Ocupação em escola pública do Rio, em 2016. A desigualdade começa na escola.
Dora Incontri - A escola das elites não ensina pensamento crítico.
Foto: Divulgação/Editora Comenius.
Entrevista - Dora Incontri
"Temos duas educações: uma para a elite e outra para o
povo"
Por Marcos de Aguiar Villas-Bôas
Para especialista, escolas brasileiras são de má qualidade
ou falham em educar integralmente, ensinando o pensamento crítico
Dora Incontri é jornalista pela Cásper Líbero, mestre,
doutora e pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP, sendo hoje uma das
maiores autoridades do País na defesa de uma grande reforma da educação que
considere o ser humano em sua integralidade, proposta baseada em autores como
Comenius, Jean-Jacques Rousseau e Johann Heinrich Pestalozzi, objeto de suas
pesquisas acadêmicas.
A sua proposta educacional, que vem procurando aplicar na
Universidade Livre Pampédia, da qual é coordenadora geral, envolve, por
exemplo, uma perspectiva interdisciplinar, o desenvolvimento da espiritualidade
e a autonomia do ser.
CartaCapital: Você poderia falar um pouco sobre a
Universidade Livre Pampédia e a influência de Comenius?
Dora Incontri: Comenius foi um educador e pensador
visionário do século XVII, que pretendia uma educação universal, integral e
plural. Tinha um projeto de paz mundial, foi o idealizador de um órgão
internacional pela paz, portanto, um precursor da ONU, e queria também uma
língua internacional. Zammenhof se inspirou nele para criar o Esperanto.
A Universidade Livre Pampédia se pretende um espaço
alternativo de educação, em nível superior, cujo objetivo é favorecer vivências
pedagógicas diferentes para adultos e ao mesmo tempo divulgar ideias de
transformação pedagógica e social.
A integralidade e a interdisciplinaridade propostas por esse
projeto de Universidade Livre é inspirada em Comenius; assim, também inclui a
dimensão espiritual do ser humano. Ou ainda, inclui dar voz às diferentes
correntes de pensamento – tradições espirituais diversas, vertentes filosóficas
espiritualistas ou materialistas – num diálogo aberto e aprofundado.
As Universidades convencionais têm guetos ideológicos onde
não se pode penetrar com ideias diferentes – o pesquisador é obrigado a
direcionar suas produções dentro da camisa de força imposta pelo orientador,
pelo departamento, pelo grupo a que o pesquisador pertence. Não há liberdade de
pensamento e de produção. É tudo muito engessado e fechado. Por isso, a ideia
de uma Universidade Livre.
Além disso, eu trabalho com formação de educadores há muitos
anos e percebi que só a aprendizagem de teorias de uma educação diferente da
tradicional não adianta. É preciso que as pessoas experimentem por si mesmas,
como alunos-sujeitos, uma educação alternativa, para poderem praticar ideias
novas.
CC: Como descobriu Comenius, quem dá, inclusive, nome à sua
editora?
DI: Quando estava fazendo minha dissertação de mestrado na
USP, sobre o educador suíço Pestalozzi, pesquisei na Alemanha e na Suíça e me
lembro que um professor da Universidade de Nurembergue me disse: “se você
quiser entender Pestalozzi, leia Comenius.”
Eu nunca tinha ouvido falar de Comenius. E conforme fui
lendo suas obras, fui ficando encantada com sua atualidade, com sua
profundidade. Hoje, quando se fala brevemente em Comenius nas faculdades de
Pedagogia no Brasil, costuma-se apresentá-lo, de modo superficial, como pai da
didática.
No entanto, suas ideias são muito mais amplas e não se trata
de um conceito reducionista de didática; envolvem um conceito de ser humano
integral e integrado, uma concepção de educação universal e permanente, que
deve realizar o ser humano em suas dimensões cognitivas, morais, políticas,
afetivas, sociais e espirituais.
Ele apresenta também uma ideia de pansofia – que poderíamos
traduzir como sabedoria de tudo, entendendo que tudo está conectado no universo
e, portanto, temos que procurar desvendá-lo, interligando nossos instrumentos
de interpretação do mundo: a razão, a observação, a revelação… portanto, a
filosofia, a ciência, a espiritualidade.
CC: Diante da quantidade de informações existente hoje,
seria realmente possível ensinar tudo a todos? Essa não seria uma bandeira mais
bem aplicada quando Comenius viveu, período no qual a maior parte da população
sequer era alfabetizada?
DI: Ao contrário. Somente hoje, com a internet e a
disponibilização aberta do conhecimento, é que se pode oferecer o acesso a esse
"tudo" a que se referia Comenius. Quando ele propunha essa espécie de
slogan, pensava na democratização do conhecimento e não que todos tivessem que
saber tudo. Tinha muitas ideias interessantes a respeito, algumas das quais só
são possíveis de realizar num mundo global, interconectado e virtual, como este
em que vivemos.
Essas ideias estão no livro de sua autoria que, pela
primeira vez publicamos no Brasil, em 2014, Pampédia. Uma obra-prima que,
claro, têm seus contextos históricos, mas que também traz muitas propostas
ainda atuais e necessárias. Temos um outro livro publicado pela Editora
Comenius, de Luis Colombo, que trata dessa questão de como só o mundo virtual
pode traduzir plenamente a ideia comeniana: Comenius, a Educação e o
Ciberespaço.
CC: Você entende que há uma linha de continuação em
Comenius, Rousseau, Pestalozzi e Rivail? O que os une?
DI: Eu defendi essa linha de descendência intelectual em
minha tese de doutorado na USP – sobre Pedagogia Espírita – e ela não é de
jeito nenhum arbitrária. É histórica, em primeiro lugar, porque Hippolyte Léon
Denizard Rivail (depois Allan Kardec) estudou com Pestalozzi no castelo de
Yverdon e foi mais tarde divulgador de sua pedagogia na França.
Pestalozzi, por sua vez, cita textualmente em suas obras sua
dívida para com Comenius e Rousseau. Há várias ideias comuns que perpassam
esses autores. Vou citar algumas: foram eles que firmaram, muito antes de
Piaget, a concepção de que a criança é um ser em desenvolvimento e precisa ser
observada e tratada como tal. Antes desses grandes educadores, as crianças eram
consideradas adultos em miniatura.
Todos eles também encaravam a educação como instrumento de
transformação social. Estavam preocupados com as injustiças sociais de suas respectivas
épocas – como devemos estar também ainda hoje, porque, infelizmente, as
injustiças continuam – e desejavam uma sociedade melhor.
Eles também enxergavam na educação um meio de viabilizar o
projeto de um mundo mais igualitário e fraterno. Todos também propunham para
isso uma educação diversa da tradicional, que vem sendo praticada até hoje, uma
espécie de formatação do ser humano para a submissão e o trabalho no mercado.
Eles queriam uma educação em que a criança pudesse
desenvolver suas potencialidades de maneira autônoma, integral, com liberdade e
afeto. Comenius trata mais da integralidade. Pestalozzi e Rivail o seguem.
Rousseau trabalha muito a ideia de liberdade e Pestalozzi foi o grande
introdutor do afeto na educação. Ele próprio, amorosíssimo, fez do amor
pedagógico um dos pilares de suas práticas.
CC: Considerando que o foco na experiência, e no
desenvolvimento das faculdades naturais por meio dela, era um dos pilares da
educação daqueles autores; a educação dogmática, teórica e abstrata do Brasil
seria bastante contrária à proposta deles e um dos seus principais problemas?
DI: Difícil dizer quais os principais problemas da educação
no Brasil. Mas, pincemos alguns, que saltam à vista. Primeiro, desde a chegada
dos portugueses aqui, sofremos de duas doenças crônicas:
1) não somos uma sociedade que valoriza a educação, por
isso, não há investimentos, vontade, muita gente engajada em trabalhar por uma
educação melhor…
2) temos duas educações: uma para a elite e outra para o
povo, que permanece sem acesso a uma escola minimamente de qualidade. Esforços
aqui e acolá, idealistas e militantes aqui e ali, mas, no grosso, temos uma
elite educada em escolas razoáveis – apesar de que não formam integralmente,
nem eticamente, nem com autonomia e pensamento crítico – e temos uma escola
pública de má qualidade, porque não interessa aos poderes instituídos que a
população aprenda a pensar.
Durante alguns períodos da história, houve uma escola
pública melhor, quando a classe média a frequentava, mas estamos vivendo um
momento sombrio em que o que restava de uma proposta de escola pública um pouco
razoável está sendo desmontado por esse (des)governo, que chegou para deixar um
marco escuro na história do Brasil.
Isso, quanto aos aspectos políticos e sociais da educação
brasileira, quanto aos métodos de ensino, quanto à maneira como é feita a
escola, sejam as públicas, sejam as particulares, a quase totalidade delas está
dentro do modelo tradicional, com lousas, carteiras enfileiradas, provas,
notas, aulas desinteressantes e descontextualizadas de 50 minutos – escolas em
geral feias, sem verde, sem liberdade de escolha, chatas e completamente fora
do século XXI. Para, de fato, mudar o Brasil pela educação, temos que torná-la
nossa prioridade, familiar, pessoal, coletiva, social, política e temos que
reinventar a escola. E a escola tem que ser centrada no ser humano, no seu
desenvolvimento, e não no conteúdo, no vestibular, no mercado…
Texto e imagens reproduzidos do site: cartacapital.com.br
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