Foto: Fernando Cavalcanti.
Tirinhas de Laerte Coutinho.
Publicado originalmente no site do EL PAÍS, em 15 de janeiro
de 2016.
Laerte Coutinho e as duas caras do Brasil
A cartunista virou referência na luta do coletivo
transgênero no Brasil
Por Raquel Seco
A primeira vez foi um passeio curto. Laerte Coutinho (São
Paulo, 1951) vestiu uma saia e uma blusa e caminhou até um café de seu bairro.
Notou olhares, ouviu assobios, um ou outro xingamento por trás, mas não foi tão
grave como esperava. “Pensava que seria atacada, ridicularizada”. A cartunista
brasileira, muito conhecida depois de quatro décadas de trabalho em jornais,
passou um ano usando roupa feminina em um clube de travestismo. Até que saiu do
armário em 2010, durante uma entrevista, e decidiu que não voltaria a entrar.
Sua primeira experiência à luz do dia foi aquele passeio até o bar da esquina.
Diz que lhe pareceu “aterrador”.
O medo era justificado. No Brasil, 689 transexuais foram
assassinados entre 2008 e 2014, segundo a ONG Transgender Europe. É a cifra
mais alta do mundo, de acordo com seus dados, embora a organização não tenha
informação sobre todos os países. Nos últimos anos houve melhoras: as cirurgias
de redesignação de sexo, proibidas no Brasil até 1997, hoje são feitas em
vários hospitais públicos. Também é possível mudar de nome legalmente _na
verdade, desde que se comprove algo chamado “transtorno de identidade”. São os
paradoxos de um país frequentemente visto de fora como sexualmente liberado: “O
Brasil é muito desigual e ambíguo. Convivemos com grandes liberalismos e
extremas repressões e agressividade para a população LGBT, as mulheres, os
negros, as minorias…”, diz, com as unhas bem feitas, tocando os cabelos e
chamando o gato.
Laerte atribui parte da intolerância a uma onda de
conservadorismo político que tenta restringir o conceito de família a uniões de
homens e mulheres ou tornar ainda mais difícil a interrupção da gravidez (já
praticamente impossível de conseguir de forma legal). “Quem esse Congresso
representa? Tem a proporção de negros que tem a população brasileira? Não. A
proporção de mulheres, de LGBT, de indígenas…? Não. O que existe é um bando de
empresários brancos ricos que não representa a sociedade”, ressalta.
Laerte defende sua
luta tanto na Associação Brasileira de Transgêneros que ajudou a criar, como na
Folha de S. Paulo, onde publica charges diárias, e frequentemente na capa. Em
2013 posou nua na revista Rolling Stone. Um ano antes protagonizou uma polêmica
porque uma mulher a recriminou por usar o banheiro feminino de uma cafeteria. O
gerente lhe pediu que usasse o masculino. “O banheiro é uma questão crucial. A
gente pode até permitir que um transgênero circule no mesmo espaço social, mas
o banheiro é tabu. Os conservadores chegaram a propor um terceiro banheiro:
para gente estranha. Para alienígenas”, brinca. Soou a resposta de um famoso
colunista da revista Veja e Folha, Reinaldo Azevedo, que a acusou de
representar as “microditaduras das minorias” e se referiu a ela como “um homem
que anda por aí vestido de mulher”.
Em geral, contudo, Laerte é bem recebida. “Tratam-me com
muito respeito e carinho. Surpreende-me muito constatar isso em um país que
mata travestis de forma bárbara e trata as mulheres de forma bárbara. Penso:
sou uma privilegiada porque sou branca, jornalista, conhecida? Quando fiz a
transição estava em meu momento de maior popularidade. E não perdi leitores”.
Converteu-se na cara da comunidade transgênero no Brasil. “É importantíssimo
que existam modelos positivos. Eu nunca os tive quando jovem. Existir de forma
tranquila, assumindo identidades antes proibidas, é transgressor e produz
resultados”, afirma.
Ainda muitos a tratam por ele, mas não se incomoda muito.
“Meus filhos e meus amigos de décadas usam o masculino. Não tenho problemas
porque são pessoas que amo, com quem tenho uma história. Não sinto a
necessidade de dizer: ‘de agora em diante meu nome é Sônia”. O nome foi
escolhido em 2009, sem pensar muito, olhando-se no espelho. Mas o deixou de
lado, em parte porque seu público a conhece como Laerte. “Não deixei de ser o
que sempre fui. Sou conhecida como um cartunista, um jornalista até os 60 anos
e depois uma mulher, uma pessoa transgênero que também é jornalista e
cartunista. Não me incomoda minha história masculina. O que tenho é um grande
apreço por minha identidade feminina. Cada vez mais”.
Descobriu sua identidade em 2004 através de seu trabalho.
Publicou uma charge onde um homem maquiado, de salto alto, dizia: “Às vezes um
cara tem que se montar”. Uma leitora lhe disse que, caso a charge fosse
autobiográfica, existia um lugar onde podia experimentar, o Brazilian
Crossdresser Clube, que Laerte frequentou por alguns anos. Foi mordida pela
curiosidade. “Bendita Internet”, suspira. Com o tempo passou do crossdressing
(vestir-se com elementos normalmente associados a outro gênero) a assumir-se
como trans. Mas opina que os rótulos não devem limitar porque “a cultura de
gêneros é opressiva para homens e mulheres”. Aos 64 anos continua descobrindo a
si mesma. “Como me construo, como me apresento, quanta mulher sou e que tipo de
mulher sou… Essas perguntas não têm fim”.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com/brasil
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