quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Um perfil de Leandro Karnal

Leandro Karnal (Foto: Julia Rodrigues/ Época).
 
Reações digitais: 1. Leandro Karnal na controversa ceia com os juízes Sergio Moro e Anderson Furlan Freire da Silva. A foto causou celeuma na rede. 2. Um meme que critica o perfil isentão do historiador. 3. Karnal com um lenço tradicional árabe. 4. Em frente ao Muro das Lamentações (Foto: reprodução).

Publicado originalmente no site da revista Época, em 27/06/2017 

Raiz? Nutella? Sabão de coco? Um perfil de Leandro Karnal

Como o historiador Leandro Karnal se tornou o intelectual mais pop do Brasil investindo num discurso que recusa a facilidade da polarização

Por Ruan de Souza Gabriel. 

O Carnaval está às portas e a praia a poucas quadras dali, mas nada disso anima os papos cariocas num fim de tarde abrasador. No Shopping Leblon, só se fala de um assunto: Leandro Karnal. O intelectual mais pop do Brasil é esperado para uma palestra na Casa do Saber sobre ética e democracia. Um hora antes do início da palestra, quase não há poltronas disponíveis no teatro. Os 900 ingressos – R$ 150 cada – esgotaram com uma rapidez que surpreendeu os organizadores. A plateia é composta sobretudo de mulheres de meia-idade, mas os homens não são poucos e há jovens aqui e ali. Enquanto Karnal não vem, muitos leem Felicidade ou morte (Papirus 7 Mares), escrito a quatro mãos com Clóvis de Barros Filho, outro intelectual que caiu nas graças da opinião pública. No canto do palco, há uma poltrona, alguns livros e uma luminária. Parece o refúgio perfeito para um intelectual que busca encontrar respostas para os dilemas políticos e econômicos da nação – mas o lugar de Karnal é no palco, sob os holofotes. O único momento em que ele se senta na poltrona é quando a palestra acaba e se forma uma fila de gente suplicando por autógrafos e selfies. Karnal atende a todos com polidez e um sorriso no rosto. 

Karnal fala durante uma hora e meia e jamais perde a atenção da plateia. As palmas, as risadas e o que ele chama de “reações bovinas” – “hummmm...” – são frequentes. O professor Karnal conta a história da democracia – da qual ele se diz “fã incondicional” – desde a Grécia Antiga, passando pelos filósofos iluministas, até a redemocratização brasileira nos anos 1980 – ele se lembra com deboche dos governos de José Sarney e Fernando Collor de Mello, mas para por aí “para não ferir suscetibilidades mais recentes”. A explanação é temperada com piadas, causos de sua infância gaúcha e comentários sobre o noticiário, como as prisões de Sérgio Cabral, ex-governador do Rio de Janeiro, e do ex-bilionário Eike Batista, a quem ele chama de “Voldemort 1” e “Voldemort 2”, numa referência ao vilão de Harry Potter. O público cai na gargalhada quando o palestrante repete um conselho da mãe: “Marido e empregado é melhor não trocar, porque vem pior”. Este é o roteiro que Karnal segue em suas palestras: apresentar temas densos, citar autores ilustres e conquistar a plateia por meio do humor.

Karnal tem 54 anos, é solteiro e sem filhos. É alto e forte como um camponês alemão. Sua calvície é famosa e rende trocadilhos como “leandro de saber”, que ele repete em suas palestras e aulas. Nos últimos dois anos, ascendeu como um intelectual público com um séquito de seguidores, uma espécie de pastor a conduzir ovelhas confusas pelos prados esburacados da política brasileira. Doutor pela Universidade de São Paulo (USP) com uma tese sobre as representações religiosas no Brasil e no México do século XVI, ele é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), onde dá aulas sobre história da América. Sua página oficial no Facebook soma mais de 1 milhão de curtidas.

Nascido em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, numa família de classe média e profundamente católica, Karnal quase foi jesuíta, mas trocou o seminário pela sala de aula. Seus alunos são cada vez mais numerosos. Ele não revela quantas palestras dá por mês, mas não são poucas. Em fevereiro, por exemplo, sua agenda estava comprometida até a sexta-feira de Carnaval – e ele voltou ao batente na Quarta-­Feira de Cinzas. Ele também não fala em valores, por motivos de segurança, mas admite que os preços variam muito de uma palestra para outra. Algumas podem sair de graça. Fontes do mercado ouvidas pela reportagem especulam que uma palestra de Karnal pode custar algo em torno de R$ 30 mil. Seus livros vendem bem. Em abril, uma nova edição de Pecar e perdoar: Deus e o homem na história (Harper Collins) chegou às livrarias com tiragem de 30 mil exemplares – dez vezes mais que a média de um autor nacional. Felicidade ou morte vendeu mais de 56 mil cópias. Os quatro livros sobre história e educação pela Editora Contexto somam mais de 130 mil exemplares vendidos. Para o segundo semestre, a editora Planeta prevê um livro que reunirá conversas sobre fé entre Karnal e Fábio de Melo, o padre preferido dos tuiteiros.

Karnal recebeu ÉPOCA em seu escritório no Jardim Paulista, bairro de classe média de São Paulo, uma semana após sua palestra na Casa do Saber. Karnal tem uma melodiosa voz de barítono que segue num tom que quase nunca se altera, como o de um pastor protestante ou um bacharel. Ele responde às perguntas como quem dá uma aula: não se esquece do contexto histórico nem de citar livros e autores – Dostoiévski, Shakespeare, Montaigne, Erich Auerbach – com naturalidade e pronúncia irrepreensível. Ele conta que andar na rua ficou mais difícil desde que começou a aparecer nos jornais e na televisão. Os pedidos de autógrafo, selfies e os cochichos “olha o Karnal!” são constantes. Declarações de amor de moças e rapazes são comuns – alguns tentam apalpá-lo; outros, mais românticos, propõem casamento. Ele confessa que já recebeu um ensaio fotográfico de uma fã só de lingerie – as fotos vinham adornadas com frases dele.

A nova edição de 'Pecar e perdoar' teve tiragem de 30 mil exemplares. Seus quatro livros sobre história e educação venderam 130 mil exemplares. 'Felicidade ou morte', escrito com Clóvis de Barros Filho, já vendeu 56 mil exemplares.

Karnal se equilibra numa posição equidistante dos clichês da direita e da esquerda e investe num discurso moderado que alcança um público amplo e simpático a ideologias diversas – ou a ideologia alguma. Ele rejeita a polarização que emburrece o debate público brasileiro e recusa as respostas monossilábicas, como “sim” ou “não”. Quando querem que ele vista uma camisa e se coloque claramente num dos lados da arquibancada do grande Fla-Flu nacional, ele lembra que é torcedor do Clube Esportivo Aimoré, de São Leopoldo. “Se me perguntarem sobre PT ou PSDB, eu digo, com muita alegria, que não voto e não votarei em nenhum dos dois partidos por motivos parecidos: infrações éticas, incompetência administrativa, jogos de poder nos quais os interesses pessoais se sobrepõem aos da nação”, afirma.

Essa postura de Karnal – recusar o discurso facilitador da polarização – é posta à prova com frequência. Na noite de 10 de março, ele postou, no Facebook, uma fotografia em que aparecia num restaurante curitibano com os juízes federais Anderson Furlan Freire da Silva e Sergio Moro. “Talvez não faça sentido para alguns. O mundo não é linear. A noite e os vinhos foram ótimos. Amo ouvir gente inteligente”, dizia a legenda. A internet tomou um susto: teria Karnal descido do muro? Muita gente de esquerda interpretou a foto com Moro como uma tomada de posição: Karnal escolheu se sentar à mesa com a “direita”. Nessa interpretação rasa, “isentão” virou “coxinha”. A foto foi compartilhada e comentada milhares de vezes. Muitos anunciaram que deixariam de segui-lo nas redes sociais. “As pessoas me viram jantando com Moro e interpretaram aquilo como uma adesão aos coxinhas”, diz Karnal. “Cometi um erro ao não avaliar esse ambiente político polarizado em que qualquer frase que não seja de total simpatia ou antipatia é tomada como traição.” Dois dias depois, Karnal apagou a foto e publicou um “textão” em que reafirmou sua equidistância dos extremos do espectro político e ser um “crítico do racismo, da misoginia e da homofobia, um professor interessado de forma apaixonada na educação”.

Apesar da coreografia que faz para desviar da direita e da esquerda radicais – e que lhe rendeu o rótulo de “isentão” –, Karnal nega ser advogado da neutralidade. “Neutro é sabão de coco”, diz. Karnal tem algumas posições claras: é um defensor da democracia e das liberdades individuais, do casamento igualitário e das cotas raciais. É um opositor radical da “Escola sem partido” – no site do PT, há um vídeo de Karnal no Roda viva, em que ele critica com dureza o projeto. “Eu acredito que o Bolsa Família melhorou a vida dos mais pobres – o que me aproxima da esquerda –, mas, como todo descendente de imigrantes, simpatizo com a meritocracia e desconfio do Estado como promotor da felicidade”, disse a ÉPOCA. A opção pelo bom senso, que evita as simplificações, lhe permite circular por ambientes tão diversos como o Departamento de História da Unicamp e o Shopping Leblon e atingir um público numeroso que não se identifica com os extremos e se encanta ao ver um intelectual que fala de ética e angústias cotidianas sem demonizar o Estado ou o mercado. E que ainda faz rir.

As piadas e as histórias de infância, frequentes em suas palestras, desarmam o público, tornando-o mais receptivo a conteúdos cabeça. Karnal arranca risadas desde menino. No jardim de infância, recebeu o apelido de Leandro Karnaval de uma freira. A docência o ajudou a aprimorar o humor como ferramenta pedagógica. Suas aulas na Unicamp são densas e espirituosas. A reportagem assistiu a uma de suas aulas semanas após a desavença com os patrulheiros digitais. Karnal discorreu sobre o povoamento do continente americano e os povos pré-­colombianos – que apresentaram a batata aos europeus. “Minha avó duvidava que a batata tivesse origem na América, porque não conseguia imaginar o que os alemães comiam antes. Para uma alemã como ela, toda comida era batata e um comentário: batata e salsicha...”, disse. A avó apareceu outra vez na aula. Ela dizia que a família Karnal tinha sangue azul, mas o neto traçou a árvore genealógica da família e só encontrou “camponês, só gente que pagava corveia [tributo em forma de trabalho pago ao senhor feudal]”.

A aula é dinâmica. Karnal faz chamada duas vezes e mostra slides com fotografias, mapas e citações bibliográficas. Diz aos alunos que não é preciso copiar, pois ele disponibilizará os slides depois. O professor evita até mesmo as polarizações históricas. Ele faz questão de falar que 300 mil indígenas de etnias diferentes colaboraram com os espanhóis na derrubada do Império Asteca. “Vamos problematizar mais – é essa a nossa função”, diz aos alunos, usando o termo da moda na academia. A carga de leitura é pesada e as avaliações são difíceis. Os alunos consideram 6 ou 7 notas boas e alguns disseram à reportagem que não se interessam pelas opiniões políticas que o professor emite (ou deixa de emitir) na imprensa ou redes sociais.

Os críticos mais ferozes de Karnal – assim como seus súditos mais devotos – estão nas redes sociais. Uma foto dele ilustra a “Crítica social f...”, uma página no Facebook que aponta o dedo para discursos considerados rasos, sem compromisso político, muito palatáveis e pouco incômodos. No início do ano, circulou o meme “raiz vs. Nutella”, que comparava Karnal com o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997). Ribeiro militou nas fileiras da esquerda – foi ministro de João Goulart e aliado de Leonel Brizola no PDT. Por isso, é “intelectual raiz”. Karnal é o “intelectual Nutella”, que, segundo o meme (leia acima), é do “centrão”, “não se envolve em política”, faz “textão no Face” e dá “palestra motivacional”. Karnal responde à provocação da internet com elogios a Ribeiro – “uma pessoa de primeira grandeza na história do Brasil” – e bom humor: “Nutella é muito mais gostoso do que são as raízes. Não como muito porque engorda, mas Nutella é uma delícia”.

Karnal prefere o título de professor ao de intelectual. “O intelectual é um produtor de conhecimento que rompe um paradigma, estabelece outro e passa a ensinar dentro desse novo paradigma, como Sigmund Freud ou Noam Chomsky”, diz. Ele aproveita o assunto para ensaiar uma genealogia da figura do intelectual público. “O intelectual público nasceu num debate francês do final do século XIX, o Caso Dreyfuss, quando um capitão do Exército, o judeu Alfred Dreyfuss, foi acusado injustamente de espionagem”, afirma. Émile Zola, autor de romances preocupados com a miséria dos trabalhadores de seu tempo, como Germinal, defendeu a inocência de Dreyfuss em artigos publicados na imprensa, como o célebre “J’accuse” (“Eu acuso”, na tradução do francês), que apontava o dedo para o presidente da República e os tribunais. “Zola inaugurou a figura do intelectual militante, que usa seu prestígio para defender uma causa.”

A história brasileira é povoada por intelectuais que ocuparam o espaço público empunhando bandeiras. Nos turbulentos anos que antecederam ao golpe militar de 1964, intelectuais como Darcy Ribeiro, Celso Furtado e Caio Prado Júnior defendiam uma guinada política à esquerda para superar o subdesenvolvimento. Na Nova República, os intelectuais ocuparam a máquina do Estado. Antes de ser presidente, Fernando Henrique Cardoso liderou a intelectualidade de esquerda à frente do Cebrap e foi o “príncipe dos sociólogos”. Nos últimos anos, intelectuais como Karnal se converteram em palestrantes e passaram a usar as redes sociais. Começaram a refletir sobre temas como ética, democracia e felicidade. E se transformaram em alvos das críticas ferozes de quem prefere um engajamento mais efetivo na política. “As mídias sociais chamam alguns intelectuais de ‘isentão’ porque eles não têm ‘sangue nos olhos’ ou não estão implicados numa discussão de modo visceral”, disse o filósofo Luiz Felipe Pondé numa conversa com ÉPOCA sobre os dilemas dos intelectuais públicos no Brasil da polarização. “Quando você frequenta muito o mundo corporativo, é natural que você fique mais ‘isentão’, porque o mundo corporativo quer alguém que anime a convenção, o que pressiona o intelectual a empacotar um discurso que não cause mal-estar em ninguém.”

Mas, afinal, qual o papel do intelectual num país à beira de um ataque de nervos? “Na crise, o papel do intelectual se potencializa”, diz o filósofo Vladimir Safatle. “Há aqueles que vão se aferrar a suas posições e ter posturas reativas e aqueles que vão procurar novas referências. O que se espera de um intelectual é o questionamento dos discursos hegemônicos.” Para o filósofo Mario Sergio Cortella, o papel do intelectual é semelhante ao de um farol no mar revolto: ilumina, mas não aponta o caminho. “Essa é uma das virtudes do professor Karnal”, diz. “Muito se cobra do intelectual que dê satisfações sobre o que fala, a quem adere, aonde vai. Quem tem de dar satisfação é quem tem mandato ou é servidor público, um intelectual representa suas próprias ideias.”

Num tempo em os debates começam pelas conclusões, Karnal lembra que também existem premissas e, em vez de responder “sim” ou “não”, sugere outras perguntas. Ao se sentar à mesa com figuras controversas, como Sergio Moro, ele reafirma um dos princípios da democracia: dar voz à divergência. Para alguns de seus críticos, essa comunhão democrática que não distingue interlocutores se parece com o velho fisiologismo nacional, aquele que não ousa desagradar a ninguém. Karnal não se importa. “As pessoas me perguntam se eu jantaria com Hitler. Olha, eu tenho uma dificuldade quase orgânica com o racismo, mas confesso que, como historiador, se Hitler me convidasse para jantar, eu engoliria os meus sapos e iria – não com felicidade, mas com interesse acadêmico”, diz Karnal, pontuando a frase com uma risada resfolegante. 

Texto e imagens reproduzidos do site: epoca.globo.com

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