Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 22 de agosto de 2025
Platão para o século 21
Não há espaço para os melhores onde o bem deixou de ser a medida última das coisas. E é nesse momento que os piores começam a governar. Dennys Xavier para a Crusoé:
O clássico diálogo de Platão A República não é um estudo sobre a construção da cidade-ideal, da pólis perfeita, como muitos imaginam.
Aliás, essa é uma leitura que reduz Platão a um arquiteto de cidades utópicas, ignorando que seu verdadeiro ofício era mais profundo: Platão era um topógrafo da alma e, quando pensa a cidade, pensa na mais bem ajustada estrutura comunitária para acolher o melhor da natureza humana e para afastar, tanto quanto possível, o pior de nós.
A cidade, n’A República, é apenas imagem, símbolo, um espelho ampliado do que se passa no interior do ser humano.
O que se organiza ali não é um Estado, mas a psique, o interior de cada um de nós: é o óbvio magistralmente exposto; não se pode esperar que uma cidade (que é, em última instância, a projeção coletiva das almas que a compõem) seja justa, livre ou virtuosa, se seus cidadãos estão desordenados em seu interior.
Quando a alma está doente, dominada pela epithymía (o desejo desenfreado), sem a regência do logos (razão) e o equilíbrio do thymós (ânimo, coragem), o que se projeta no espaço público é uma cidade corrupta, injusta, tirânica.
Nesse sentido, as formas de governo descritas por Platão não são modelos institucionais abstratos, mas arquétipos de tipos humanos (oligarca, democrata, tirano) conforme a alma que os anima.
Platão nos fala, pois, de nós mesmos. Quando aponta a necessidade de uma educação rigorosa, de uma ginástica da alma e de uma vigilância permanente da razão sobre os apetites, está desenhando um ideal de vida filosófica, não de regime político.
A justiça que se busca não nasce de instituições, mas da integridade que pode ser virtualmente encontrada em cada um de nós.
A pólis verdadeira, nesse sentido, é a que se realiza em cada um: quando se consente, livremente, à autoridade do logos, e não à sedução do desejo.
A cidade moderna, fundada não na ordem da alma, mas na desordem das massas, se tornou hostil à excelência.
Não há lugar para os melhores onde impera o igualitarismo vulgar, que confunde justiça com nivelamento forçado, e liberdade com concessão de burocratas estatais apedeutas.
Platão já via isso com clareza no livro VIII da República, quando descreve a transição da democracia para a tirania: ali, o homem livre degenera em licencioso, o amante da sabedoria é ridicularizado, e o desejo reina como tirano.
Para Platão, quando a alma perde seu apreço pelo domínio da razão e, então, passa a delirar em paixões (especialmente a paixão política, que, nas sábias palavras de Nelson Rodrigues, é a mais cretinizante de todas, por ser a única sem grandeza, a única capaz de imbecilizar o homem), a cidade se torna incapaz de acolher o filósofo.
Ao contrário: ela o expulsa ou o mata, como fez com Sócrates.
A cidade moderna não é apenas indiferente aos melhores: ela é, por estrutura, impermeável à excelência, porque esta exige hierarquia interior/exterior, disciplina e um senso de medida que são incompatíveis com o hedonismo democrático que se impôs como norma.
O resultado é uma cidade ruidosa, cheia de vozes, mas surda à verdade; cheia de opiniões, mas vazia de sabedoria; cheia de regras (aos milhares, quiçá milhões), mas sem justiça.
A excelência, nesse ambiente, é tratada como arrogância; o mérito, como privilégio; o discernimento, como opressão.
E assim, tal como na caverna, os que enxergam mais são tomados por loucos, e os que tentam libertar são acusados de tirania.
Não há espaço para os melhores onde o bem deixou de ser a medida última das coisas. E como diria Platão, é exatamente nesse momento que os piores começam a governar.
Sim, a vida não refletida desorganiza o individuo internamente e isso vai projetado na cidade. Você não tem boa organização social se, dentro, está tudo por fazer.
Nesse exato sentido, a ascensão dos piores, então, não é um acidente, mas uma consequência lógica.
Quando a cidade se afasta da paideia, da formação da alma segundo a razão e a virtude, ela se torna terreno fértil para a demagogia.
Os piores, aqueles cujas almas são desordenadas, cujos apetites governam seus pensamentos, e cujas palavras são moldadas para agradar, não para esclarecer: esses são os que melhor se adaptam a uma pólis também doente.
Platão desenha essa realidade com amarga precisão. Na transição da democracia para a tirania, os homens deixam de buscar o bem e passam a buscar o prazer; deixam de querer ser bons e passam a querer parecer bons.
A retórica substitui o logos, e o aplauso substitui o bom-senso.
Nesse ambiente, os piores triunfam naturalmente. Eles não precisam disfarçar sua desordem: ao contrário, eles a usam como bandeira.
Qualquer semelhança com o que você vê diariamente em sua janela não é mera coincidência.
O populista triunfa porque traduz em slogans o que há de mais raso nas paixões populares monopólicas.
O coletivista é celebrado porque promete ao indivíduo a redenção que este se recusa a buscar em si mesmo.
E o demagogo reina porque diz aquilo que todos já pensam, evitando o esforço de pensar melhor.
Platão via esse processo como uma doença espiritual da cidade.
E como toda doença, ela tem um pathos: um sofrimento que a alimenta e a reproduz.
O sofrimento de uma vida interior mal-ajambrada (sem ordem, sem direção), que exige anestesia constante: e é isso que os piores oferecem.
Alívio, não cura.
Conforto, não verdade.
Massa, não indivíduo.
Todos entorpecidos, aguardando o novo corte “tramontina” ao final do vídeo.
Os piores tendem ao poder porque encarnam a cidade que os produz. Eles são seus legítimos herdeiros.
Não se trata, portanto, de uma aberração, mas de uma coerência trágica.
A cidade moderna, ao se afastar da excelência, se aproxima da tirania; não necessariamente da tirania do Estado, mas da tirania do ruído, do ressentimento e da mediocridade entronizada, da qual o Estado é um retrato ampliado.
Platão compreendeu que nenhuma cidade se ergue acima do nível moral de seus habitantes, em suma.
Não há leis suficientemente justas, instituições suficientemente eficientes, nem governantes suficientemente hábeis que possam salvar uma cidade cujos cidadãos se recusam a ordenar suas próprias almas.
Toda degeneração política é, em sua origem, uma degeneração antropológica.
Assim, se quisermos um Estado melhor, mais livre, mais justo, bem … não é nas urnas que começa essa busca, mas no espelho. A reforma das leis vem depois da reforma da alma. A constituição da cidade depende da constituição do homem.
Mas aí está o ponto: estaríamos dispostos? Estaríamos dispostos a renunciar à doce embriaguez do ressentimento e da vitimização?
A abandonar a ilusão de que o mal está sempre no outro, na estrutura, no sistema, e nunca em nós mesmos?
Estaríamos dispostos a suportar o peso da liberdade, que exige esforço e disciplina interior?
Platão parece dizer que não. Por isso, o filósofo é quase sempre um estrangeiro em sua própria cidade.
Por isso, a cidade justa é rara. E por isso, Sócrates morre, e não governa.
Entretanto, é justamente a pergunta que nos salva. Porque, se feita com sinceridade, ela já é o início da cura.
Quando o homem se pergunta se está disposto a melhorar a si mesmo (em vez de querer mudar o mundo) ele já deu um passo fora da caverna.
E esse passo, por pequeno que seja, pode ser o início de uma nova Politeía, de uma nova cidade, não nos mapas, mas nas almas.
Estamos dispostos?
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com
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