Chiharu Shiota, Stairway (Reprodução).
Publicado originalmente no site da Revista Cult, em 13 de junho de 2016
O Abuso de Deus
Por Marcia Tiburi
Intolerância e Democracia religiosas no tempo das novas
mistificações
Deus sempre foi usado por pessoas e instituições como uma
espécie de verdade que tudo justifica. Barbaridades e maldades foram feitas em
nome de Deus.
Violências físicas e simbólicas são até hoje realizadas
pelas mais diversas pessoas e religiões em nome de Deus.
Podemos citar exemplos históricos envolvendo intolerância
religiosa, algo que se dá sempre em nome de Deus. Judeus, cristãos e muçulmanos
de tempos em tempos massacram uns aos outros tendo como base a ideia de que o
Deus único no qual creem está mais para o seu lado do que do lado dos outros. A
caça às bruxas medieval, a perseguição a ateus e apostatas, não difere muito da
contemporânea perseguição às mulheres e à homofobia das quais algumas Igrejas –
instituições reconhecidas por sua misoginia – ainda estão cheias. Muitos dos
crimes motivados pelo preconceito e pelo ódio tem como base ideias religiosas e
obscurantistas sobre supostas verdades acerca da natureza humana e da natureza
divina. Deus desde sempre é um tema que, como política e futebol, tem o poder
de reunir fanáticos e separar cidadãos. Deus pode ser um perigo.
Para evitar guerras e violências é que se defende um Estado
laico, um Estado sem religião oficial e que sustente a democracia religiosa, ou
seja, o direito de cada um exercer sua crença respeitando a do outro.
Democracia religiosa é algo que só um Deus amoroso pode desejar. Mas nem todo
mundo usa um Deus bacana, um Deus do bem, para fazer religião, muita gente
quando faz religião nem lembra que um bom Deus possa existir.
Assim é que se usa Deus – que nem imagina o que pode estar
sendo feito em seu nome. Podemos dizer que, em nossa época, “Deus” está
baratinho, pode ser vendido em qualquer esquina, basta alguém resolver
explorá-lo como se explora uma criança na rua ou uma mulher sexualmente. A
cafetinagem de Deus sempre foi um bom negócio.
É assim que, no Brasil, as igrejas crescem como nunca. O
poder religioso exercido pelas igrejas é poder como outro qualquer: violência,
força, dominação, controle para sua própria manutenção. O poder religioso não
vem sozinho, ele implica o poder do dinheiro com o qual as três grandes
religiões sempre estiveram envolvidas. Riqueza e pobreza defendida por uns e
outros em tempos e contextos diversos serve ao poder econômico de poucos, como
sempre. Qualquer igreja, de um modo geral, nada mais faz do que administrar a
fé no contexto do capitalismo. A fé é usada como Deus é usado. Capitalismo é
religião mesmo quando nenhum outro deus além do capital está em jogo, mas
sempre que o capital se confunde com Deus, quando Deus é o próprio capital,
então esse poder é levado a uma potência indescritível.
Diz-me o que fazes com teu Deus e dir-te-ei quem és
Deus é usado e constantemente abusado. Deus pode ser uma
ideia boa quando se faz um bom uso dela. Mas quando se faz um mau uso, essa ideia
causa muitos problemas. Justamente porque Deus é uma ideia incrível e todo
mundo quer usar uma ideia incrível. A ideia de uma Deus único, patriarcal,
soberano, que tudo sabe, que tudo escolhe, que tudo decide, combina muito com a
sociedade humana. Todo mundo quer ficar do seu lado e ter sua proteção.
Porém, nesse contexto, Deus é instrumentalizado pelas
religiões que o usam como uma espécie de poder absoluto. E quem não obedece ao
padre ou pastor, que defende algo em nome de Deus, pode se dar muito mal,
acusado de herege ou banido da comunidade em que a questão religiosa está dada
como fundamental para o convívio e a participação. É como ser vegetariano em um
churrasco.
As liberdades democráticas se exercem de muitos modos, e a
religião necessariamente é uma delas. Isso nos faz pensar que a intolerância
religiosa é um mecanismo de controle social. O fanatismo religioso, nesse
sentido, é sempre muito útil. Muito fácil submeter os outros aos desejos e à
necessidade autoritária que o fanático faz sua. Muito fácil usar o “meu Deus”
como desculpa para todo tipo de violência simbólica ou física.
No Brasil o fundamentalismo religioso está em voga. Se novas
igrejas de todo tipo surgem em cada esquina, é porque isso é permitido no
contexto do Estado laico. Ao mesmo tempo, cresce a intolerância e outros vícios
comuns às religiões. Isso significa que as igrejas que surgem não têm feito
muito bem o seu papel sempre prometido de levar Deus – que deveria ser uma
coisa boa – às pessoas.
Atualmente vemos um elogio das novas igrejas neopentecostais
que dariam um lugar de reconhecimento ao povo invisibilizado. Alega-se que
aquele sujeito invisibilizado por sua condição de classe tem um lugar de
reconhecimento na igreja que ele procura ao deixar seu posto de trabalhador ou
subtrabalhador. As pessoas abandonadas pelo estado e pela sociedade
encontrariam um lugar na igreja. Aqueles abandonados pelas igrejas tradicionais
também. Quem defende esse tipo de ideia tem toda a razão, o desamparo faz crescer
a religião. Mas é uma razão precária e perigosa porque rebaixa o sentido do
reconhecimento. Um trabalhador invisibilizado, uma pessoa desamparada, tem que
ser reconhecido como sujeito de direitos e não como um pobre coitado que tem
que agradecer ao sacerdote que vai extorqui-lo por chamá-lo pelo nome e lhe dar
um olhar como esmola.
Pensa-se nesse tipo de teoria na base do sentimento de pena
para com aqueles cidadãos que são rebaixados pelo sistema, e pelo discurso dos
intelectuais que teriam compreendido o sentimento do povo, a pobres coitados
dos quais pelo menos a igreja se ocupa. Ora, a igreja sempre usa os pobres para
ter poder, como um dia usou os indígenas, como usa as mulheres, como usa as
pessoas que sofrem dando-lhes em troca, quando convém, alguma migalha do seu
poder.
Não estou pregando a impiedade, mas pondo em questão que o
“reconhecimento” como categoria política não pode ser usada para fins
perversos. Respeitar o sofrimento e a dor alheia, ou seja, ter compaixão, não
pode ser tratado como mera piedade que só se sustenta enquanto muitos são
rebaixados a pobres coitados.
Deus, um jogo de linguagem
A ideia de um deus único está envolta em muitos jogos de
poder. Hoje em dia sabemos que jogos de poder são sempre jogos de linguagem.
Jogos de linguagem implicam usos da linguagem.
Deus é um assunto que precisa ser analisado também nesse
sentido, como um dispositivo de poder inserido em um jogo de linguagem. Nossa
questão tem que ser “como se usa Deus” em um jogo de linguagem.
Se Deus existe ou não é uma questão falsa usada com fins
específicos de mistificação. Todas as vezes em que alguém que acredita em Deus
pergunta a um outro se ele acredita ou não em Deus, é provável que espere uma
resposta positiva. Sempre me neguei a participar desses jogos. Todas as vezes
em que me perguntaram se acredito ou não em Deus, preferi analisar a pergunta
do que oferecer uma resposta.
Para certos crentes, sobretudo para os fundamentalistas
religiosos, a hipótese de que Deus não exista não é muito boa. Para um crente
fanático, a ideia de que o outro não acredita em Deus é devastadora. O crente
fundamentalista não suporta que outros não acreditem nele. Porque “seu” Deus
não vale para a sua alma, para os fins da sua subjetividade, mas sim como peça
essencial em um jogo de poder no qual se usa a outra pessoa por meio de Deus.
E, ao fazer isso, o que se faz é usar Deus, é instrumentalizá-lo mais uma vez.
Má fé e ideologia de Deus como abuso
Atualmente, no contexto do mau uso que se faz de Deus,
pastores de igrejas neopentecostais ocupam o poder político no Brasil. Os
pastores parlamentares são, de um modo geral, contrários a todos os avanços
democráticos e aos direitos fundamentais e individuais. Como políticos muitas
vezes são obscurantistas e oportunistas, capazes de desprezar direitos humanos
e minorias e de, ao mesmo tempo, usarem esse espaço de debate e de poder como
sendo sua propriedade.
A bancada evangélica no Congresso brasileiro cresce a cada
eleição. Praticamente não há político, mesmo não sendo evangélico, que não leve
em conta o peso do voto dos fiéis evangélicos em seus processos eleitorais.
A sustentação do Estado laico deveria ser cuidadosa com a
candidatura e a eleição de líderes religiosos, de sacerdotes em geral, padres,
pastores. Do mesmo modo que funcionários da mídia deveriam ser inelegíveis já
que, de antemão, tem o capital espetacular e midiático que sempre pode se
converter em votos fáceis.
A reflexão sobre a religião – que deve ser levada a sério
para ajudar a diminuir a intolerância religiosa – não deve ser confundida com a
crítica objetiva aos pastores evangélicos que passam a fazer política
partidária e, com ela, buscam mudar os rumos do Estado laico que faz bem a uma
sociedade de religiosidade plural. O que vale para juízes, a proibição de se
dedicar à política partidária com vistas à eleição para cargos, deveria valer
também para quem participa do poder religioso, ele mesmo, como todo poder,
essencialmente político.
A relação entre religião e política implica a
instrumentalização de uma pela outra. Isso quer dizer que os fins religiosos
justificam os meios políticos, e os fins políticos justificam os meios
religiosos. A ética, como reflexão sobre a ação, como preocupação com o outro,
é jogada no lixo da história nesse arranjo.
As teorias e práticas obscurantistas de parcela dos pastores
evangélicos em sua bancada cada vez mais poderosa, têm influenciado fortemente
a mentalidade nacional e tem prejudicado a vida de muita gente. Mulheres,
minorias religiosas, sexuais, étnicas, sem falar nas minorias de classe
exploradas economicamente pelas próprias igrejas, estão na mira do que se
configura como o mal radical realizado em nome da própria religião. Por mal
radical define-se o mal que tem como objetivo simplesmente fazer o mal contra
os outros. Uma espécie de mal profundo, um mal que se oculta em palavras
mistificatórias, que não deseja a felicidade dos outros, que objetifica o outro
como uma coisa, é disso que estou falando. O fiel é reduzido a alguém que se
pode usar, seja para pagar o dízimo, seja para angariar o voto. O que está em
cena é o mal pelo uso da fé que é a má fé.
Muitas igrejas sempre usaram de má fé para controlar o povo.
Ao mesmo tempo, contam com a boa fé do povo e a manipulam como se as pessoas
fossem incapazes de perceber o que se passa com elas. A isso podemos chamar de
ideologia da fé. A fé usada para enganar, a fé manipulada, a fé transformada em
mercadoria. E Deus servindo a isso tudo como se fosse um simples fiador. Mas é
nisso que ele é transformado.
Se lembrarmos de propostas tais como a da “cura gay” ou do
vem sendo chamado de “Ideologia de Gênero”, a gravidade da questão fica clara.
As falas homofóbicas, os discursos misóginos (a ponto de se chegar a falar de
estupro em potencial), a guerra contra a legalização do aborto como guerra
contra as mulheres, não inova em nada a velha caça às bruxas da igreja que
odeia as mulheres e homossexuais e que odeia a palavra gênero porque ela é uma
palavra que desmistifica, que desmascara, que faz pensar. O que os pastores
evangélicos têm proposto em diversos aspectos é simplesmente diabólico. Vindo
de gente que se diz da fé, a coisa é ainda mais preocupante.
Essas práticas produzem um evidente controle da vida das
pessoas e pode ser definida como oportunismo ideológico. As igrejas sempre
fizeram isso, não é novidade o que pastores oportunistas das igrejas
contemporâneas do mercado fazem. Apenas reeditam a mistificação e, num golpe de
populismo por ignorância, abusam do povo e, para fazer vingar o seu abuso, usam
Deus como ideologia.
Abusam, portanto, de Deus, mas como Deus não deve existir
para elas, ou existe apenas como mercadoria, não há problema de consciência e
eles seguem praticando o mal.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistacult.uol.com.br
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