Entrevista compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 31 de janeiro de 2025
Bill Gates fala a VEJA: da obsessão pelo sucesso ao desconforto na era Trump.
Autobiografia ajuda a decifrar as raízes da extraordinária capacidade que o levou a encabeçar a revolução tecnológica. Entrevista a Caio Saad, da Veja:
O ano de 2025 é de muitos significados para o americano Bill Gates e todos que gravitam em torno de uma extraordinária epopeia humana: como a empresa que ele criou com o sócio Paul Allen (1953-2018) em 1975 dominou, e domina até hoje, o segmento mais lucrativo da indústria de computadores — os programas que fazem com que eles sejam muito além de uma máquina ligada na tomada. De lá para cá, Gates, um dos gênios do milênio, passou de garoto prodígio a empreendedor admirado, transmutado depois em vilão monopolista que, mais tarde, deixou para trás o mundo corporativo para fincar pé na filantropia, à frente de uma fundação dedicada a desbravar fronteiras e espalhar conhecimento nas áreas de educação e saúde, especialmente.
Em um ano coalhado de efemérides, Gates completa 70 anos, a Microsoft faz meio século, a chegada de seu criador ao topo da lista de mais ricos soma três décadas (hoje é “só” o décimo terceiro) e a fundação com seu nome celebra o 25º aniversário. Motivos não faltam, portanto, para lançar na próxima terça-feira, 4 de fevereiro, a primeira parte de sua autobiografia, Código-Fonte: Como Tudo Começou (Companhia das Letras), um mergulho pessoal que ajuda a decifrar como se tornou quem é — o precursor de toda uma turma que mudou por meio da tecnologia a forma de a humanidade existir. “Geralmente só olho para o futuro, mas esta me pareceu uma boa data para revisitar o passado”, diz Gates.
Visionário, ao lado de Allen, amigo desde os primórdios na escola, ele terminou por instalar os sistemas Windows e Office em praticamente todos os computadores do planeta tendo como ponto de partida uma era em que a disseminação do PC começava a engatinhar. E assim tornou seu uso acessível como nunca antes, um daqueles inventos capazes de chacoalhar pilares e ensejar a inovação, sedimentando o terreno para novas revoluções, como a da internet. “Quando Paul e eu dizíamos que cada casa e cada mesa teriam um computador, as pessoas nos achavam malucos”, lembra no livro.
Ainda hoje encantado com a linguagem do código e a extrapolação de limites do software, Gates trata com entusiasmo do salto promovido pela inteligência artificial (IA), em que investe e aposta. “A IA fica cada vez mais rica e os programas, mais profundos”, ressaltou na entrevista concedida a VEJA, em que percorreu solos mais movediços, como a experiência com drogas nos efervescentes anos 1970 e a guinada à direita do Vale do Silício, onda que o surpreendeu e na qual não engatou (veja entrevista abaixo). Recentemente, disparou contra Elon Musk, o fiel escudeiro do presidente americano Donald Trump. “É uma loucura e descabido que desestabilize a política de outros países”, disse, a propósito do enfático apoio de Musk à extrema direita alemã.
A espetacular marca de Gates na vida contemporânea foi esculpida desde cedo pela genialidade, uma das mais intrigantes capacidades do cérebro humano. “O gênio”, escreveu o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), “ilumina sua era como um cometa na rota dos planetas”. Habitantes desse panteão nas mais distintas áreas revelaram seu ímpeto para elevar o saber em tenra idade, considerados os feitos que alcançaram. Aos 26 anos, Michelangelo (1475-1564) deu vida a Davi, a portentosa estátua com as veias saltadas no mármore que se agiganta para enfrentar Golias e é a própria expressão da Renascença, uma das mais belas obras da arte ocidental, linda e emocionante. Aos 22, Charles Darwin (1809-1882), que contava ter sido “um garoto muito comum, com intelecto um pouco abaixo do padrão”, pôs-se a bordo do Beagle e zarpou para Galápagos, onde juntaria valiosa observação que, após duas décadas, municiou sua teoria da evolução das espécies. Aos 26, foi a vez de Albert Einstein (1879-1955) prever em sua teoria da relatividade fenômenos que só seriam comprovados no século seguinte, com equipamentos de alta tecnologia.
A diferença entre eles e os seres, digamos, normais vem atiçando a curiosidade de civilizações diversas. Os gregos acreditavam que a superabundância de bílis negra — um dos quatro “humores corporais” descritos por Hipócrates — dotava poetas e filósofos de “poderes exaltados”. Ao longo dos séculos, cientistas coletaram crânios, entre eles o do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), para sondar, medir, pesar e tentar identificar propriedades individuais, mas ali não encontraram a chave para a genialidade. O próprio Einstein teve o cérebro vastamente estudado por um médico-legista a cargo de sua autópsia, que guardou material para futuras investigações. A conclusão é de que a teia de neurônios do físico que virou sinônimo de gênio não se distinguia em eficiência da dos outros, mas funcionava de maneira diferente. “Provavelmente pela exposição a um ambiente em que era possível desenvolvê-la”, segundo pesquisadores.
A ciência já dissecou os fatores que aproximam os indivíduos que se desgarram da curva de modo excepcional — e eles têm raízes em um padrão de comportamento bem peculiar. No conjunto de características desses singulares representantes da espécie constam o perfeccionismo — presente em altas doses na trajetória de Gates, que ficava trancado no quarto horas a fio às voltas com códigos e livros, lapidando o trabalho — e uma insatisfação latente, como se aquilo nunca estivesse bom o suficiente. A coragem de colidir com quem pensa diferente, como nos embates públicos travados com Paul Allen sobre o futuro da empresa, é também um traço do seleto Olimpo, onde não raro a sorte contribui. No caso do fundador da Microsoft, um bom empurrão veio dos ventos que davam gás à revolução tecnológica que ele ajudou a encabeçar, embalado pela oportunidade de fazer o que mais gostava. “Assim como os Beatles eram capazes de tocar oito horas por noite, sete dias por semana, Bill Gates se sentia em êxtase quando estava no teclado do computador. A perspectiva de anos intermináveis de trabalho duro não era um fardo”, escreveu Malcolm Gladwell, autor do best-seller Outliers (Fora de Série), no qual examina como o ambiente e o empenho pessoal determinam as chances de sucesso.
A rigor, Gates não construiu uma obra tangível. Ele é um produtor de ideias — e ao mesmo tempo um produto do lugar onde nasceu e sempre viveu. Natural de Seattle, no estado de Washington, viu sua cidade, berço da gigante aeronáutica Boeing, ser tomada pela febre da tecnologia aeroespacial no fim dos anos 1950 e se transformar numa vitrine da capacidade científica dos Estados Unidos. Na escola em que estudava, Lakeside, uniu-se, em 1968, a um clube de informática (algo então inexistente até nas faculdades) com acesso a um Teletipo Modelo 33 ASR, computador instalado na Califórnia e conectado ao colégio via linha telefônica. No livro, cavuca o baú desse período em que anotava códigos a mão e aguardava a hora de testá-los no laboratório, alvo de disputa da turma nerd. “O computador exigia que eu fosse consistente em termos lógicos e que prestasse atenção nos detalhes. Uma vírgula ou um ponto e vírgula fora do lugar bastavam para que nada funcionasse”, relata.
Até as brincadeiras na adolescência, fase em que não menciona relacionamentos amorosos, tinham a computação no DNA. Gates revive na biografia o episódio em que, com Allen, juntou substantivos, verbos, adjetivos e sintaxe para criar um gerador de 120 frases aleatórias, uma versão muito primitiva dos chatbots de IA. “Interessantes para mim eram leitura, matemática e ficar sozinho. Desinteressantes eram a rotina diária, caligrafia, arte e esportes. E quase tudo o que minha mãe me pedia para fazer”, diz. E dá-lhe dor de cabeça para o clã de três filhos — o pai, bem-sucedido advogado, a mãe, envolvida em projetos sociais. Preocupados com o sarcasmo do rebento do meio, o levaram à terapia e ouviram do especialista: “Desistam de ficar competindo com Bill, pois ele vai ganhar”. Verdade, o tempo mostraria.
Eram comuns seus insultos a colegas e professores. “Isso é a coisa mais cretina que já escutei”, atirava o menino. “Ele era um rebelde com pouco respeito por autoridade, outro elo entre os inovadores excepcionais, mas ao mesmo tempo trabalhava duro. Sua intensidade permitia que cumprisse prazos considerados insanos”, observou Walter Isaacson, autor de livros sobre gênios como Leonardo da Vinci e Steve Jobs (parceiro e rival de Gates), em Os Inovadores — Uma Biografia da Revolução Digital.
Em meados dos anos 1970, imerso em um universo particular e já engatado na Microsoft, Gates não via mais sentido em se manter na universidade e largou a prestigiada Harvard no segundo ano — afronta à trilha esperada que lhe permitiu se perder nos labirintos da computação. Encarava as máquinas como “caça-níqueis”, vício que o mantinha preso à ideia de criar, testar e acertar. “Adorava o desafio mental”, diz. Hoje, tendo adquirido traquejo social, reconhece ter encoberto as inseguranças fingindo indiferença. Passagens mais polêmicas, como o conturbado divórcio de Melinda Gates após 27 anos e o convívio com Jeffrey Epstein, o bilionário pedófilo que abalou a elite americana, pertencem a capítulos posteriores da vida de Gates, a ser abordados em dois livros já previstos — um sobre a era no comando da Microsoft e outro na Fundação Gates. Eles prometem descortinar mais camadas da mente do homem capaz de fazer da árida linguagem dos códigos uma inegável obra-prima.
Quando fica empolgado, Bill Gates balança o corpo inteiro. No resto do tempo, sorri e discorre com calma sobre os temas levantados, bebericando um copo de água. De seu escritório na Califórnia e às vésperas do lançamento de sua autobiografia, o fundador da Microsoft concedeu uma entrevista de uma hora, por videoconferência, a jornalistas de veículos de cinco países — e o repórter Caio Saad, de VEJA, estava entre eles. A seguir, os principais trechos da conversa.
Código-Fonte trata de sua trajetória até chegar à Microsoft. Seu destino estava traçado desde o começo? Acho que sim. Não tive uma infância desafiadora ou ruim. Meus pais eram bem de vida e pude estudar em uma escola particular incrível. O relacionamento com a minha mãe era complexo, porque ela exigia normas de comportamento que não combinavam comigo. Mas por causa da pressão dela desenvolvi logo cedo a capacidade de interagir com adultos, e isso foi bom. Ainda adolescente, trocava ideias com pessoas mais velhas, que gostavam de me desafiar.
E com a turma da sua idade, como era o relacionamento? Levou muito tempo para me socializar com os colegas fora do mundo nerd. Se eu fizesse um teste hoje, provavelmente seria diagnosticado com algum transtorno no espectro do autismo e teria entendido melhor as características que me faziam diferente. Também é provável que recebesse o diagnóstico de transtorno de déficit de atenção.
Até que ponto a falta dessa habilidade social o atrapalhou? Eu sempre tive inveja de pessoas como Steve Jobs, capaz de fazer discursos sedutores e motivar seus funcionários de forma muito natural. Outra coisa que admirava em Jobs era a forma de pensar sobre design e marketing. Nunca cheguei nem perto dele nessas áreas. Uma vez, ele brincou que, se eu tomasse ácido, talvez fizesse produtos de maior bom gosto. Respondi que saímos de fornadas diferentes e nossos talentos eram distintos. Eu não tenho o dom do design. Ele não escrevia uma linha de código.
No livro, o senhor levanta uma discussão sobre o que leva ao sucesso: talento ou esforço. O que se sobrepôs em sua própria trajetória? Quando estava em Harvard, pensava que ser bom em matemática era o teste máximo para definir um gênio e ficava me perguntando: “Sou realmente bom?”. Havia ali pessoas que eram obviamente muito melhores do que eu. Em minha vida, obtive sucesso pela combinação das circunstâncias e das experiências — junto com um pouco de talento, claro. Acho que, no fim das contas, se sai melhor quem tem perseverança.
O senhor também trata da experiência com drogas. Como foi? Como sou otimista e estou disposto a correr riscos, tentei muitas coisas nos anos 1970. Mas minha mente precisa funcionar de forma racional e lógica. Parei com a maconha aos 20 e poucos anos simplesmente porque tirava meu foco e deixava minha mente mais lenta. Para dizer a verdade, fumei maconha na adolescência mais para impressionar as garotas. Não deu certo e desisti.
Sua fundação está envolvida em vários projetos e pesquisas ligados à educação. Acha que ela vai tirar grande proveito da inteligência artificial (IA)? IA é inteligência ao alcance das mãos e terá tremenda influência em todas as áreas, embora eu continue achando que as pessoas deveriam aprender a somar e multiplicar sem a ajuda das máquinas. Sinto muita vergonha de só saber falar inglês e com a IA fiquei ainda mais devagar nesse quesito, mas a ideia de contar com um tradutor de qualquer idioma em tempo real, a apenas um clique, é genial.
E na saúde, área contemplada por sua fundação, como a IA pode ser decisiva? Há pesquisas que fazem uso da edição genética para tentar curar doenças como anemia falciforme e aids, uma revolução na biologia que é acelerada pela inteligência artificial. Só precisamos lapidar certas coisas e fazer da maneira correta. Acredito que apareça, por exemplo, alguma abordagem genética para tornar as pessoas mais inteligentes. Mas vale aplicar isso? Precisamos pensar. Afinal, levanta uma reflexão ética ao mexer com a própria noção do que é humano e natural.
Com tão aceleradas mudanças, o que enxerga no horizonte da tecnologia? Quando eu e Paul Allen falávamos, lá no começo, sobre um computador em cada casa e em cada mesa, as pessoas achavam bizarro. Agora, estamos muito além disso. Não vejo limites para os avanços, estimulados por centenas de bilhões de dólares e inúmeros países envolvidos. É uma escala de competição como nunca se viu.
O senhor é um dos poucos grandes nomes do mundo tech que não aderiram a Donald Trump e sua visão do mundo. Por quê? Politicamente, me situo no centro, na centro-esquerda. Defendo um sistema de tributação mais progressivo, que onere mais os ricos. Até uns anos atrás, só Peter Thiel, fundador do PayPal, expressava opiniões mais confusas e diversas. Os outros eram de esquerda e centro-esquerda, como a Califórnia em geral. A guinada à direita do mundo tech me surpreendeu.
Como é sua relação com Elon Musk? Musk foi bom comigo em alguns momentos e mau em outros. Já conversamos sobre filantropia e não teria problema em trabalhar com ele porque é brilhante, rico e influente. Quando me encontrei com Trump, depois do Natal, em Mar-a-Lago, achei que ele estaria lá, mas não estava. Por causa da fundação, eu mantenho contato com qualquer governo, republicano ou democrata.
Publicado em VEJA de 31 de janeiro de 2025, edição nº 2929 Bill Gates
Texto reproduzido do blog: otambosi blogspot com
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