quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Um homem do presente

ATITUDE O jornalista participou das grandes mudanças na sociedade brasileira
Crédito: Camilla Maia / Agência O Globo.

LUTA Gabeira (no destaque) foi solto ao ser trocado por ex-embaixador alemão,
 sequestrado. No jornal Lampião, defendeu direito dos gays.
Crédito:Divulgação.




AÇÃO O jornalista foi um dos fundadores do PV, partido pelo qual disputou 
a prefeitura do Rio, em 2008. Acima, com a filha surfista, Maya.
Crédito:Alexandre Sant'Anna/AG.ISTOE.


Publicado originalmente no site da revista Isto É, em 8 de dezembro de 2017.

Um homem do presente

Assim o poeta Ferreira Gullar definiu o amigo Fernando Gabeira, cuja trajetória como jornalista, político e ativista é retratada em um documentário que acaba de ser lançado

Por Andre Sollitto

Quem vê Fernando Gabeira hoje, à frente de seu programa na GloboNews, pode não se lembrar que ele foi o responsável por fundar o Partido Verde, pelo qual se elegeu como o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro em 2006. Ou que ele já foi um militante contra a ditadura militar que participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969, e foi preso, torturado e exilado. Ou, ainda, que causou um escândalo ao aparecer na praia de Ipanema usando apenas uma tanga de crochê rosa em um período em que o país começava a respirar com um pouco mais de liberdade após anos de repressão. Contar a trajetória do jornalista e político – e, principalmente, apresentar seus ideais – é o objetivo de “Gabeira – Eu não fui preparado para a vida doméstica”, documentário de Moacyr Góes.

Filho de libaneses, Gabeira manifestou um espírito contestador ainda criança. Foi expulso de colégios e deixou a cidade de Juiz de Fora, onde nasceu, para viajar ao Rio de Janeiro. Tornou-se jornalista, passou pela redação do Jornal do Brasil e publicou reportagens em outros periódicos da época. Influenciado pelo pensamento existencialista de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986) e pela inclinação política do casal, Gabeira se identificou com os ideais marxistas. Passou a militar pelo Movimento Revolucionário Oito de Outubro, o MR8. “Não éramos adeptos da democracia”, diz ele no filme. O regime era visto por Gabeira e por outros militantes como fraco. “Era preciso uma ditadura do proletariado para que chegássemos em um mundo em que os homens não explorassem os homens”, afirma. Com esse ideal em mente, temas como a liberdade de expressão eram secundários.

Para chegar a um resultado radical, os militantes acreditavam que atitudes extremas eram necessárias. Foi no final de 1969 que um grupo sequestrou Charles Elbrick. Gabeira foi responsável por alugar a casa em que Elbrick ficou, além de levar recados e a lista de presos que deveriam ser libertados em troca do embaixador. “Havíamos sequestrado um símbolo, mas que logo deu lugar a um ser humano”, diz Gabeira no filme. Segundo ele, desenvolveu-se uma relação de empatia entre sequestradores e sequestrado. Em uma entrevista feita com Elbrick dez anos após o ocorrido, o americano diz que ficou impressionado com a dedicação dos jovens. O sequestro levanta debates sobre a validade da ação até hoje, e o documentário não se propõe a colocar um fim na discussão. “É uma crítica contundente ao método da ação armada”, diz o diretor, Moacyr Góes.

Identificado pelos militares, Gabeira tentou fugir e levou um tiro que atravessou seu estômago, fígado e rim. Começou a ser interrogado no hospital e levou choques elétricos enquanto se recuperava. Foi libertado junto com outros 39 presos em troca da soltura do ex-embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, então sequestrado, mas teve que deixar o país. Passou nove anos viajando pelo mundo. Esteve na Argélia, Cuba, Chile e Suécia. Viveu o regime comunista de Fidel Castro e o golpe militar que tirou Salvador Allende do poder no Chile, em 1973.

Com a anistia, retornou ao Brasil em 1979 para causar polêmica – na política e fora dela. No verão de 1980, apareceu na praia de Ipanema usando apenas uma tanga de crochê rosa. Passou também a defender os direitos dos homossexuais e a legalização da maconha, dois temas controversos que lhe renderam apelidos variados que perduram até hoje. Foi um escândalo para a época. “A luta da esquerda era muito associada à virilidade”, diz Gabeira.

Quando voltou ao país após o exílio, fez algumas das primeiras críticas à luta armada, ao mesmo tempo em que passou a militar por outras causas, como a preservação do meio ambiente. Essa revisão de conceitos permeou sua trajetória e ganha intensidade em seus depoimentos no documentário. Foi casado três vezes e teve duas filhas, a psicóloga Tami e a surfista Maya. O filme mostra que ele queria uma vida familiar ao mesmo tempo em que lutava contra o modelo tradicional conservador de família brasileiro.

Continuou defendendo causas alinhadas à esquerda, mas também era a favor da privatização de empresas como a Telerj, vista por ele como um empecilho ao progresso. O apoio à privatização foi considerado uma traição por antigos companheiros de militância. A jornalista Cora Rónai diz no filme, porém, que Gabeira será sempre “uma figura de esquerda”. Já o economista Armínio Fraga afirma que ele é um “liberal com coração”. São definições que mostram uma aparente contradição, mas que para Moacyr Góes apontam uma maturidade de ideias.

“Havíamos sequestrado um símbolo, mas que logo deu lugar a um ser humano” Fernando Gabeira, sobre o sequestro do ex-embaixador americano Charles Elbrick, em 1969
  
Crítica ao PT

Gabeira ajudou a fundar o Partido Verde, em 1986, pelo qual concorreu à presidência três anos depois. Foi filiado ao PT e apoiou a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas abandonou o partido poucos meses depois que o candidato chegou à presidência, em 2003. O rompimento foi polêmico. Gabeira diz que a divergência era insustentável. A ecologia, tema tão caro ao político, era visto pelas lideranças petistas como uma “moda”. Ele chegou a acompanhar uma viagem de celebração da vitória de Lula à Cuba. Segundo Gabeira, ficou claro que eles estavam presos a uma rede de nostalgia.

A vida na política se estendeu. O jornalista concorreu à prefeitura, ao governo do Rio de Janeiro, foi deputado federal por quatro mandatos consecutivos e trocou de partido em diversas ocasiões. Em 2011, ao fim do quarto mandato, decidiu abandonar a política. Defensor da Lava Jato, diz que a operação só escancarou a decadência do sistema partidário brasileiro. Voltou ao jornalismo com seu programa na GloboNews, decisão que pode ser vista como o fechamento de um ciclo. Para um homem que lutou por mudanças tão radicais na sociedade brasileira, hoje, aos 76 anos, contenta-se com um sonho que considera bem mais modesto. “É o sonho da pessoa que procura se distanciar do cinismo.”

Texto e imagens reproduzidos do site: istoe.com.br

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