eu já havia escrito a passagem da Tijuca, quando nem sabia que o Mario seria um
ator. Eu estava um pouco empacada e resolvi escrever o fracasso do Rei Lear
tupiniquim, feito num teatro de shopping, sem ter nenhuma certeza de que iria
usar aquele material. A voz do ator, sofrendo de uma crise hilariante em cena,
provou-se capaz de atravessar uma curva mais longa. Arrisquei juntá-lo à Tijuca
e o Mario ganhou um passado, um trauma familiar, o livro foi se formando. Minha
escrita costuma vir irônica, sarcástica, com certa dose de melancolia. Talvez
eu me sinta livre para falar assim de um homem, a ser violenta com ele, mais do
que eu me sentiria se estivesse narrando uma mulher. Assim como no caso do
“Fim”, que trata de cinco machões hedonistas de Copacabana, escrever na pele de
um homem me ajuda a me afastar de mim, a não ser confessional.
JORNAL DO COMMERCIO - No final do livro você agradece aos
internos do presídio Evaristo de Moraes. Por que?
FERNANDA - Visitei o presídio para compor um trecho
importante do livro. Trecho esse, que nem sairia, se eu não tivesse ido lá. Eu
não tinha ideia da realidade do sistema prisional, era incapaz até de
fantasiar. E a realidade se mostrou ainda mais irreal do que eu poderia supor.
As paredes pintadas da ala evangélica, a dimensão das celas, as camas de
concreto com os colchões sem forro no meio, a superpopulação, o rosto triste
dos presos. Eu tinha muito medo de encarar esse capítulo, mas, quando voltei,
saiu de enfiada, ainda sob o impacto da visita. Eu devo muito ao Evaristo de
Moraes.
Texto e imagem reproduzidos do site: jconline.ne10.uol.com.br
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