Leandro Karnal (Foto: Julia Rodrigues/ Época).
Reações digitais: 1. Leandro Karnal na controversa ceia com os juízes Sergio Moro e Anderson Furlan Freire da Silva. A foto causou celeuma na rede. 2. Um meme que critica o perfil isentão do historiador. 3. Karnal com um lenço tradicional árabe. 4. Em frente ao Muro das Lamentações (Foto: reprodução).
Publicado originalmente no site da revista Época, em 27/06/2017
Raiz? Nutella? Sabão de coco? Um perfil de Leandro Karnal
Como o historiador Leandro Karnal se tornou o intelectual
mais pop do Brasil investindo num discurso que recusa a facilidade da
polarização
Por Ruan de Souza Gabriel.
O Carnaval está às portas e a praia a poucas quadras dali,
mas nada disso anima os papos cariocas num fim de tarde abrasador. No Shopping
Leblon, só se fala de um assunto: Leandro Karnal. O intelectual mais pop do
Brasil é esperado para uma palestra na Casa do Saber sobre ética e democracia.
Um hora antes do início da palestra, quase não há poltronas disponíveis no
teatro. Os 900 ingressos – R$ 150 cada – esgotaram com uma rapidez que
surpreendeu os organizadores. A plateia é composta sobretudo de mulheres de
meia-idade, mas os homens não são poucos e há jovens aqui e ali. Enquanto
Karnal não vem, muitos leem Felicidade ou morte (Papirus 7 Mares), escrito a
quatro mãos com Clóvis de Barros Filho, outro intelectual que caiu nas graças
da opinião pública. No canto do palco, há uma poltrona, alguns livros e uma
luminária. Parece o refúgio perfeito para um intelectual que busca encontrar
respostas para os dilemas políticos e econômicos da nação – mas o lugar de
Karnal é no palco, sob os holofotes. O único momento em que ele se senta na
poltrona é quando a palestra acaba e se forma uma fila de gente suplicando por
autógrafos e selfies. Karnal atende a todos com polidez e um sorriso no rosto.
Karnal fala durante uma hora e meia e jamais perde a atenção
da plateia. As palmas, as risadas e o que ele chama de “reações bovinas” –
“hummmm...” – são frequentes. O professor Karnal conta a história da democracia
– da qual ele se diz “fã incondicional” – desde a Grécia Antiga, passando pelos
filósofos iluministas, até a redemocratização brasileira nos anos 1980 – ele se
lembra com deboche dos governos de José Sarney e Fernando Collor de Mello, mas
para por aí “para não ferir suscetibilidades mais recentes”. A explanação é
temperada com piadas, causos de sua infância gaúcha e comentários sobre o
noticiário, como as prisões de Sérgio Cabral, ex-governador do Rio de Janeiro,
e do ex-bilionário Eike Batista, a quem ele chama de “Voldemort 1” e “Voldemort
2”, numa referência ao vilão de Harry Potter. O público cai na gargalhada quando
o palestrante repete um conselho da mãe: “Marido e empregado é melhor não
trocar, porque vem pior”. Este é o roteiro que Karnal segue em suas palestras:
apresentar temas densos, citar autores ilustres e conquistar a plateia por meio
do humor.
Karnal tem 54 anos, é solteiro e sem filhos. É alto e forte
como um camponês alemão. Sua calvície é famosa e rende trocadilhos como
“leandro de saber”, que ele repete em suas palestras e aulas. Nos últimos dois
anos, ascendeu como um intelectual público com um séquito de seguidores, uma
espécie de pastor a conduzir ovelhas confusas pelos prados esburacados da
política brasileira. Doutor pela Universidade de São Paulo (USP) com uma tese
sobre as representações religiosas no Brasil e no México do século XVI, ele é
professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual
de Campinas (IFCH-Unicamp), onde dá aulas sobre história da América. Sua página
oficial no Facebook soma mais de 1 milhão de curtidas.
Nascido em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, numa família de
classe média e profundamente católica, Karnal quase foi jesuíta, mas trocou o
seminário pela sala de aula. Seus alunos são cada vez mais numerosos. Ele não
revela quantas palestras dá por mês, mas não são poucas. Em fevereiro, por
exemplo, sua agenda estava comprometida até a sexta-feira de Carnaval – e ele
voltou ao batente na Quarta-Feira de Cinzas. Ele também não fala em valores,
por motivos de segurança, mas admite que os preços variam muito de uma palestra
para outra. Algumas podem sair de graça. Fontes do mercado ouvidas pela
reportagem especulam que uma palestra de Karnal pode custar algo em torno de R$
30 mil. Seus livros vendem bem. Em abril, uma nova edição de Pecar e perdoar:
Deus e o homem na história (Harper Collins) chegou às livrarias com tiragem de
30 mil exemplares – dez vezes mais que a média de um autor nacional. Felicidade
ou morte vendeu mais de 56 mil cópias. Os quatro livros sobre história e
educação pela Editora Contexto somam mais de 130 mil exemplares vendidos. Para
o segundo semestre, a editora Planeta prevê um livro que reunirá conversas
sobre fé entre Karnal e Fábio de Melo, o padre preferido dos tuiteiros.
Karnal recebeu ÉPOCA em seu escritório no Jardim Paulista,
bairro de classe média de São Paulo, uma semana após sua palestra na Casa do
Saber. Karnal tem uma melodiosa voz de barítono que segue num tom que quase
nunca se altera, como o de um pastor protestante ou um bacharel. Ele responde
às perguntas como quem dá uma aula: não se esquece do contexto histórico nem de
citar livros e autores – Dostoiévski, Shakespeare, Montaigne, Erich Auerbach –
com naturalidade e pronúncia irrepreensível. Ele conta que andar na rua ficou
mais difícil desde que começou a aparecer nos jornais e na televisão. Os
pedidos de autógrafo, selfies e os cochichos “olha o Karnal!” são constantes.
Declarações de amor de moças e rapazes são comuns – alguns tentam apalpá-lo;
outros, mais românticos, propõem casamento. Ele confessa que já recebeu um
ensaio fotográfico de uma fã só de lingerie – as fotos vinham adornadas com
frases dele.
A nova edição de 'Pecar e perdoar' teve tiragem de 30 mil
exemplares. Seus quatro livros sobre história e educação venderam 130 mil
exemplares. 'Felicidade ou morte', escrito com Clóvis de Barros Filho, já
vendeu 56 mil exemplares.
Karnal se equilibra numa posição equidistante dos clichês da
direita e da esquerda e investe num discurso moderado que alcança um público
amplo e simpático a ideologias diversas – ou a ideologia alguma. Ele rejeita a
polarização que emburrece o debate público brasileiro e recusa as respostas
monossilábicas, como “sim” ou “não”. Quando querem que ele vista uma camisa e
se coloque claramente num dos lados da arquibancada do grande Fla-Flu nacional,
ele lembra que é torcedor do Clube Esportivo Aimoré, de São Leopoldo. “Se me
perguntarem sobre PT ou PSDB, eu digo, com muita alegria, que não voto e não
votarei em nenhum dos dois partidos por motivos parecidos: infrações éticas,
incompetência administrativa, jogos de poder nos quais os interesses pessoais
se sobrepõem aos da nação”, afirma.
Essa postura de Karnal – recusar o discurso facilitador da
polarização – é posta à prova com frequência. Na noite de 10 de março, ele
postou, no Facebook, uma fotografia em que aparecia num restaurante curitibano
com os juízes federais Anderson Furlan Freire da Silva e Sergio Moro. “Talvez
não faça sentido para alguns. O mundo não é linear. A noite e os vinhos foram
ótimos. Amo ouvir gente inteligente”, dizia a legenda. A internet tomou um
susto: teria Karnal descido do muro? Muita gente de esquerda interpretou a foto
com Moro como uma tomada de posição: Karnal escolheu se sentar à mesa com a
“direita”. Nessa interpretação rasa, “isentão” virou “coxinha”. A foto foi
compartilhada e comentada milhares de vezes. Muitos anunciaram que deixariam de
segui-lo nas redes sociais. “As pessoas me viram jantando com Moro e
interpretaram aquilo como uma adesão aos coxinhas”, diz Karnal. “Cometi um erro
ao não avaliar esse ambiente político polarizado em que qualquer frase que não
seja de total simpatia ou antipatia é tomada como traição.” Dois dias depois,
Karnal apagou a foto e publicou um “textão” em que reafirmou sua equidistância
dos extremos do espectro político e ser um “crítico do racismo, da misoginia e
da homofobia, um professor interessado de forma apaixonada na educação”.
Apesar da coreografia que faz para desviar da direita e da
esquerda radicais – e que lhe rendeu o rótulo de “isentão” –, Karnal nega ser
advogado da neutralidade. “Neutro é sabão de coco”, diz. Karnal tem algumas
posições claras: é um defensor da democracia e das liberdades individuais, do
casamento igualitário e das cotas raciais. É um opositor radical da “Escola sem
partido” – no site do PT, há um vídeo de Karnal no Roda viva, em que ele
critica com dureza o projeto. “Eu acredito que o Bolsa Família melhorou a vida
dos mais pobres – o que me aproxima da esquerda –, mas, como todo descendente
de imigrantes, simpatizo com a meritocracia e desconfio do Estado como promotor
da felicidade”, disse a ÉPOCA. A opção pelo bom senso, que evita as
simplificações, lhe permite circular por ambientes tão diversos como o
Departamento de História da Unicamp e o Shopping Leblon e atingir um público
numeroso que não se identifica com os extremos e se encanta ao ver um
intelectual que fala de ética e angústias cotidianas sem demonizar o Estado ou
o mercado. E que ainda faz rir.
As piadas e as histórias de infância, frequentes em suas
palestras, desarmam o público, tornando-o mais receptivo a conteúdos cabeça.
Karnal arranca risadas desde menino. No jardim de infância, recebeu o apelido
de Leandro Karnaval de uma freira. A docência o ajudou a aprimorar o humor como
ferramenta pedagógica. Suas aulas na Unicamp são densas e espirituosas. A
reportagem assistiu a uma de suas aulas semanas após a desavença com os
patrulheiros digitais. Karnal discorreu sobre o povoamento do continente americano
e os povos pré-colombianos – que apresentaram a batata aos europeus. “Minha
avó duvidava que a batata tivesse origem na América, porque não conseguia
imaginar o que os alemães comiam antes. Para uma alemã como ela, toda comida
era batata e um comentário: batata e salsicha...”, disse. A avó apareceu outra
vez na aula. Ela dizia que a família Karnal tinha sangue azul, mas o neto
traçou a árvore genealógica da família e só encontrou “camponês, só gente que
pagava corveia [tributo em forma de trabalho pago ao senhor feudal]”.
A aula é dinâmica. Karnal faz chamada duas vezes e mostra
slides com fotografias, mapas e citações bibliográficas. Diz aos alunos que não
é preciso copiar, pois ele disponibilizará os slides depois. O professor evita
até mesmo as polarizações históricas. Ele faz questão de falar que 300 mil
indígenas de etnias diferentes colaboraram com os espanhóis na derrubada do
Império Asteca. “Vamos problematizar mais – é essa a nossa função”, diz aos
alunos, usando o termo da moda na academia. A carga de leitura é pesada e as
avaliações são difíceis. Os alunos consideram 6 ou 7 notas boas e alguns
disseram à reportagem que não se interessam pelas opiniões políticas que o
professor emite (ou deixa de emitir) na imprensa ou redes sociais.
Os críticos mais ferozes de Karnal – assim como seus súditos
mais devotos – estão nas redes sociais. Uma foto dele ilustra a “Crítica social
f...”, uma página no Facebook que aponta o dedo para discursos considerados
rasos, sem compromisso político, muito palatáveis e pouco incômodos. No início
do ano, circulou o meme “raiz vs. Nutella”, que comparava Karnal com o
antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997). Ribeiro militou nas fileiras da esquerda
– foi ministro de João Goulart e aliado de Leonel Brizola no PDT. Por isso, é
“intelectual raiz”. Karnal é o “intelectual Nutella”, que, segundo o meme (leia
acima), é do “centrão”, “não se envolve em política”, faz “textão no Face” e dá
“palestra motivacional”. Karnal responde à provocação da internet com elogios a
Ribeiro – “uma pessoa de primeira grandeza na história do Brasil” – e bom
humor: “Nutella é muito mais gostoso do que são as raízes. Não como muito
porque engorda, mas Nutella é uma delícia”.
Karnal prefere o título de professor ao de intelectual. “O
intelectual é um produtor de conhecimento que rompe um paradigma, estabelece
outro e passa a ensinar dentro desse novo paradigma, como Sigmund Freud ou Noam
Chomsky”, diz. Ele aproveita o assunto para ensaiar uma genealogia da figura do
intelectual público. “O intelectual público nasceu num debate francês do final
do século XIX, o Caso Dreyfuss, quando um capitão do Exército, o judeu Alfred
Dreyfuss, foi acusado injustamente de espionagem”, afirma. Émile Zola, autor de
romances preocupados com a miséria dos trabalhadores de seu tempo, como
Germinal, defendeu a inocência de Dreyfuss em artigos publicados na imprensa,
como o célebre “J’accuse” (“Eu acuso”, na tradução do francês), que apontava o
dedo para o presidente da República e os tribunais. “Zola inaugurou a figura do
intelectual militante, que usa seu prestígio para defender uma causa.”
A história brasileira é povoada por intelectuais que
ocuparam o espaço público empunhando bandeiras. Nos turbulentos anos que
antecederam ao golpe militar de 1964, intelectuais como Darcy Ribeiro, Celso
Furtado e Caio Prado Júnior defendiam uma guinada política à esquerda para
superar o subdesenvolvimento. Na Nova República, os intelectuais ocuparam a
máquina do Estado. Antes de ser presidente, Fernando Henrique Cardoso liderou a
intelectualidade de esquerda à frente do Cebrap e foi o “príncipe dos
sociólogos”. Nos últimos anos, intelectuais como Karnal se converteram em
palestrantes e passaram a usar as redes sociais. Começaram a refletir sobre
temas como ética, democracia e felicidade. E se transformaram em alvos das
críticas ferozes de quem prefere um engajamento mais efetivo na política. “As
mídias sociais chamam alguns intelectuais de ‘isentão’ porque eles não têm
‘sangue nos olhos’ ou não estão implicados numa discussão de modo visceral”,
disse o filósofo Luiz Felipe Pondé numa conversa com ÉPOCA sobre os dilemas dos
intelectuais públicos no Brasil da polarização. “Quando você frequenta muito o
mundo corporativo, é natural que você fique mais ‘isentão’, porque o mundo
corporativo quer alguém que anime a convenção, o que pressiona o intelectual a
empacotar um discurso que não cause mal-estar em ninguém.”
Mas, afinal, qual o papel do intelectual num país à beira de
um ataque de nervos? “Na crise, o papel do intelectual se potencializa”, diz o
filósofo Vladimir Safatle. “Há aqueles que vão se aferrar a suas posições e ter
posturas reativas e aqueles que vão procurar novas referências. O que se espera
de um intelectual é o questionamento dos discursos hegemônicos.” Para o
filósofo Mario Sergio Cortella, o papel do intelectual é semelhante ao de um
farol no mar revolto: ilumina, mas não aponta o caminho. “Essa é uma das
virtudes do professor Karnal”, diz. “Muito se cobra do intelectual que dê
satisfações sobre o que fala, a quem adere, aonde vai. Quem tem de dar
satisfação é quem tem mandato ou é servidor público, um intelectual representa
suas próprias ideias.”
Num tempo em os debates começam pelas conclusões, Karnal
lembra que também existem premissas e, em vez de responder “sim” ou “não”,
sugere outras perguntas. Ao se sentar à mesa com figuras controversas, como
Sergio Moro, ele reafirma um dos princípios da democracia: dar voz à
divergência. Para alguns de seus críticos, essa comunhão democrática que não
distingue interlocutores se parece com o velho fisiologismo nacional, aquele
que não ousa desagradar a ninguém. Karnal não se importa. “As pessoas me perguntam
se eu jantaria com Hitler. Olha, eu tenho uma dificuldade quase orgânica com o
racismo, mas confesso que, como historiador, se Hitler me convidasse para
jantar, eu engoliria os meus sapos e iria – não com felicidade, mas com
interesse acadêmico”, diz Karnal, pontuando a frase com uma risada
resfolegante.
Texto e imagens reproduzidos do site: epoca.globo.com
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