O centro cultural cancelou a exposição e ainda
resolveu "ensinar" um pouco de arte na justificativa
Publicado originalmente no site da revista Carta Capital, em 14/09/2017.
Queermuseu e o falso liberalismo de Kim Kataguiri
Por Felipe Arrojo Poroger*
O líder do MBL contraria seu lema "jovem, liberal e legal" no episódio envolvendo a exposição de arte cancelada
Quem tem um familiar bem-humorado, metido a engraçadinho,
certamente conhece a antiga piada sobre a tartaruga que subiu no poste: ninguém
entende como ela chegou lá, nem como é possível que se sustente, mas o certo é
que um dia vai cair.
Substitua o nome do réptil pelo de Kim Kataguiri e talvez
tenhamos uma imagem precisa deste garoto de 21 anos, que, por uma correlação
bizarra de forças sociais, foi alçado à condição de líder político da direita
brasileira quando no processo farsesco que levou ao impeachment de Dilma
Rousseff.
Em entrevista à revista "Istoé", em março de 2015,
Kim dizia querer mostrar que é possível ser “jovem, liberal e legal”. Dos três adjetivos,
talvez consiga certificar o primeiro, por uma questão meramente biológica.
“Liberal e legal” fica por conta do ego. Seu liberalismo é nome acadêmico e
mentiroso para o protofascismo ao qual faz apologia; e sobre o “legal”, bom,
melhor não comentar.
Na última semana, estimulado pelos seus milhares de
seguidores virtuais, Kataguiri, em nome do MBL (Movimento Brasil Livre), do
qual é co-fundador, divulgou um vídeo com os dizeres: “Absurdo! Esquerda tenta
promover pedofilia e zoofilia para as crianças e com dinheiro público”.
Um desavisado, antes de reproduzir o vídeo, poderia formular
em sua mente uma série de imagens do hipotético evento, talvez um grande luau
sindicalista, sediado em um parque de diversão ou em um zoológico, na qual
crimes hediondos seriam cometidos ao som do hino da Internacional Comunista.
Reproduzindo o vídeo, porém, viu-se que o alvo do protesto
era a exposição “QueerMuseu: Cartografias das diferenças na arte brasileira”,
no Santander Cultural de Porto Alegre, com obras de Cândido Portinari, Ligia
Clark, Alair Gomes, Adriana Varejão, Fernando Baril, Bia Leite; artistas em
cujas biografias não constam apreço, nem apologia, a relações sexuais com
animais ou crianças.
O resultado é previsível tanto quanto grave: o centro
cultural cancelou a exposição e ainda resolveu ensinar um pouco de arte na
justificativa – “Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão
positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”, dizia o
comunicado.
Por mais salutar que seja o fato de um banco espanhol
descobrir o propósito da arte, resolvendo um enigma que tira o sono do ocidente
há mais de dois mil anos, o cancelamento não chega a ser uma surpresa: sejamos
honestos, a preocupação social de qualquer instituição financeira dura o quanto
durar a saúde de suas planilhas; é necessária uma dose cega de ingenuidade para
se exigir de um banco sentimentos genuínos de integração de gênero.
Afinal, qualquer política cultural ou social de uma empresa,
ainda mais daquelas cujo mote é a circulação do capital, será somente um agrado
aos clientes que a financiam e aos ânimos do contexto em que está inserida: um
país que tem Kim Kataguiri como líder não pode esperar respeito institucional
aos direitos humanos. E, a este
respeito, não deve haver nenhum pingo de surpresa. Inclusive, é quando se para
de acreditar nas migalhas que um banco oferece que a verdadeira consciência
política dá sinais de vida.
Cabe lembrar, aqui, que, nos interiores do MBL, como mostrou
reportagem da Folha de S.Paulo no último 30 de agosto, há um departamento dedicado a criar memes,
piadas de internet que depreciam e fazem troça da esquerda, exaltando figuras
reacionárias e seu conservadorismo.
Não à toa, no mês de junho, um dos líderes do movimento,
Renan Santos, foi condenado a indenizar
em R$20 mil o jornalista José Roberto Burnier, por tê-lo descrito como "um
esquerdista global de joelhos para o PT" e retratado "como uma
prostituta, oferecendo seus serviços para a presidente Dilma Rousseff".
Quando a representatividade nacional perpassa pela difamação
aleatória, feito tiro de metralhadora, e propagandeada como bom humor, não é de
se espantar que uma exposição artística seja interrompida. Triste é mais uma
vez constatar que um setor considerável da população está cego à índole
daqueles que elege como porta-voz de seus desejos.
Neste contexto de barbárie, que remete ao germinar dos
capítulos mais tenebrosos do século XX, a esperança se configura em duas
frentes: em primeiro lugar, a arte, mais uma vez, revela o seu verdadeiro papel
- ser um instrumento de desobediência civil, responsável por abrir nossos olhos
quando estamos cegos, revelando, neste caso, que a crença na consciência social
de instituições financeiras não passa de discurso de marketing que aprendemos a
engolir.
A segunda esperança é ingênua, claro, mas de sonhos e
expectativas infundadas também vive a humanidade: tudo o que sobe, desce, e estaremos aqui
embaixo, esperando o momento em que a tartaruga, enfim, vai cair.
Aos que ainda conseguem enxergar, resta a vigília constante,
pois a história é sábia em mostrar que as obras, os livros, os filmes são os
primeiros a ir para a fogueira. Na sequência, lançam-se os seus autores.
*Felipe Poroger é diretor do filme "Aqueles Anos em Dezembro"
e responsável pelo Festival de Finos Filmes, mostra paulistana de curtas
Texto e imagem reproduzidos do site: cartacapital.com.br
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