Publicado originalmente no site da revista Veja, em 31 mai 2017.
Eutanásia, um ato de amor
Abreviar a vida de quem sofre terrivelmente, sem perspectiva
de melhora, pode ser a melhor resposta que um médico por dar. E a experiência
holandesa mostra que a legalização da prática não a banaliza
Por Rob Jonquière*
É CLARO QUE A PRIMEIRA VEZ QUE UMA PESSOA ME FEZ UM PEDIDO DE
EUTANÁSIA E EU DECIDI REALIZÁ-LA NÃO FOI O MOMENTO MAIS FÁCIL DA MINHA VIDA. Eu
ainda posso lembrar do sentimento daquele exato momento, das decisões que
tivemos de tomar no processo, de como as discussões aconteceram, até o instante
em que a injeção final aconteceu.
O paciente tinha em torno de 55 anos e sofria de um caso
terminal de câncer – estava simplesmente esperando para morrer. Eu não tinha
completado 30 anos ainda, era um jovem médico que acabava de sair da faculdade.
Ele me perguntou se eu estaria preparado para seguir com o processo de
eutanásia, porque o sofrimento havia se tornado intolerável. E eu entendi que
ele tinha o direito de fazer aquela escolha. A trajetória, dessa primeira
pergunta até a hora em que eu realizei a eutanásia, durou seis meses – trata-se
de uma orientação contínua até o momento final.
Não tenho nenhum arrependimento de ter feito. Nos dois casos
em que pratiquei a eutanásia, senti que estava feliz de dar a resposta correta
à pergunta mais íntima que um paciente pode fazer. E de deixar eles morrerem de
uma forma digna, em vez de mantê-los sofrendo em vão. Nunca, por um
milissegundo, tive qualquer dúvida sobre essa causa.
No mundo inteiro, inclusive no Brasil, os médicos conduzem
procedimentos para dar fim à vida quando um paciente sofre de forma inevitável
e pede: “Doutor, por favor faça alguma coisa!”. A diferença deles em relação à
Holanda, primeiro país a legalizar a prática, é que a eutanásia virou assunto
no país europeu. Em 1973 uma médica que realizou eutanásia foi processada,
recebeu uma sentença leve e a discussão se tornou nacional. Com a visibilidade,
outros médicos foram processados até que um caso chegou à Suprema Corte, que
aplicou uma pena branda. Criou-se jurisprudência sobre o assunto, até que em
2000, com o auxílio de organizações não-governamentais, o governo aprovou uma
lei para tornar a eutanásia uma prática regulada sob critérios rígidos a fim de
coibir abusos.
Primeiro, é preciso ter uma solicitação - a própria pessoa
deve pedir para morrer, e ninguém mais pode pedir por ela. Nenhum membro da
família, nenhuma outra pessoa. O médico é responsável por observar se se trata
de pedido voluntário e genuíno, ou seja, se o indivíduo realmente pensou nisso
por si próprio.
O segundo critério é que o paciente deve estar em uma
situação de sofrimento insuportável, sem nenhuma perspectiva de melhora. Se o
médico concluir que o sofrimento é irreversível, ele deve submeter o pedido à
consulta de um segundo médico independente, informar o paciente sobre todas as possíveis
decisões alternativas e reportar o ato da eutanásia às autoridades. É claro que
há a possibilidade de arrependimento. Por isso, o processo é longo, e o
paciente pode a qualquer instante dizer: “Eu me arrependo dessa decisão e não
quero mais fazer”.
O método utilizado é a injeção com medicações que param o
funcionamento dos músculos, o que causa a morte. Não dói. Antes de usar a
medicação, os médicos são obrigados a induzir um coma profundo, para que o
paciente não perceba quando a substância é introduzida no corpo. A prática
normal na Holanda é que o médico, no momento em que vai iniciar o procedimento,
olhe para o paciente nos olhos e pergunte: “É isso que você realmente quer?”.
Se o paciente apresentar qualquer sinal de hesitação, o médico para o processo
imediatamente.
"Nos dois casos em que pratiquei a eutanásia, senti que
estava feliz de dar a resposta correta à pergunta mais íntima que um paciente
pode fazer"
É comum que as pessoas temam que tudo se transforme em uma
bola de neve: começa com um pequeno número, a sociedade se acostuma e a prática
se torna banal. Na Holanda, que tem 40 anos de experiência desde que a
eutanásia começou a ser tratada com tolerância pelo Estado, não há nenhuma
evidência disso. O crescimento é muito sutil e, no ano passado, 5,5 mil casos
foram registrados. Isso corresponde a cerca de 3% das mortes no país.
A eutanásia não se tornou uma rotina, e sim uma situação
normal em que os médicos ajudam o paciente a morrer sem sofrer tanto. Vemos
que, desde o início até hoje, cerca de 85% dos casos acontecem por causa de
doenças terminais terríveis, em que o paciente deveria morrer em até duas
semanas após a eutanásia.
O argumento-chave utilizado por quem se opõe à eutanásia é a
crença de que Deus é o único possuidor do direito de dar fim a uma vida que ele
próprio deu. Não brigo com isso. Minha resposta é: se você não aprova a
eutanásia, não faça. Na Holanda, a Igreja é contra essa prática. Mas um a cada
dez católicos aprova a lei. É a solução ideal.
Os pacientes precisam ter opção de viver dignamente, até o
fim, sem a obrigação de esperar que a natureza encerre a vida de forma
horrível, desumana e sofrida. A eutanásia pode, sim, portanto, ser considerada
um ato de amor. É a mais difícil decisão que um paciente pode fazer. E se o
médico dá seu aval, é porque ele tem empatia com o paciente que diz “eu não
quero mais continuar nesta vida nesse estado, considero que isso não é humano e
quero que termine”. É preciso amar meu paciente para fazer isso.
Muita gente pensa que o médico é que decide se essa vida
vale a pena ser vivida ou não. Eu diria que ninguém toma essa decisão além da
própria pessoa que vai morrer. E se ela não pedir expressamente, não há
eutanásia. Tudo depende de como você interpreta o juramento hipocrático. A
Declaração de Genebra, adotada pela Associação Mundial dos Médicos em 1948, não
determina que o médico deve estender a vida a todo e qualquer custo. E sim que
deve respeitá-la. O objetivo do médico é diminuir o sofrimento. E em alguns
casos, a única forma de tirar esse sofrimento terrível é dar fim à vida. São
pessoas que estão doentes, estão ficando piores e vão morrer. E elas devem
poder fazer a escolha de quando irão morrer.
* Rob Jonquière, médico, diretor da World Federation of Right to Die Societies, organização baseada na Holanda que reúne ONGs pró-eutanásia de 52 países.
Texto e imagens reproduzidos do site: veja.abril.com.br
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