sábado, 5 de agosto de 2017

Casado com uma travesti


 Fotos: Javier Valado e Italo Cristóvão.

Publicado originalmente no site NLucon, em 11 de junho de 2016. 

“Não tenho medo de expor que sou casado com uma travesti”, diz Rafael Dantas, marido da militante Geovana Soares.

Por Neto Lucon.

Em meio a tantos ataques, desencontros, ferveções, lágrimas, transfobia e problematizações, é possível também encontrar lindas histórias de amor. Encontros inspiradores, laços que superam as adversidades e a escolha permanente de estar, sentir e caminhar juntos. Às vezes, trata-se de um olhar diferente para quem está ao seu lado e, pronto, tudo muda.

É o caso do relacionamento da militante transfeminista Geovana S Soares, de 22 anos, e do pizzaiolo cis Rafael Dantas, de 21, que iniciaram o namoro depois de uma forte amizade e de uma paixão platônica. E que hoje estão casados.

Há cinco anos, o encontro não poderia ser mais inusitado: debaixo de uma tenda de festa junina, se escondendo da chuva e se apertando para que não se molhassem. Olhares, risinhos e alguma insinuação de interesse? Que nada! Rafael pisou sem querer no pé de Geovana, que devolveu cheia de irônia: “O pé debaixo é meu”. Pedidos de desculpas e a festa seguiu em Aracajú com eles separados.

O pizzaiolo conta que se atraiu por Geovana desde o momento em que a viu. E que assim que chegou à sua casa, depois da festa, tratou de iniciar uma busca pelo Orkut e MSN (!!!). Convites aceitos, uma proximidade se iniciou, outros encontros surgiram, mas a amizade era o que prevalecia. Ele diz, contudo, que o sentimento por Geovana aumentava a cada dia. E que o amor platônico durou três longos anos.

Após um convite da transfeminista para conversar, Rafael foi até a casa dela em um domingo à noite. Foi a oportunidade para ambos finalmente deixarem o coração falar. “Ele estava muito sério e nervoso, e confessou que gostava de mim. Disse que vinha me amando em silêncio todo esse tempo, e que aquilo estava sufocando ele, mas que entenderia caso não fosse recíproco. Na hora eu fiquei tão sem reação que falei que amava ele também”, revela Geovana.

Ele lembra a data exata: dia 6 de abril de 2014. “Foi o que eu mais esperava: 'Ser retribuído pelos mesmos sentimentos que eu tinha por ela’. Nessa conversa ela me falou tudo que pensava e sentia por mim, como também quis saber o que eu sentia e pensava sobre ela. Foi uma longa e emocionante conversa, sendo ela o início da nossa união e o momento que marcou nossas vidas”. Ounnn...

Preconceitos e União. 

Rótulos! Quem liga para rótulos quando se está apaixonado? O casal em questão até poderia não se importar, mas houve quem olhasse torto e que disseminasse o seu preconceito.

Um dos casos que marcaram Rafael foi quando o casal estava dentro de um ônibus e uma criança apareceu, rindo deles e apontando os dois para os pais. “Entendemos que era devido à nossa união e pelo fato de a criança reconhecer que eu estava ao lado de uma travesti”, lamenta.

Pela profissão, ele diz que lida todos os dias com todos os tipos de pessoas e com todos os tipos de preconceito. Rafael também sofreu preconceito da própria família, que depois de um longo processo reconheceu e entendeu a união. “Amigos e a sociedade em geral ainda é um problema referente a isso. A falta de conhecimento, o desinteresse em entender e a ignorância motiva o preconceito sobre a nossa união e até mesmo sobre cada um de nós”, diz.

E como eles lidam com o preconceito? Enquanto Geovana afirma ser mais explosiva – “estou ficando mais paciente”, Rafael simplesmente ignora os preconceituosos de plantão. “As pessoas têm de entender que cada um tem a liberdade e opção de viver a vida como bem quiser. Simplesmente vivo a minha vida independente do que as pessoas acham ou pensam”.

Namorar uma travesti/Namorar um homem CIS. 

Morando juntos há dois anos, Geovana afirma que o mais complicado de ser casada com uma pessoa cisgênera é que ela muitas vezes não entende o peso de ser trans no país que mais mata travesti no mundo. E que tem que estar munida de muita paciência para sensibilizar e ensinar.

Já Rafael alega que o mais complicado é o fato de adentrar em questões que anteriormente jamais havia pensado. Ele admite que, antes de se relacionar com Geovana, não sabia sequer a melhor maneira de tratar uma travesti: ele ou ela. (para os desavisados, é sempre no feminino, viu? É elA).

“Antes eu não entendia sobre o assunto e, hoje, devido ao fato de ela ser militante, aprendi a entender de verdade a travestilidade. Foi o melhor aprendizado que tive, afinal hoje posso explicar para as pessoas que tem dificuldades em lidar com o assunto e vejo o quanto é bom ver as pessoas falando de maneira correta. Sei da importância da militância, incentivo a Geovana e participo sempre que possível”, diz.

Ele afirma que considera Geovana muito fofa quando ela dá palestras e se entrosa com as pessoas dispostas em entender a travestilidade. “Ela se sente tão feliz que chega a ser fofo a aparência dela. Vejo que luta pelo que ela representa e pelas outras travestis”.

Na vida a dois e longe das especulações a respeito das caixinhas "trans" e "cis", a transfeminista diz que se encanta com o jeito carinhoso e companheiro do marido. “Gosto muito de ver filme de heróis com ele, pois eu sempre gostei desse tipo de filme”. O pizzaiolo também afirma que gosta de fazer tudo ao lado da esposa. “Para mim, o melhor é ficarmos em casa juntos, fazendo de uma coisa bem simples ser a melhor para nós dois. Na verdade, tudo que eu queira fazer só tem graça com ela ao meu lado”.

Confissões. 

- O que vocês gostariam de dizer um para o outro que não disseram até hoje?

Rafael: Diria que a amo do jeitinho que ela é e que estarei junto a ela para bater de frente com o preconceito que as pessoas pregam. A sociedade precisa entender que não tenho medo de me expor, independente do que elas pensam por eu ser casado com uma travesti.

Geovana: Diria que sei o quanto sou complicada por conta do meu jeito de ser. E agradeço a ele pela insistência e paciência depois de todos esses anos ao meu lado.

Ambos afirmam já se sentirem casados, apesar de não terem oficializado judicialmente a relação. Geovana diz sonhar com uma cerimônia e defende que atualmente não pensa em filhos – “depois que fui tia, vi o trabalhão que dá e prefiro os meus dois felinos”. Mas Rafael frisa que, sim, “filhos estão nos nossos planos”.

“Queremos mostrar para a sociedade que também somos uma família, unida, completa, que também sonha, que tem planos e é feliz. Talvez isso sirva de exemplo para outras pessoas”, declara ele.

Solidão e Homens de Verdade. 

Poderíamos ter encerrado o perfil do casal no parágrafo acima. Mas a história de Geovana e Rafael não reflete a realidade de grande parte das travestis e mulheres transexuais.

Isso porque, motivado pelo medo de sofrerem preconceito, pela transfobia e pela construção social cisnormativa, que impõe que relacionamentos se deêm somente entre pessoas cisgêneras, muitos homens que se relacionam com a população trans não assumem o relacionamento. Terminam vivenciando as afetividades construídas através de uma estrutura transfóbica e até abusiva. Vide homens que evitam sair com suas parceiras trans em lugares públicos ou que se envolvem com travestis somente entre quatro paredes.

A transfeminista afirma que Rafael é o primeiro homem que assume publicamente a relação. E que isso é prova de que anda faltando “homens de verdade” em nossa sociedade. “Isso vale para todos, cis e trans”, aponta.

Para os homens que se interessam por trans, mas que têm medo do que podem enfrentar, Rafael aconselha: “Não existe preconceito. O que existe são pessoas ignorantes que desmerecem a felicidade do próximo. O fato de não se expor por conta do preconceito o torna preconceituoso de si próprio. Sou feliz por ser quem sou e não escondo nem temo o que as pessoas veem de mim. Não esconderei jamais o quanto sinto-me feliz, completo e amado cada dia da minha vida por saber que encontrei a pessoa que se encaixa a mim e que amo de verdade, sendo ela travesti".

Gente, é muito amor!

Texto e imagens reproduzidos do site: nlucon.com

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