Foto: AFP Photo/Francois Guillot.
Publicado originalmente no site da revista Istoé Edição 15.06.2017 - nº 2479.
Teremos que inventar um outro modo de fazer política
Por Cilene Pereira e Celso Masson
Prestes a completar 62 anos, o escritor moçambicano Mia
Couto é uma das poucas pessoas no mundo capaz de juntar com beleza e
propriedade assuntos que vão da medicina à ecologia, da biologia à poesia, da
prosa à política. Reconhecido internacionalmente pela qualidade de sua
literatura, Couto divide seu tempo entre os livros, o estudo dos ecossistemas,
as responsabilidades como consultor ambiental e uma imensa curiosidade sobre
como tudo isso, mais o ser humano, está conectado. “Confirmei na ciência o que
suspeitava como poeta: a certeza de um parentesco perdido com o mundo natural,
seja ele tido como vivo ou inorgânico. Não imaginamos, nós seres humanos, o
quanto somos feitos de material não humano”, disse nesta entrevista à ISTOÉ. Na
semana passada, Couto esteve no Brasil para participar do Brain Congress 2017,
evento que reuniu alguns dos principais nomes da neurociência mundial.
Como a neurociência ajuda a explicar o ser humano?
O cérebro é tido como a obra-prima de Deus (ou da Natureza
para os que preferem outra explicação). E, no entanto, sabemos ainda pouco do
seu funcionamento. A neurociência está dando respostas a um mundo de
indagações, está sugerindo os diversos modos de intervenção do cérebro e de
todo o sistema nervoso. Mas não creio que os neurocientistas pensem que vão
explicar o “ser humano”.
Por quê?
Essa expectativa é criada a partir de fora de uma ciência
que conhece bem os seus limites. E aqui pode estar uma questão séria que são as
expectativas sobre o que podemos a curto prazo esperar destas investigações.
Existe uma tentação redutora de ver no cérebro uma máquina que “funciona” por
via de engenhos e mecanismos estruturais. Esperam-se respostas simples,
milagres, receitas de aplicação imediata. Mas o cérebro, ainda que use
mecanismos, atua de forma orgânica, sistêmica e as nossas funções cognitivas
integram outros sistemas como o endócrino e o imunológico, integram o corpo
todo. Num certo sentido, nosso corpo funciona como produtor de conhecimento de
si mesmo e dos outros.
O sr. cogitou ser psiquiatra e chegou a cursar Medicina.
Como entende as doenças mentais?
Estudei Medicina mas nunca acabei o curso. Na época,
surgiram correntes como a da antipsiquiatria que contestavam a ideia de
normalidade mental e, sobretudo, se opunham aos tratamentos de reclusão e de
violência. Mas não tenho competência para falar das doenças mentais. A única
coisa que posso dizer é que me apraz muito os avanços que fizemos em relação à
definição dos padrões de “normalidade”.
Que tipo de progressos?
Ainda há pouco tempo era comum pensar a homossexualidade
como uma enfermidade e no prazer sexual da mulher como uma aberração histérica
a ser controlada. Porém, ainda persiste uma preocupação normalizadora nas
escolas e uma certa pressa de classificar comportamentos de crianças como casos
clínicos. Às vezes, pergunto-me se um poeta como Fernando Pessoa não teria sido
tomado como um desses casos clínicos e entregue a uma terapêutica que lhe daria
um estatuto de “normalidade” mas que lhe roubaria a sua veia poética.
Há exagero no uso de medicações psiquiátricas?
Existe uma tendência de tornar casos “clínicos” as mais
diversas situações. A gravidez é um exemplo. Uma coisa é o direito que as
mulheres conquistaram de terem um acompanhamento da sua condição. Outro caso é
a construção de uma fragilidade que roça a doença e que convida à administração
de medicamentos nem sempre justificados. Há uma pujante indústria farmacêutica
que vive dessa conversão de precauções naturais num sentimento generalizado de
medo e de insegurança.
Quais seus principais interesses como cientista?
Sou biólogo e ecologista. O que me fascina é a fronteira
entre a descoberta científica e a margem de mistério que sempre subsiste. Mas
sobretudo a Biologia me ajudou a repensar-me como pessoa solidária e de
identidades partilhadas. A Biologia ensinou-me a entender outras linguagens,
ensinou-me a fala das árvores, a fala dos que não falam. Resgatei uma
intimidade perdida com criaturas que parecem muito distantes de nós. Hoje em
nenhum lugar me sinto uma criatura solitária. Com ela entendi a vida como uma
história, uma narrativa perpétua de que somos apenas uma pequena parte. Mais do
que tudo ela me trouxe a saúde de pensar que faço parte de uma epopeia
partilhada por milhões de criaturas, e nessa antiga saga não existe nunca um
ator principal.
O sr. afirmou uma vez que os cientistas estão perdendo o
desafio de ter dúvidas. Quais são as suas?
Mais do que dúvidas, tenho receios. Penso que aos poucos a
ecologia tenha sido recuperada e domesticada. A ecologia oferecia uma visão
inovadora e capaz de questionar o homem como centro e proprietário do
patrimônio natural. Hoje generalizou-se uma terminologia simplificada que
confirma esse lugar de pretensos administradores dos patrimônios naturais que
curiosamente são designados por “recursos”. As próprias pessoas são designadas
por “recursos humanos”. O termo “ecológico” passou a ser uma etiqueta de marketing.
Há sabonetes ecológicos, palitos ecológicos. Não tarda que haja armamento
ecológico.
Que consequência isso pode ter?
As questões ambientais foram apartadas e autonomizadas.
Sugere-se que os biólogos sejam espécies de fiéis de armazém no controle desses
recursos. Sugere-se que os ecologistas devam ocupar-se de espécies e hábitats
em extinção. Que fiquem pelas questões “ambientais”. Mas os problemas da falta
do uso e da posse da terra, da água e da fome são também ambientais.
De que maneira a ciência ajuda na sua obra literária e
vice-versa?
Confirmei na ciência o que suspeitava como poeta: a certeza
de um parentesco perdido com o mundo natural, seja ele tido como vivo ou
inorgânico. Não imaginamos, nós seres humanos, o quanto somos feitos de material
não humano. E mesmo nesse lugar sagrado onde se acreditava estar registado o
nosso pedigree distinto de todas as outras espécies, mesmo no nosso genoma mora
a vida inteira.
O que o trabalho como consultor ambiental lhe ensina?
O discurso da preservação é infelizmente necessário. Mas o
assunto verdadeiro não é de preservação mas do uso correto da natureza. O
desafio é terminar com uma economia predadora e não apenas de corrigir os seus
excessos. É importante educar as pessoas sobre o bom uso da água e da energia e
sobre os deveres de limpar e manter limpo. Mas os grandes causadores do
desastre global a que assistimos não são as pessoas comuns. São grandes
indústrias, grandes interesses econômicos que não alterarão a sua atitude por
causa de campanhas de sensibilização.
O sr. tem atuação política importante e vínculo expressivo
com o Brasil. De que forma enxerga o que está acontecendo no País?
Não sou brasileiro e seria uma pretensão opinar sobre
assuntos que são dos brasileiros. A única coisa que posso dizer tem a ver com o
mundo em geral: espera-se da política uma ética, um sentido de missão e de
entrega aos outros. Essa conduta ética tornou-se no mundo todo uma exceção.
Talvez seja necessário falar menos dos políticos para nos preocuparmos mais com
a política. Não aquela que nos é dada a ver pelas mídias mais poderosas que se
tornaram hegemônicas. Teremos todos nós que inventar um outro modo de fazer
política. Qual será esse modo? Não sei. Mas este sistema que se mundializou não
serve.
Uma marca de seu estilo é a criação de neologismos, caso de
“interinvenções”. As palavras que existem na língua portuguesa já não bastam
para expressar o que se quer?
Os idiomas são entidades vivas e raramente são os escritores
que criam mudanças que se tornam registro corrente. São as pessoas comuns. Não
podemos abdicar do direito (e sobretudo do prazer) de sermos co-produtores
desse corpo social. Não se trata de uma questão literária. Mas da possibilidade
de ver no idioma um modo de assumirmos uma identidade solidária e coletiva e em
permanente construção.
Qual sua palavra favorita (inventada ou existente) e o que
ela tem de especial?
Um dia um desconhecido num aeroporto em Moçambique
abordou-me para me dizer que queria oferecer uma palavra. Estranhei mas ele
explicou-se: era um engenheiro de obras e num certa ocasião teve que chamar a
atenção a um operário sobre algo que não estava bem feito. E o homem respondeu:
esta é uma coisa “improvisória”. Este termo é genial. Porque reúne muito do que
somos em Moçambique (e possivelmente no Brasil): improvisamos na lógica do
provisório. Numa única palavra se exprime um modo de uma cultura se dizer a si
mesma. Esta palavra tem mérito para ficar no idioma.
Algum escritor brasileiro o impressiona acima dos demais?
“Acima” é uma posição hierárquica difícil de estabelecer em
literatura. Mas continuo a pensar que na poesia o meu grande mestre é João
Cabral de Mello Neto. E na prosa é João Guimarães Rosa.
Um de seus livros se chama “E se Obama fosse africano?”.
Você por acaso o imaginou como seria se ele fosse brasileiro?
Colocaria a pergunta ao inverso: vocês, como brasileiros
atentos à realidade do seu país, acham que seria provável que o Brasil
escolhesse hoje um presidente que não fosse de raça branca?
Embora seja conhecido como um “escritor da terra”, tanto por
ser biólogo quanto por explorar temas ligados à natureza, há em sua obra um
certo ar fantástico, até surrealista. Como conduzir o leitor entre o real e o
imaginário sem confundi-lo?
Talvez o leitor precise mesmo de ficar confuso, de perder o
pé e ser convidado a procurar um novo chão. Se a obra de arte não fizer isso
ela não cumpre a sua função de nos conduzir a uma viagem, a saltar fronteiras e
a desobedecer certezas. E talvez seja necessário questionar essa construção de
literatura do “mágico” e do “fantástico”. Não existe literatura que não caminhe
com um pé no fantástico e outro no real.
Texto e imagem reproduzidos do site: istoe.com.br
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