A humanização excessiva dos animais pode levar à bestialização de humanos
Na Itália, o número de animais de estimação aumenta enquanto a taxa de natalidade afunda, afirma o jornal Financial Times. João Pereira Coutinho para a FSP:
"Quanto mais conheço os homens, mais estimo os cachorros", teria dito Lord Byron.
Os italianos concordam. Leio no Financial Times que o aeroporto de Roma tem um hotel de luxo, com salão de massagens e jardim comunitário, para que os viajantes possam deixar seus cachorros antes de embarcar.
O fenômeno se explica com números: 40% das casas italianas já têm um animal de estimação. É muito? Para a Itália, talvez. Não para o Reino Unido (60%) ou para os Estados Unidos (66%).
Atrás desses números existe uma economia gigantesca —comida gourmet, vestuário, clínicas, creches, serviços funerários et cetera— que movimenta bilhões de euros por ano e só confirma a crescente humanização dos bichos.
Eu próprio, confesso, já assisti ao funeral de um cachorro por ser amigo dos donos. Teve direito a discurso emotivo e vídeo com os melhores momentos do defunto.
Era inevitável. A "modernidade líquida", como ensinava um sociólogo célebre, dissolveu as estruturas tradicionais (e sólidas) que enquadravam a vida dos indivíduos. Família? Comunidade? Religião?
Tudo se foi perdendo —até na Itália. As relações humanas tornaram-se mais frágeis, intermitentes e utilitárias, aumentando o estado de insegurança e incerteza permanentes em que vivem os contemporâneos.
Os animais preenchem esse vazio pela reposição de certas virtudes "sólidas": lealdade, afeto incondicional, presença constante.
Por sua vez, os humanos devolvem a gentileza com cuidados e luxos que seriam impensáveis há alguns anos. E que, às vezes, soam quase caricaturais.
Quando pergunto a familiares ou amigos por que motivo elevaram o cachorro ou o gato a um estatuto quase humano, eles repetem, com outras palavras, a frase atribuída a Lord Byron. Os animais não decepcionam.
Longe de mim criticar a tendência. Meu pessimismo antropológico não permitiria. Além disso, uma gota de misantropia sempre cai bem em qualquer circunstância.
Mas uma gota é uma gota, não um modo de vida. Por isso nunca troquei os humanos pelos animais. Não por algum amor abstrato aos humanos, mas porque preciso deles para continuar sendo humano.
Para polir a linguagem, preciso da "alteridade" como uma planta precisa de luz e água. Preciso da presença dos outros, da fricção, da crítica, da oposição, do conflito.
Preciso do risco, das desilusões, das iluminações. Preciso de alguém que me derrube e me recomponha. Que transforme meus erros em virtudes, minhas virtudes, em erros.
Preciso escutar o que não quero, o que não sinto, o que não vejo. Preciso viver e aprender. O inferno são os outros? Fato. Mas, como lembrava Millôr Fernandes, o paraíso também.
Não me entenda mal. Gosto de cachorros. Gosto de gatos. E até concordo, em parte, com a filósofa Donna Haraway que escreveu em tempos um conhecido "Manifesto" em defesa da "espécie companheira".
Nossa relação com os animais é bidirecional, defendia ela: somos parceiros históricos que se moldaram mutuamente. E nossa identidade como humanos depende dessa reciprocidade.
Meu ponto é outro: não a convivência entre humanos e animais, mas a substituição dos primeiros pelos segundos. E, nesse quesito, nada substitui a presença do outro —o seu rosto, os seus gestos, e as suas palavras.
A relação entre um ser humano e um animal pode ser importante, mas é sempre assimétrica. O cachorro é leal, mas não critica. O gato pode ser boa companhia, mas não obriga ninguém a justificar uma escolha.
Repito: gosto de cachorros e gatos. Mas latir e miar é, para este seu criado, insuficiente. A humanização dos animais, quando levada a certos excessos, pode ter um preço: a bestialização dos seres humanos.
Conheço casos. Personalidades que ficaram mais achatadas, mais previsíveis, mais unidimensionais, como se vivessem numa fábula às avessas. Não latem nem miam, é verdade, mas até a linguagem ficou mais pobre. Na Itália, o número de animais de estimação aumenta ao mesmo tempo que a taxa de natalidade afunda, informa o Financial Times.
Correlação não implica causalidade, eu sei, mas a paisagem fala por si: onde antes havia crianças, há agora animais.
Em que espécie estaremos nos transformando a partir dessa troca?
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com
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