Letícia Monte (Foto: Acervo Pessoal).
Publicado originalmente no site da revista Select Art, em 09/08/2017.
O Brasil ainda é a terra do homem cordial?
Joca Reiners Terron, Letícia Monte, Lilia Schwarcz e Zuenir
Ventura respondem à pergunta feita pela select35
Com graves violações aos direitos humanos, que se refletem
no aumento da violência e da intolerância – o que inclui o recorde mundial em
assassinatos de homossexuais, travestis e transexuais –, a persistência do
racismo e a assustadora escalada da corrupção, que evidencia a insipiência de
nossa esfera pública, gostaríamos de saber: o Brasil ainda é a terra do “homem
cordial”, tal qual definiu Sérgio Buarque de Holanda? A expressão, consagrada
pelo historiador, deriva de cor, cordis (coração), e está relacionada à
predominância da emotividade e da interpessoalidade, inclusive em contextos de
opressão e violência.
Letícia Monte (Artista, diretora e produtora cultural).
Sim, em nossa sociedade cindida e com abismos em tantas
questões — sociais, de gênero, étnicas, para citar apenas algumas —, nosso
comportamento é frequentemente “cordial” no sentido definido pelo autor. Somos
profundamente emotivos, apaixonados e transbordantes, mesmo quando nossas
atitudes resultam em violência, intolerância e violações de direitos:
travestis, homossexuais e transexuais aqui são odiados apaixonadamente. E essa
infeliz paixão talvez explique, em parte, o fato de integrantes desses grupos
serem assassinados em número recorde no Brasil.
Joca Reiners Terron (Foto: Rafael Roncato).
Joca Reiners Terron (Escritor).
Foi encontrada a ossada do “homem cordial” brasileiro:
estava em uma fossa comum, seus ossos estilhaçados se misturaram à terra que o
envolvia, o crânio não passa de terreno arenoso composto de partículas
minúsculas; após análise dentária, é impossível saber de sua extração social;
não havia dentes a examinar, na verdade, pois, provavelmente, já não tinha mais
o que morder; era pobre, não há dúvidas; evidentemente, sua capacidade de
reagir à opressão — da intempérie, dos predadores — se anulara; talvez tivesse
sido deliberadamente anulada por seus dominantes, com falsas adulações,
ignorância disseminada, falta de educação, ausência de direitos de qualquer
tipo. Como subespécie do gênero humano, foi extinto em decorrência de sua
delicadeza e submissão. Já foi tarde, que a terra lhe seja leve.
Zuenir Ventura (Foto: Divulgação, Marcelo Tabach)
Zuenir Ventura (Jornalista e escritor).
É difícil falar em “homem cordial” neste ambiente em que se
exercita cotidianamente todo tipo de violência. A expressão, consagrada por
Sérgio Buarque de Holanda, presta-se à confusão, porque não tem exatamente o
mesmo significado que o senso comum lhe dá, ou seja, não quer dizer
necessariamente boas maneiras, civilidade, delicadeza. O “cordial” a que o
grande historiador se refere deriva etimologicamente do latim cor, cordis, que
significa “coração”, o órgão que comanda as ações com predominância das
emoções. Nesse sentido, o coração pode agir para o bem e para o mal, conforme o
impulso de fundo emotivo que o move. Convenhamos que um país que registra quase
60 mil homicídios por ano e a cada sete minutos pratica violência contra a
mulher não é um país de bom coração.
Lilia Schwarcz (Foto: Renato Parada)
Lilia Schwarcz (Historiadora e professora no Departamento de Antropologia da
USP).
Penso que a questão parte do suposto equivocado de que
Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936), teria usado
“cordialidade” como bondade ou docilidade. No entanto, o sentido não era esse.
Era quase o contrário. Cordialidade não era “elogio” mas sim “problema”. O
historiador mostrava que cordialidade vinha de cor, coração, e dizia respeito
ao problema que os brasileiros têm de inflacionar a esfera privada em
detrimento da pública. Por isso teríamos instituições frouxas e pouco apego aos
partidos, à lei e ao Estado. Se levarmos em consideração o lembrete de Holanda,
o Brasil jamais foi um país pacífico. Como pode ser não violento um país que
foi o último do Ocidente a abolir a escravidão e recebeu 40% dos africanos que
saíram compulsoriamente de seu continente? Como pode ser pacífico um país cuja
concentração de renda e de prestígio parece herdeira do período colonial e do
paternalismo imperante? Infelizmente, o País ainda padece com os sexismos e com
o racismo institucional. Além do mais, a corrupção é o maior exemplo do sentido
(correto) para o termo cordialidade. Ela acaba com as esferas públicas e é o
grande inimigo da República. “Cordialidade” só se for no sentido que Sérgio Buarque
de Holanda deu a ela ainda nos idos de 1936.
Texto e imagens reproduzidos do site: select.art.br
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