Artigo compartilhado do site SESCSP, de 2 de fevereiro de 2025
Autor de Ainda estou aqui, livro que inspirou o filme brasileiro indicado ao Oscar 2025, Marcelo Rubens Paiva se serve da literatura para honrar a coragem da matriarca
Tudo sobre minha mãe
Por Maria Júlia Lledó
Uma das poucas especialistas em direito indígena no Brasil, advogada de ilustres e desconhecidos, consultora da Organização das Nações Unidas (ONU) e símbolo da luta pelos direitos humanos dos desaparecidos na ditadura militar no Brasil, Eunice Paiva (1929-2018) sempre sorria nas fotos. Desdenhava qualquer intenção da imprensa de capturar um rastro de tristeza para estampar os jornais com a manchete “a família vítima da ditadura”. Resiliente, Eunice foi até o fim da vida guardiã da memória de seu marido, o engenheiro e político Rubens Paiva (1929-1971), e protetora de seus cinco filhos, Vera Sílvia, Maria Eliana, Ana Lúcia, Maria Beatriz e Marcelo.
É sobre sua mãe e as feridas abertas pela ditadura que o escritor Marcelo Rubens Paiva escreveu Ainda estou aqui (Companhia das Letras, 2015). Adaptado para o cinema e dirigido por Walter Salles, a obra traz Eunice Paiva em primeiro plano. Interpretada pela atriz Fernanda Torres, vencedora do prêmio de melhor atriz no Globo de Ouro, a luta de Eunice por justiça já capturou a atenção de mais de 3 milhões de espectadores mundo afora.
“A gente sempre fala dos homens, dos heróis, dos combatentes, mas nunca fala da mãe, daquela que fica na retaguarda ou, às vezes, no front de batalha. No caso da minha mãe, ela ficou na retaguarda e no front”, ressalta o escritor. Neste Depoimento, Marcelo Rubens Paiva compartilha as motivações que o levaram a criar essa obra, fala sobre a missão da literatura de contar o outro lado da história oficial e dá um spoiler sobre seu novo livro, cujo tema é paternidade, e que será lançado neste ano pela Companhia das Letras.
ela
Lembro que na Flip [Festa Literária Internacional de Paraty] de 2014, enquanto conversava com a [historiadora e escritora] Lilia Schwarcz sobre o que estava acontecendo naquele momento político do Brasil, nos perguntamos: “Será que as pessoas não leram na escola sobre o que foi a ditadura? Por que querem voltar a esse período?”. E aí concluímos: “A gente precisa, sempre, escrever sobre isso. Não podemos parar”. Então, eu senti a missão de contar aquela história novamente, a história que eu tinha contado superficialmente em Feliz Ano Velho (1982). Queria me aprofundar no que aconteceu, não só dentro da minha casa, mas fora de casa, dentro dos quarteis. Surgiu essa oportunidade e, em 2015, publiquei Ainda estou aqui, focando na minha mãe, que descobri, naquele caos todo em que nós vivemos, que foi realmente a grande líder, guerreira e heroína da família. Porque, além de todas as suas lutas, ela tinha cinco crianças para cuidar. Passei a dar um valor em dobro à minha mãe. A gente sempre fala dos homens, dos heróis, dos combatentes, mas nunca fala da mãe, daquela que fica na retaguarda ou às vezes no front de batalha. No caso da minha mãe, ela ficou na retaguarda e no front.
interrompida
Como o filme [Ainda estou aqui] retrata, a gente sofreu a interrupção de um projeto familiar, de um projeto de vida, de maneira brusca e inexplicável. A partir daí, você passa a duvidar do sentido da vida, duvidar até da religião, da existência de Deus, da justiça. Nós fomos, de certa maneira, discriminados, porque as pessoas tinham muito medo de se aproximar ou de se associar à gente, pois éramos pessoas muito visadas. Tivemos que nos adaptar a uma situação econômica desfavorável. A gente não tinha roupa, mas a gente tinha educação porque conseguiu bolsas para ir a boas escolas. Perdemos totalmente o conforto da família burguesa de antes, apesar de conviver, ainda, com parte dos amigos dos meus pais, que eram de família rica. Isso também nos amadureceu. Passamos a ter que, cada um à sua maneira, lidar com o luto, com a dor, com as adversidades da vida. E, especialmente, lidar com uma mãe que tinha cinco crianças e tínhamos que ser muito solidários a ela. Acho que tivemos que ser adultos muito cedo. Foi uma espécie de infância interrompida.
revelação
A minha família, desde sempre, se deu conta de que não podia falar do nosso lado da história, porque não tínhamos informações completas. Primeiro, quem mantinha as informações completas eram as Forças Armadas. Segundo, porque era ditadura, então havia censura, controle da informação. A literatura foi a forma que eu encontrei de contar para as pessoas o que aconteceu. Fiz isso em Feliz Ano Velho, e depois em Ainda estou aqui, dessa vez com mais elementos, porque já havia terminado a ditadura e estávamos na fase da Comissão da Verdade, quando muitas coisas foram reveladas. Aí sim, eu pude narrar. As pessoas têm reagido descobrindo o que aconteceu: muita gente já sabia, mas nem todo mundo. Agora sim, as pessoas têm a informação em detalhes de tudo o que aconteceu, e este é um papel da literatura e do cinema.
Não acredito que você seja obrigado a falar de si [em seus livros], mas você precisa falar com verdade
lutos
Feliz Ano Velho e Ainda estou aqui são dois livros que contam como passei por um luto pessoal. O primeiro foi um luto pelo meu corpo, por ter me abandonado. Eu estava bem e, de uma hora para outra, estava numa UTI sem me mexer [devido a um acidente de mergulho numa lagoa, que o deixou tetraplégico]. E o segundo livro, sobre a situação da minha família, o fato de meu pai ter sido levado sem nenhuma explicação e até hoje não sabemos ao certo o que aconteceu com ele. No primeiro livro, eu focava no meu corpo, no meu acidente, como se eu estivesse conversando comigo sobre quem eu me tornaria e como seria aceito. Um garoto de 20 anos, no auge da sua sexualidade e que, de repente, teve que ressignificar seu corpo, seu projeto de desejo, de relacionamento, de casamento, de amor, de autoestima. Então, eu tinha que elaborar comigo mesmo o que estava acontecendo.
versões
Um grande crítico de literatura, Nicolau Sevcenko (1952-2014), já disse que a literatura é a versão dos vencidos. E a história oficial é a versão dos vencedores. Ele fez essa afirmação depois de ter feito uma pesquisa sobre Os Sertões (1902) e sobre como Euclides da Cunha (1866-1909) retratou a história de duas formas diferentes: primeiro, como repórter do jornal O Estado de São Paulo, e depois como escritor, com anos de dedicação para ele ir até lá, repensar e deglutir o que aconteceu. Na literatura, ele mostrou, de fato, o que aconteceu. Como foi a vida do Antônio Conselheiro (1830-1897), como foram as várias tentativas do Exército de debelar aquela “rebelião” (quando, na verdade, tudo que eles queriam era montar uma comunidade independente). Foi aí que ele chegou à reflexão de que houve um massacre. Então, Nicolau percebeu que Euclides da Cunha mudou de opinião quando ele transformou aquela experiência em literatura.
autenticidade
Acho que, às vezes, falo de mim através de outros personagens. Como nos livros Blecaute (1986) e Malu de bicicleta (2003) e nas peças de teatro E aí, comeu? (2014), e No retrovisor (2003). Nessas obras, não sou o personagem principal. Na verdade, sou um observador das coisas ao redor. Evidentemente, me coloco como testemunha. Acredito que quando você fala com profundidade sobre temas que estão incomodando as pessoas, quando escrevo sobre o que as pessoas querem falar, aí sim posso atingir o público. Não acredito que você seja obrigado a falar de si [em seus livros], mas você precisa falar com verdade.
paternidade
Na verdade, [o tema do próximo livro] foi sugestão do meu editor, Luiz Schwarcz [da Companhia das Letras]. Assim como foi com Feliz Ano Velho, cujo tema foi sugestão do meu editor da época, Caio Graco (1932-1992), da editora Brasiliense. Caio virou para mim e falou: “por que que você não escreve sobre o que está acontecendo contigo?”. Era a minha reabilitação física. E agora, quando Luiz também sugeriu o novo tema, eu achei perfeito, porque a paternidade me fez enxergar a minha mãe de uma forma diferente. Quando me tornei pai, vi como é difícil. Quantas opções você tem que pensar sobre o futuro do seu filho, como você tem que pisar em ovos, como você fica inseguro em relação à vida. Por dois anos, me dediquei a escrever esse livro, pedi permissão à mãe [dos dois filhos], e ele será lançado agora em 2025. Vai se chamar O novo agora. Eu tenho um filho de oito e outro de 11 anos e eles já sabem, desde pequenos, tudo sobre o vovô Rubens. Assim como meu pai me contava, quando eu tinha seis anos, o que era ditadura.
Pela literatura, Marcelo Rubens Paiva dá continuidade à preservação da memória dos efeitos da ditadura, período histórico que enfrenta tentativas de apagamento.
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Texto e imagem reproduzidos do site: www sescsp org br/editorial/tudo-sobre-minha-mae
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