quinta-feira, 15 de junho de 2017

Como a sua empresa enxerga a diversidade?


Publicado originalmente no site da revista Época Negócios, Junho/2017.

Comportamento.

COMO A SUA EMPRESA ENXERGA A DIVERSIDADE?

GAYS E TRANSGÊNEROS – ALÉM DE MULHERES E NEGROS – GANHAM MAIS ESPAÇO NAS CORPORAÇÕES. E A ASCENSÃO DESSA MINORIA TEM CADA VEZ MENOS A VER COM O “POLITICAMENTE CORRETO”: É UMA QUESTÃO DE PRODUTIVIDADE E INOVAÇÃO

DUBES SÔNEGO E RAQUEL GRISOTTO. FOTOS ROGÉRIO ALBUQUERQUE.

A atriz Carolina Ferraz não é o que se pode considerar um alvo típico de ataques preconceituosos. Ícone de beleza e elegância, ela preenche bem a série de quesitos que, no imaginário brasileiro, formam o estereótipo da pessoa admirável e bem-sucedida: é branca, magra, talentosa – e heterossexual, casada, com duas filhas lindas. Talvez por isso tenha causado tanto mal-­estar a muitos empresários quando, tempos atrás, decidiu bater à porta de alguns deles, pedindo dinheiro para seu mais recente projeto: A Glória e a Graça, filme no qual interpreta uma travesti.

Em seu périplo por financiamento ouviu de diferentes executivos frases do tipo: “Você é uma mulher tão bonita, com uma reputação tão boa. Para que fazer um negócio desses?”. Ou: “Isso vai acabar com a sua imagem”. Mesmo acostumada a dificuldades na hora de levantar recursos para montar projetos culturais no Brasil, Carolina, nessa experiência, espantou-se. “Foi horrível ouvir que fazer uma travesti iria prejudicar minha carreira. Eu já interpretei uma dondoca horrorosa, que assassinava pessoas para conseguir o que queria. Por que isso não foi ruim?”, questiona Carolina, referindo-se a Norma Gusmão, personagem de 2008, que terminou a novela gritando “Eu sou rica”, tornando clássico o bordão. O conceito de integridade, pelo visto, anda um pouco distorcido no país. “Parece que, no geral, a sociedade não está preparada para abraçar as diferenças”, afirma Carolina.

A situação vivida pela atriz retrata uma realidade do mundo corporativo que, no Brasil, costuma ganhar cores dramáticas: a rejeição de parte do empresariado a tudo que é considerado minoria ou diferente. A dificuldade em aceitar lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs) é apenas a parte mais evidente de um dilema que envolve ainda mulheres, negros e pessoas com deficiência (PcDs).

É comum ouvir por aqui que não existe preconceito contra negros e que as mulheres têm as mesmas oportunidades de ascensão na carreira. Ainda assim, as empresas estão longe de representar adequadamente o perfil demográfico do país em seus quadros. Principalmente, quando se sobe na escala hierárquica. Em 2016, o Instituto Ethos e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) publicaram um estudo baseado em dados das 500 maiores empresas brasileiras e descobriram que as mulheres, apesar de representarem mais da metade da população do país, ocupam somente 13,6% dos cargos de primeiro escalão. Ainda segundo a pesquisa, apenas 6,3% dos gerentes e 4,7% dos executivos de alto escalão são negros. Não há dados sobre homossexuais em cargos de comando – uma vez que até há bem pouco tempo a orientação sexual sequer estava nas estatísticas das equipes de recursos humanos.

A boa notícia é que o cenário, ainda que lentamente, está mudando. LGBTs, mulheres e negros começam a ganhar cada vez mais espaço nas corporações – e a lutar com bem menos receio por igualdade de condições e respeito no mercado de trabalho. Se você ainda considera todo esse papo “mimimi de grupos vitimistas”, cuidado. Está na hora de rever seus conceitos – e não com o propósito de dar uma justificativa à sociedade ou parecer moderninho. Se a óbvia constatação de que o mundo mudou não lhe parece convincente, então atente para o seguinte: a diversidade é produtiva e, em muitos casos, indutora da inovação. É uma equação tão simples quanto efetiva: culturas diferentes + trajetórias diferentes + visões de mundo diferentes em uma equipe resultam em uma probabilidade maior de encontrar soluções diversas e criativas para a empresa, como veremos adiante. Captou?

Questão de talento.

Não por acaso discutir diversidade e inclusão de minorias é hoje um tema prioritário para um número crescente de grandes corporações – e os motivos têm pouquíssima relação com o “politicamente correto”. Um estudo da consultoria McKinsey revela que há uma conexão significativa entre diversidade e performance financeira das empresas. Depois de avaliar 366 companhias, nos Estados Unidos, na Inglaterra e em países da América Latina, a conclusão é que aquelas que possuem o maior número de profissionais considerados diversos dentro do quadro geral de funcionários são capazes de entregar desempenho até 35% superior à média da indústria como um todo. “Não podemos afirmar que a relação é de simples causa e consequência”, diz Heloisa Callegaro, líder para ações de diversidade da consultoria para a América Latina. “Mas dá para dizer que as companhias mais avançadas na questão de gênero e etnia são também aquelas que têm um desempenho melhor.”

A Monsanto descobriu há pouco essa relação, na prática. Na tentativa de aumentar a satisfação de PcDs, mulheres e negros em seus quadros, a empresa criou um “indexador de diversidade” para identificar as lideranças mais engajadas com o tema dentro da organização. Acabou percebendo que as equipes com maior diversidade e com os gestores mais empenhados em promover inclusão eram as que tinham os melhores resultados. “Em uma escala de zero a dez, a performance dos times com diversidade chegou a 9, ante a média de 6 dos demais”, diz Aline Cintra, líder de aquisição de talentos da Monsanto.

Por que as empresas que respeitam a diversidade têm um desempenho melhor do que a média? Uma das explicações encontradas por especialistas é esta: porque priorizam o talento, independentemente de qualquer outra característica do profissional. Ao respeitar as diferenças elas conseguem, além disso, extrair o melhor de cada um de seus funcionários.

Respeitar a diversidade é cada vez mais importante para atrair e fazer render uma nova geração de talentos, que já não suporta viver em empresas com políticas de RH tradicionais e engessadas. Dell Almeyda, de 31 anos, é um exemplo dessa geração – que coloca a liberdade de se expressar como um dos grandes atributos de uma companhia. Nascido Delvani, ele se diz andrógeno – identifica-se tanto com o gênero masculino como com o feminino. E manifesta essa orientação na forma de vestir. “Adoro um salto”, diz. Um dos responsáveis pelos treinamentos na Atento, empresa de call center, ele recebeu carta branca para usar as roupas e os acessórios que quiser.

Dell costuma ter reuniões com clientes externos. É comum que apareça nesses encontros com colares, maquiagem discreta e salto alto. Quase nunca enfrentou problemas. Em uma ocasião, no entanto, o cliente chiou. “Ele mandou um e-mail para a minha chefe, reclamando. Foi educado, mas deixou claro que não havia gostado nada dos meus sapatos”, diz Dell. A líder foi firme e disse a Dell para continuar atendendo o cliente – e de salto, se quisesse. Para evitar atritos, porém, Dell preferiu ir na reunião seguinte no estilo “homenzinho”. Chegou, fez a apresentação e quando voltou, ficou sabendo de um outro e-mail do cliente: “Por favor, diga ao Dell que ele pode voltar sempre, e vestido da forma que quiser. Com salto, ou não, ele continua fazendo um ótimo trabalho”. “Para mim, aquilo foi a glória”, diz Dell. “Não preciso fazer com que minha orientação sexual e minha preferência por roupas femininas desçam goela abaixo das pessoas. Eu prefiro o respeito. E foi o que consegui.” Na farmacêutica onde trabalhava antes, Dell conta que não tinha liberdade para se expressar da mesma forma. Na Atento, com respaldo da chefia, seu rendimento aumentou e ele foi promovido duas vezes.

A força dos fatos

Os argumentos a favor da diversidade são poderosos. O mais óbvio é que ela é simplesmente um fato do mundo contemporâneo. Ignorá-la pode ser o mesmo que ignorar grupos inteiros de potenciais consumidores. As agências de publicidade sabem dessa relação de causa e efeito e do descuido ou desconhecimento de seus clientes sobre o assunto. Talvez por isso tenham sido as primeiras a colocar a diversidade na mesa. Na década de 80, a grife italiana Benetton inovou ao abordar temas controversos em suas campanhas, mostrando, por exemplo, imagens de casais formados por negros e brancos ou pessoas seminuas identificadas como portadores de HIV. Hoje, são campanhas protagonizadas por homossexuais as que causam mais discussão. Este ano, durante o Superbowl, o jogo final da principal liga do futebol americano – um esporte tradicionalmente associado à virilidade –, foram exibidos filmes publicitários com beijo gay, no minuto mais caro da TV americana. Sinal dos tempos...

Uma pesquisa realizada pela YouGov e pelo site BabyCenter (do grupo Johnson & Johnson), chamada “Diversidade familiar é a norma”, indicou que 80% dos pais de famílias americanas gostam de ver a diversidade refletida nas famílias mostradas em campanhas publicitárias. O levantamento mostrou ainda que 66% dos entrevistados disseram que o respeito das marcas por famílias de todos os tipos é um fator importante para suas decisões de compra. Além disso, 57% afirmaram que, uma vez que encontram uma marca ou produto assim, contam aos amigos sobre ele. Resumindo: há um efeito multiplicador no reconhecimento de empresas que respeitam a diversidade.

No Brasil, marcas como a Skol, da Ambev, e a fabricante de cosméticos Natura também seguem a tendência em suas campanhas. O que se verificou com mais força, no entanto, foi a inclusão de mulheres e negros como protagonistas de vários filmes. Isso responde a uma das transformações mais evidentes da sociedade na última década – a inclusão de 40 milhões de pessoas no mercado consumidor, um grupo formado majoritariamente por negros e de famílias lideradas por mulheres.

No Carrefour, a percepção sobre essas mudanças na sociedade refletiu-se na política de recursos humanos. A rede varejista começou seu programa de diversidade por volta de 2010 e colocou como uma de suas prioridades o aumento de mulheres em cargos de liderança. A estratégia se consolidou, avançou para outros grupos e alcançou o universo LGBT. “Temos de agir de forma correta, internamente, se quisermos fazer com que esse público seja bem tratado e abordado de maneira adequada em nossas lojas”, diz Paulo Pianez, diretor de sustentabilidade do Carrefour. E a forma de garantir a eficácia do programa é verticalizar o conceito, ou seja, garantir que pessoas com esse perfil estejam em vários níveis hierárquicos, sobretudo em cargos de liderança.

Chances iguais

A relação existente entre diversidade e capacidade de inovação e solução de problemas também é conhecida. Para ilustrá-la, vale a analogia com a formação de grandes cidades. Foi o conglomerado de gente originária de lugares variados, com hábitos e histórias diferentes, que fez de Londres e Nova York as metrópoles vibrantes que são hoje, afirma o professor Edward Glaeser, da Universidade Harvard, um dos maiores especialistas em economia urbana da atualidade. Assim como acontece com as cidades, a concentração de talentos diversos dentro de empresas, em condições favoráveis, facilita a troca de informações e tende a ser terreno fértil para o surgimento de ideias, mais do que quando se têm núcleos homogêneos.

Mesmo profissionais aparentemente menos capacitados podem trazer vantagens competitivas importantes. Um candidato que tire nota baixa em um processo de seleção, por exemplo, não é necessariamente o menos adequado para a empresa. As poucas questões que acertou podem ser justamente as mesmas que a maioria dos outros candidatos com notas melhores errou. As habilidades, no caso, seriam complementares. “Se eu quero ser uma empresa que gera conteúdo diferente, eu preciso ter diversidade em meus quadros”, diz Alessandra Del Debbio, vice-presidente jurídica e de assuntos corporativos da Microsoft.

Para tentar garantir mais diversidade em seus quadros, a empresa ampliou o processo de garimpagem de profissionais. No último deles, por exemplo, foram considerados currículos de candidatos de 69 cursos de 329 faculdades brasileiras. Muitos dos selecionados vieram de escolas que não estão no topo dos rankings universitários – como a Zumbi dos Palmares, na Zona Norte de São Paulo. “Não estamos falando em priorizar um outro grupo de pessoas”, diz Alessandra. “Mas em considerar todos eles, sem preconceitos.” Na Microsoft, o exemplo faz a diferença. A empresa é comandada no Brasil por Paula Bellizia – uma das únicas mulheres à frente de gigantes de tecnologia –, e o CEO mundial é um indiano, Satya Nadella. Há ainda negros e gays em cargos de médio e alto escalão mundo afora. “Inclusão é uma jornada sem volta”, diz Alessandra. “Felizmente, estamos avançando.”

Poder de fogo

Desde 1995, o Brasil tem uma lei (a de nº 9029) que prevê punições às empresas em casos de discriminação por sexo, origem, raça, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional e idade, tanto na contratação como na dispensa. Em caso de condenação, as indenizações podem chegar à casa dos milhões de reais. O valor previsto, geralmente, corresponde ao dobro do salário por mês, do período do desligamento até a decisão da Justiça. “A lei tem um papel pedagógico na inclusão, e essas indenizações mais ainda”, diz Nelson Mannrich, professor da Faculdade de Direito da USP e sócio do escritório MSV Advogados, especializado em Direito do Trabalho. Há ainda a Lei de Cotas, criada há 25 anos, que determina que empresas com mais de mil funcionários tenham uma parcela de pelo menos 5% de funcionários PcDs (com deficiência física e intelectual). Ambas as leis são instrumentos importantes, que podem até ajudar, mas estão longe de estimular as empresas a voluntariamente adotar as práticas de inclusão. 

Para se fazer ouvir, quem se sente discriminado tem muito mais poder de fogo nas redes sociais. Hoje, basta um post para chegar a milhões de pessoas, que podem aderir à causa e compartilhar textos, vídeos, áudios e memes com um simples clique. Pode ser o suficiente para elevar ou acabar com a reputação de uma empresa. A italiana Barilla, fabricante de massas, aprendeu a lição do jeito mais duro. Em 2013, o presidente do grupo, Guido Barilla, declarou em entrevista a uma rádio italiana que jamais faria uma campanha publicitária com uma família homossexual. E que os gays que achassem ruim poderiam consumir produtos de outras marcas. Pouco depois, diante de críticas massivas e de um boicote em nível mundial, Guido Barilla teve de pedir desculpas publicamente não uma, mas duas vezes. O arranhão na imagem também levou a companhia a mudar radicalmente sua política de diversidade. Semanas depois do tropeço, a Barilla contratou um diretor de diversidade e fez uma campanha sobre a importância da inclusão LGBT.

“A discussão sobre diversidade ganhou força, velocidade e amplitude com as redes sociais”, diz Fabio Mariano, professor da ESPM e doutor em sociologia do consumo. Com vários relatos circulando por aí, as empresas têm de se preocupar de fato em conciliar discurso e prática. “Se elas dizem que abraçam a igualdade de oportunidades e a meritocracia precisam mostrar isso em ações, porque os grupos excluídos vão estar atentos”, diz Mariano.

Questão antiga

Em países da Europa e nos Estados Unidos, a discussão sobre inclusão é antiga. Começou a ser forjada ainda nos anos 60, por pressão de movimentos feministas e de direitos civis dos negros – que, mais tarde, passaram a reivindicar também espaço para homossexuais, trans, portadores de deficiência e outros grupos vítimas de discriminação. No Brasil, as mudanças econômicas na última década e a ascensão de um grande grupo de pessoas às universidades permitiram que a discussão sobre diversidade ganhasse corpo. “Apesar da crise atual, os avanços de muitas camadas sociais no período recente são inegáveis”, diz Judith Morrison, assessora da divisão de gênero e diversidade do BID. “Isso deu voz a pessoas antes completamente marginalizadas e colocou o debate sobre diversidade em um nível muito mais sofisticado no país.” Por ora, são as multinacionais que puxam esse movimento no Brasil, como Microsoft, IBM, White Martins, Unilever, Coca-Cola e GE. Cada uma à sua maneira, elas vêm desenvolvendo uma série de ações para incorporar a diversidade no dia a dia da operação – começando por desmontar muitos preconceitos da própria equipe e de gestores. Juntas, elas discutem as iniciativas por meio de fóruns para entender como avançar no tema. Hoje, há dois grupos bem fortalecidos no Brasil para congregar essas companhias – Coalizão Empresarial para Equidade Racial e de Gênero, do Instituto Ethos e do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e o Fórum de Empresas e Direitos LGBT. “Quando começamos o programa, em 2013, eram poucos os CEOS que se envolviam na discussão”, diz Reinaldo Bulgarelli, secretário executivo do Fórum. “Hoje, são eles que tomam as principais iniciativas e cobram de seus diretores proatividade no assunto.” Atualmente, 39 empresas compõem o time liderado por Bulgarelli.

Apesar do cenário mais promissor, mudar a postura das empresas no Brasil exige muito mais do que boas intenções. “O primeiro esforço deve começar no recrutamento e seleção”, diz Flávia Gonçalves, gerente da área de engajamento da consultoria Korn Ferry Hay Group. Gestores com baixa diversidade em suas equipes costumam justificar a falha com o argumento de que “até procuraram profissionais em classes de minoria, mas não encontram gente suficientemente qualificada para a vaga”. “É desculpa”, diz Flávia. Nos últimos dez anos, o percentual de jovens negros e pardos que chegaram ao ensino superior mais que dobrou no Brasil – e hoje eles ocupam quase metade das vagas nas universidades federais. As mulheres, em 20 anos, atingiram nível de escolaridade maior que o dos homens e graduaram-se com notas mais altas. “E todos eles estão ávidos para ingressar no mercado de trabalho”, diz Flávia. Alguns recrutadores devem estar procurando no lugar errado, só pode ser isso.

Ironias à parte, o que explica a baixa participação de mulheres e negros no mercado de trabalho – e a quase ausência deles em cargos de chefia – é simples: preconceito. Ele é manifestado nas corporações das formas mais sutis. É o que os especialistas classificam como viés inconsciente do líder ou empregador. “As pessoas dizem que não têm preconceito e, conscientemente, talvez se esforcem para não ter mesmo”, diz Flávia. “Mas em várias situações acabam preterindo profissionais por considerar clichês como verdades.” Alguns exemplos: achar que os negros têm baixa escolaridade, que as mulheres estão mais preocupadas em casar e cuidar dos filhos do que em fazer carreira, que não servem para liderar e que é muito natural que ganhem menos que os homens. Há ainda uma tendência dos líderes em contratar seus iguais – simplesmente porque dá bem menos trabalho comandar pessoas cujas características lhes são familiares. Se a maior parte dos cargos de gestão é ocupada por homens, brancos e que se dizem héteros, é esse perfil de profissional que eles vão contratar e promover com mais facilidade.

Para driblar barreiras como essas, as empresas insistem bastante num ponto: a necessidade de buscar esclarecimento. “Oferecemos cartilhas e palestras para falar de equidade de gênero e direitos de minorias”, diz Cristina Fernandes, diretora da White Martins. “É quase uma aula de cidadania.” Desde que as ações começaram a ser implementadas, em 2010, a participação das mulheres em cargos de supervisão aumentou 79% e mais que dobrou nas diretorias. A meta agora é aumentar a promoção de negros e a aceitação de gays na companhia. “Eles já trabalham aqui, mas queremos que tenham liberdade para assumir a orientação sexual, se assim preferirem”, diz Cristina.

Fazer com que o profissional LGBT sinta-se à vontade para assumir sua orientação sexual ou identidade de gênero dentro da empresa ainda é uma tarefa árdua para muitas equipes de recursos humanos. Para avançar nesse campo, a IBM criou uma espécie de mentoria reversa, que coloca profissionais LGBT ou de quaisquer outros grupos de minoria para conversas particulares com líderes. “São discutidas questões relacionadas à rotina do negócio, mas é também uma sessão franca na qual o funcionário conta um pouco de sua história e do que enfrentou ao longo da vida por ser gay ou trans”, diz Adriana Ferreira, líder de diversidade da IBM. “Isso ajuda a criar empatia entre equipe e líderes.”

Os casos de transexuais são particularmente delicados. Muitos sofrem um preconceito tão severo da sociedade – e, com frequência, dos próprios familiares – que acabam tendo menos condições de se preparar para o mercado de trabalho. “São vários os casos de quem é expulsa de casa desde muito cedo”, diz Majo Martinez, diretora de RH da Atento. “Sem amparo econômico e emocional, muitas param de estudar, não têm como buscar qualificação e acabam sendo jogadas na marginalidade.” Felizmente, há cada vez mais exceções. Para esta reportagem, foram ouvidos alguns casos que fogem à regra – como o de Márcia Rocha, a primeira advogada brasileira a ter direito de usar seu nome social no registro da OAB (leia depoimentos no fim da reportagem).

O líder inclusivo

Na busca por uma empresa mais inclusiva, poucas coisas são tão fundamentais como o real interesse das lideranças pelo tema. Serão esses profissionais os responsáveis por chancelar as ações institucionais internas de valorização da diversidade e de explicar os motivos por trás das mudanças, de forma clara e concreta, gerando motivação nas equipes. “Os CEOs têm de se engajar na causa. Do contrário, a gente não vai conseguir avançar”, diz Theo van der Loo, presidente do Grupo Bayer do Brasil. Recentemente, Van der Loo foi a público nas redes sociais para denunciar o caso sofrido por um colega negro. De acordo com o relato, o amigo teria ouvido durante um processo de seleção para um cargo executivo na área de TI de uma grande companhia de tecnologia a seguinte frase, de um dos recrutadores: “Eu não entrevisto negros”.

A postura de Van der Loo está em alta no mercado. Levantamento da Korn Ferry Hay Group baseado em dados de 20 milhões de profissionais, de 25 mil organizações, em 110 países, indicou que o perfil do líder do século 21 é o de um profissional muito mais aberto e acostumado a lidar com diferenças.

Apoio dos CEOs

Trazer diversidade à empresa requer trabalho duro – muito mais do que boas intenções. É que os resultados, frequentemente, demoram a aparecer – e, por vezes, sequer aparecem. Em seu livro Driven By Difference – How Great Companies Fuel Innovation through Diverisity (“Guiado pela diferença – como as grandes empresas promovem a inovação por meio da diversidade”, em tradução livre), David Livermore, um dos maiores especialistas em inteligência cultural, aponta motivos para o fracasso de algumas políticas de inclusão das companhias. A principal razão, ele argumenta, é justamente a falta de compreensão sobre a necessidade de maturação dos programas. Para que as equipes consigam alcançar um alto grau de criatividade, elas precisam permanecer juntas por algum tempo até que todos os “diferentes” consigam confiar uns nos outros. O segundo motivo de fracasso é de responsabilidade exclusiva das companhias – elas abrem as portas da empresa para a diversidade, mas não se preparam de forma adequada para aceitar e receber o diferente.

Ainda há um longo caminho a ser percorrido. De acordo com o estudo do Instituto Ethos e do BID, a maior parte das 500 maiores empresas brasileiras não tem ações afirmativas para incentivar a presença de mulheres e negros em seus quadros. Quando têm, na maioria dos casos, as ações costumam ser isoladas, sem uma política perene, incorporada à estratégia da companhia. A boa notícia é que, ainda que seja longo, o caminho da diversidade parece ser irreversível. Depois de ganharem as ruas e convencerem a sociedade da legitimidade de suas demandas, mulheres, negros, LGBTs e outras minorias começam agora a contar com novos e poderosos aliados à frente de grandes companhias. CEOs como Theo van der Loo, da Bayer, Paula Bellizia, da Microsoft, e Fabian Gil, da Dow, não perdem a oportunidade de falar sobre o tema e, em alguns casos, levar a questão a encontros com representantes dos poderes Legislativo e Executivo. Entre os pleitos, a aprovação de projetos de lei como o que criminaliza a homofobia. “Não adianta a pessoa ter segurança na empresa se, quando sai, é espancada no ponto de ônibus, ou maltratada dentro da própria casa”, diz Bulgarelli, do Fórum de Empresas e Direitos LGBTs. Em uma era de recrudescimento da xenofobia e de manifestações explícitas de intolerância, a percepção das empresas de que têm muito a ganhar com a diversidade é, sem dúvida, algo a comemorar.


"Sou a primeira trans com nome social na OAB"
Márcia Rocha, 52 anos l Advogada e empresária

Desde pequena, sentia ser feminina, mas comecei a minha hormonização definitiva somente aos 39 anos. Além da pressão do meu pai, que ficava tentando me convencer de que eu era homem, havia ainda outra coisa confusa: o fato de eu gostar de mulheres, apesar de me sentir mulher também. Só resolvi minhas questões depois de estudar muito sobre sexualidade e conversar com especialistas. Felizmente, consegui ter uma boa formação. Sou trilíngue, advogada e dona de quatro empresas. Mas essa não é a realidade da maioria das trans. Por isso, achava que precisava fazer mais pelo movimento. Sou a primeira trans a ter meu nome social na certidão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). É uma conquista importante. Tenho um assento na World Association For Sexual Health, sou da Comissão de Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB. Recentemente, juntei-me à cartunista Laerte Coutinho e mais duas profissionais para fundar a Associação Brasileira dos Transgêneros (Abrat). Além de realizada profissionalmente, tenho uma família muito interessante. Somos duas lésbicas, sendo uma travesti, mais a minha filha de um casamento anterior. Isso me faz acreditar que tudo é possível.


“Queriam tirar o demônio de mim”
Dell Almeyda, 31 anos l Técnico de treinamento – Atento

Sei que sou gay desde os 9 anos. No início, pensava: “não sou veado, não quero ser veado”. Demorou para eu entender que a orientação sexual não é uma escolha. Minha família toda – e eu também – somos muito religiosos. Na primeira igreja que frequentei, o pastor me submeteu até a uma sessão de exorcismo para espantar “o demônio” que ele dizia existir em mim. Eu sabia que não tinha demônio algum, mas aceitava. Me esforcei para parecer “homenzinho” e namorei mulher. Mas, no fundo, sabia que não era essa a minha natureza. Isso tudo gerava muito conflito. Continuo acreditando em Deus, mas hoje frequento um grupo de Teologia da Libertação, que não associa a homossexualidade a algo ruim. Sou cristão, evangélico, gay e tenho uma identidade de gênero andrógena ou queer. Sinto-me à vontade como homem ou mulher porque sei que as coisas vão muito além dessa questão binária. Ter um emprego onde eu posso expressar tudo isso, sem fingimentos, é maravilhoso. Ajudou até mesmo na aceitação dos outros em relação à minha identidade. Aqui na Atento, posso usar meu nome social no crachá, maquiagem e, claro, meus saltos, que adoro tanto. E se aparecer de terno e gravata no dia seguinte ninguém vai estranhar.


“Não encontrava emprego. Pensei em me matar”
Luana Azevedo, 21 anos l Operadora de caixa – Carrefour

Nunca me identifiquei com meu órgão sexual e o modo como eu era tratada. Quando criança, as pessoas me obrigavam a fazer coisas de menino. Eu ainda não sabia a diferença entre homem e mulher. Algumas amigas diziam que eu era travesti. Mas eu não me identificava. Aí, fui pesquisar no Google para tentar entender um pouco mais sobre pessoas trans. Comecei o tratamento hormonal somente aos 18 anos. Antes, minha mãe não deixava. Quando terminei a escola, iniciei a minha busca por emprego. Queria estudar mais, me qualificar e, para isso, precisava de um trabalho. Eu deixava currículo em vários lugares, só que a imagem que viam não condizia com o nome no papel. Quando percebi que podia não estar encontrando emprego por causa do preconceito, tive vontade de me matar. Não o fiz por pena da minha mãe. Então, uma amiga dela me indicou o Carrefour. Quando cheguei para a seleção e a entrevistadora me pediu desculpas por ter me chamado pelo nome do currículo e não por meu nome social, eu nem acreditei. Agora, a meta é juntar dinheiro para fazer faculdade de psicologia, estudar inglês e, quem sabe, morar um tempo no exterior. Está difícil. Mas, sem meu emprego, eu nem poderia sonhar com essas coisas.


“Na IBM, posso ser quem eu realmente sou”
Gustavo Gonzalez Prates, 26 anos l Gerente de contratos - IBM

Já na infância eu notava que me sentia melhor quando estava com os meninos. Eu não me via como menina. Gostava de jogar bola e usar as roupas que eles usavam. Aos 9 anos, quando minha mãe morreu e passei a ser cuidado pela minha irmã, entrei para uma escola particular. Por incentivo dela, ia às aulas de cabelo escovado ou rabo de cavalo, brinco na orelha, para parecer mais feminina. Mas chegando lá desmanchava tudo. Nos anos seguintes, passei por várias escolas, não dava certo em nenhuma. Até que aos 14 anos entendi que gostava de meninas – eu era homossexual. Os anos seguintes foram de libertação. Cortei o cabelo, passei a comprar roupas na seção masculina e a me sentir bem. Assim fui crescendo, me achando homossexual. Entrei para a IBM aos 23 anos. No ano passado, uma colega de equipe me perguntou: “você já parou para pensar que pode ser transgênero?”. Eu nem sabia o que significava isso. Pesquisei, busquei ajuda psicológica, conheci transgêneros e comecei a compreender a mim mesmo. Só aí fui entender que eu poderia mudar de nome e mudar, com tratamentos, as coisas que eu não gosto em mim, como a voz. Fui recebido de braços abertos na empresa. Na IBM, percebi que eu poderia ser quem eu realmente era.


“Inspirei outras trans a buscar emprego”
Uni Corrêa, 30 anos l Modelo e consultora de estilo

Já senti muita vergonha – não de ser eu, mas da imagem que as pessoas têm do que é ser trans. Tinha necessidade de ficar provando para todo mundo, o tempo todo, que minha identidade de gênero não tinha nada a ver com querer trabalhar com sexo. Desde criança eu tentei parecer menina. Lembro que, aos 12 anos, no meu primeiro dia de aula em uma escola nova, a professora me chamou pelo nome de batismo (que ela não revela) e todos da classe riram. Eles achavam que eu era uma garota. Aquilo me encheu de alegria. Sou do interior do Rio Grande do Sul, cheguei em São Paulo em 2004, aos 19 anos e, mesmo aqui, não havia muitas opções de trabalho para as trans. Muitas meninas acabavam vendo a prostituição como único caminho. Hoje, tenho um trabalho legal ligado a moda, com passagens por várias grandes marcas, como Reinaldo Lourenço, Heloisa Faria e Coven. Estou feliz. Mas a batalha é dura. Se durante minha adolescência eu tivesse exemplos de trans bem-sucedidas em várias profissões, talvez tivesse me tornado médica ou advogada. Quando eu trabalhava na Reinaldo Lourenço, soube que uma trans deixou currículo na loja por minha causa.  Aquilo me tocou. De alguma maneira, eu fui essa referência.


“Não, eu não preciso de um computador da Nasa"
Erivaldo Paz, 33 anos l Analista de processos – Monsanto

Aos 13 anos, sofri uma descarga elétrica empinando pipa e tive os dois braços amputados. Desde então, faço tudo com os pés. Comecei a treinar essa habilidade jogando videogame. No início, foi difícil. Tinha câimbras, sentia muita dor. Mas, aos 14 anos, já podia escrever e fazer várias outras coisas sozinho. Quando comecei a procurar emprego, a lei de cotas já existia, mas as empresas não estavam preparadas para receber pessoas com limitação. Como digito com os pés, eles pensavam que iam ter de gastar dinheiro para comprar um computador da Nasa, sei lá. Mas eu uso teclado e mouse comuns. Gente como eu precisa primeiro provar que pode fazer, somente depois mostrar que sabe. No meu primeiro emprego, ouvi: “Isso aqui não é instituição de caridade. Ou você entrega ou está fora”. Foi duro. Mas achei ótimo ser tratado de “igual para igual”. Fiz administração, estudo inglês e trabalho na Monsanto há nove meses. Com os pés, crio relatórios sobre a safra que iremos vender em 2020. Sinto-me desafiado. A contratação precisa ser boa para os dois lados. Se a empresa quiser somente cumprir a lei, vai fazer mal para a pessoa com limitação. É melhor falar um não para que ela possa buscar oportunidade em outro lugar.


“Você tem mesmo de usar esse véu?”
Renata Nached Serhal,  37 anos l Coordenadora regional – Drogaria Carrefour

Minha família é de origem libanesa e brasileira. Sou muçulmana sunita e uso hijab [o véu sobre a cabeça]. Meu marido também é muçulmano. Quando saí do colégio, não sabia bem o que fazer. Fiz faculdade de administração e pós-graduação em comércio exterior. Mas meu sonho sempre foi estudar farmácia, que, na época, era um curso em tempo integral – inviável , pois eu precisava trabalhar. Depois de alguns anos, surgiram opções de manhã e à tarde. Cursei. No segundo semestre, comecei a procurar emprego na área. Quando eu mandava meu currículo sem foto, as empresas me chamavam. Chegava lá, usando o hijab, e os recrutadores perguntavam: “Mas você tem de usar isso?”. Antes, eu já tinha trabalhado no Bradesco e na BCP, que depois virou Claro, sem o hijab. Mas agora já tinha um currículo melhor e dizia que não gostaria de tirá-lo para trabalhar. Passei meses sem conseguir emprego. Então, resolvi mandar o currículo só para multinacionais com operações em países árabes. No Carrefour, me chamaram. Estou aqui há nove anos e já fui promovida cinco vezes. Com o tempo, ganhei projeção e recebi propostas salariais melhores, de empresas que antes me recusaram. Dispensei. Porque aqui me aceitaram quando ninguém me quis.


“No Brasil, convivo com o fato de ser sempre exceção”
Mauricio Rodrigues, de 42 anos l CFO América do Sul – Monsanto

Venho de uma família de classe média. Mas nunca foi fácil. Estudei no Colégio Bandeirantes, em uma época em que devia ser o único negro por lá. Existia um preconceito, que surge por razões que hoje são óbvias para mim. Se as pessoas não são expostas ao que é diferente, elas não têm condições de estar abertas ao novo. Minha família me instruiu a conquistar meu espaço por meio do esforço. Então eu sentia que tinha de estudar mais e me destacar, para não reforçar o pensamento de que negro tem menos capacidade. Foi assim na Poli e no IBMEC (atual Insper), fiquei sempre entre os melhores da classe. Senti a diferença quando fui para Atlanta, nos EUA, que tem uma população negra grande. Lembro que cheguei a dizer ao meu pai: “Hoje vi negros andando de Porsche, de Ferrari”. Aquilo me deixou muito feliz. Eu pensei: “É isso que eu sonho para o meu país”. Só que quando voltei, fiquei muito crítico. Aqui você tem de conviver com o fato de ser sempre a exceção. Em grandes eventos, já aconteceu de me perguntarem: “Vem cá, onde eu deixo o carro?”. Você tem de estar preparado e bem consigo mesmo. Como gestor, não me importo com a cor ou orientação sexual. Estou interessado na capacidade de entrega.

Colaboraram nesta reportagem: Anaís Motta, Barbara Bigarelli, Daniela Frabasile, Edson Caldas, Nayara Fraga e Soraia Yoshida

Texto e imagens reproduzidos do site: epocanegocios.globo.com

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