Fotos: Javier Valado e Italo Cristóvão.
Publicado originalmente no site NLucon, em 11 de junho de 2016.
“Não tenho medo de expor que sou casado com uma travesti”,
diz Rafael Dantas, marido da militante Geovana Soares.
Por Neto Lucon.
Em meio a tantos ataques, desencontros, ferveções, lágrimas,
transfobia e problematizações, é possível também encontrar lindas histórias de
amor. Encontros inspiradores, laços que superam as adversidades e a escolha
permanente de estar, sentir e caminhar juntos. Às vezes, trata-se de um olhar
diferente para quem está ao seu lado e, pronto, tudo muda.
É o caso do relacionamento da militante transfeminista
Geovana S Soares, de 22 anos, e do pizzaiolo cis Rafael Dantas, de 21, que
iniciaram o namoro depois de uma forte amizade e de uma paixão platônica. E que
hoje estão casados.
Há cinco anos, o encontro não poderia ser mais inusitado:
debaixo de uma tenda de festa junina, se escondendo da chuva e se apertando
para que não se molhassem. Olhares, risinhos e alguma insinuação de interesse?
Que nada! Rafael pisou sem querer no pé de Geovana, que devolveu cheia de
irônia: “O pé debaixo é meu”. Pedidos de desculpas e a festa seguiu em Aracajú
com eles separados.
O pizzaiolo conta que se atraiu por Geovana desde o momento
em que a viu. E que assim que chegou à sua casa, depois da festa, tratou de
iniciar uma busca pelo Orkut e MSN (!!!). Convites aceitos, uma proximidade se
iniciou, outros encontros surgiram, mas a amizade era o que prevalecia. Ele
diz, contudo, que o sentimento por Geovana aumentava a cada dia. E que o amor
platônico durou três longos anos.
Após um convite da transfeminista para conversar, Rafael foi
até a casa dela em um domingo à noite. Foi a oportunidade para ambos finalmente
deixarem o coração falar. “Ele estava muito sério e nervoso, e confessou que
gostava de mim. Disse que vinha me amando em silêncio todo esse tempo, e que
aquilo estava sufocando ele, mas que entenderia caso não fosse recíproco. Na
hora eu fiquei tão sem reação que falei que amava ele também”, revela Geovana.
Ele lembra a data exata: dia 6 de abril de 2014. “Foi o que
eu mais esperava: 'Ser retribuído pelos mesmos sentimentos que eu tinha por
ela’. Nessa conversa ela me falou tudo que pensava e sentia por mim, como
também quis saber o que eu sentia e pensava sobre ela. Foi uma longa e
emocionante conversa, sendo ela o início da nossa união e o momento que marcou
nossas vidas”. Ounnn...
Preconceitos e União.
Rótulos! Quem liga para rótulos quando se está apaixonado? O
casal em questão até poderia não se importar, mas houve quem olhasse torto e
que disseminasse o seu preconceito.
Um dos casos que marcaram Rafael foi quando o casal estava
dentro de um ônibus e uma criança apareceu, rindo deles e apontando os dois
para os pais. “Entendemos que era devido à nossa união e pelo fato de a criança
reconhecer que eu estava ao lado de uma travesti”, lamenta.
Pela profissão, ele diz que lida todos os dias com todos os
tipos de pessoas e com todos os tipos de preconceito. Rafael também sofreu
preconceito da própria família, que depois de um longo processo reconheceu e
entendeu a união. “Amigos e a sociedade em geral ainda é um problema referente
a isso. A falta de conhecimento, o desinteresse em entender e a ignorância
motiva o preconceito sobre a nossa união e até mesmo sobre cada um de nós”,
diz.
E como eles lidam com o preconceito? Enquanto Geovana afirma
ser mais explosiva – “estou ficando mais paciente”, Rafael simplesmente ignora
os preconceituosos de plantão. “As pessoas têm de entender que cada um tem a
liberdade e opção de viver a vida como bem quiser. Simplesmente vivo a minha
vida independente do que as pessoas acham ou pensam”.
Namorar uma travesti/Namorar um homem CIS.
Morando juntos há dois anos, Geovana afirma que o mais
complicado de ser casada com uma pessoa cisgênera é que ela muitas vezes não
entende o peso de ser trans no país que mais mata travesti no mundo. E que tem
que estar munida de muita paciência para sensibilizar e ensinar.
Já Rafael alega que o mais complicado é o fato de adentrar
em questões que anteriormente jamais havia pensado. Ele admite que, antes de se
relacionar com Geovana, não sabia sequer a melhor maneira de tratar uma
travesti: ele ou ela. (para os desavisados, é sempre no feminino, viu? É elA).
“Antes eu não entendia sobre o assunto e, hoje, devido ao
fato de ela ser militante, aprendi a entender de verdade a travestilidade. Foi
o melhor aprendizado que tive, afinal hoje posso explicar para as pessoas que
tem dificuldades em lidar com o assunto e vejo o quanto é bom ver as pessoas
falando de maneira correta. Sei da importância da militância, incentivo a
Geovana e participo sempre que possível”, diz.
Ele afirma que considera Geovana muito fofa quando ela dá
palestras e se entrosa com as pessoas dispostas em entender a travestilidade.
“Ela se sente tão feliz que chega a ser fofo a aparência dela. Vejo que luta
pelo que ela representa e pelas outras travestis”.
Na vida a dois e longe das especulações a respeito das
caixinhas "trans" e "cis", a transfeminista diz que se
encanta com o jeito carinhoso e companheiro do marido. “Gosto muito de ver
filme de heróis com ele, pois eu sempre gostei desse tipo de filme”. O
pizzaiolo também afirma que gosta de fazer tudo ao lado da esposa. “Para mim, o
melhor é ficarmos em casa juntos, fazendo de uma coisa bem simples ser a melhor
para nós dois. Na verdade, tudo que eu queira fazer só tem graça com ela ao meu
lado”.
Confissões.
- O que vocês gostariam de dizer um para o outro que não
disseram até hoje?
Rafael: Diria que a amo do jeitinho que ela é e que estarei
junto a ela para bater de frente com o preconceito que as pessoas pregam. A
sociedade precisa entender que não tenho medo de me expor, independente do que
elas pensam por eu ser casado com uma travesti.
Geovana: Diria que sei o quanto sou complicada por conta do
meu jeito de ser. E agradeço a ele pela insistência e paciência depois de todos
esses anos ao meu lado.
Ambos afirmam já se sentirem casados, apesar de não terem
oficializado judicialmente a relação. Geovana diz sonhar com uma cerimônia e
defende que atualmente não pensa em filhos – “depois que fui tia, vi o
trabalhão que dá e prefiro os meus dois felinos”. Mas Rafael frisa que, sim,
“filhos estão nos nossos planos”.
“Queremos mostrar para a sociedade que também somos uma
família, unida, completa, que também sonha, que tem planos e é feliz. Talvez
isso sirva de exemplo para outras pessoas”, declara ele.
Solidão e Homens de Verdade.
Poderíamos ter encerrado o perfil do casal no parágrafo
acima. Mas a história de Geovana e Rafael não reflete a realidade de grande
parte das travestis e mulheres transexuais.
Isso porque, motivado pelo medo de sofrerem preconceito,
pela transfobia e pela construção social cisnormativa, que impõe que
relacionamentos se deêm somente entre pessoas cisgêneras, muitos homens que se
relacionam com a população trans não assumem o relacionamento. Terminam
vivenciando as afetividades construídas através de uma estrutura transfóbica e
até abusiva. Vide homens que evitam sair com suas parceiras trans em lugares
públicos ou que se envolvem com travestis somente entre quatro paredes.
A transfeminista afirma que Rafael é o primeiro homem que
assume publicamente a relação. E que isso é prova de que anda faltando “homens
de verdade” em nossa sociedade. “Isso vale para todos, cis e trans”, aponta.
Para os homens que se interessam por trans, mas que têm medo
do que podem enfrentar, Rafael aconselha: “Não existe preconceito. O que existe
são pessoas ignorantes que desmerecem a felicidade do próximo. O fato de não se
expor por conta do preconceito o torna preconceituoso de si próprio. Sou feliz
por ser quem sou e não escondo nem temo o que as pessoas veem de mim. Não
esconderei jamais o quanto sinto-me feliz, completo e amado cada dia da minha
vida por saber que encontrei a pessoa que se encaixa a mim e que amo de
verdade, sendo ela travesti".
Gente, é muito amor!
Texto e imagens reproduzidos do site: nlucon.com
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