quarta-feira, 28 de julho de 2021

Assassinado pelos imbecis de ambos os sexos

Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 27 de julho de 2021

Assassinado pelos imbecis de ambos os sexos

Ensaio de Andrei Venturini Martins, publicado pelo Estado da Arte:

A escrita de Nelson Rodrigues, jornalista e um dos maiores dramaturgos do Brasil, sempre foi recheada de polêmicas, as quais enfrentou com muita coragem, não se deixando moldar pelo coro dos indignados. Em 1980, deu sua última entrevista a J. J. Ribeiro, repórter do jornal O Opiniático, veículo mineiro de cunho sensacionalista. Em uma conversa descontraída, o pensador pernambucano falava o que a censura do século XXI classificaria como impublicável.

Não é de hoje que uma parva multidão de idiotas se avoluma. “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”. É evidente que a turba de néscios grita palavras de ordem há muito tempo, mas com o irromper de uma geração que passa boa parte do tempo lambendo as telas dos seus smartphones, o eco de seus urros foi capaz de ultrapassar as fronteiras da sua parca vizinhança e alcançar um número gigantesco de consumidores, aumentando o nível de reclusão mental da multidão.

Essa reclusão mental[2] — termo criado pelo também pernambucano, Joaquim Nabuco, para se referir ao frenesi violento dos revolucionários franceses — foi muito bem ilustrada por Nelson Rodrigues: “Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: — ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina”. Os idiotas não andam sozinhos, mas em bandos, e apresentam um rosto grasso de indignação ética, repudiando impetuosamente todos aqueles e tudo aquilo que não reafirma seu impulso destemido de transformar o mundo em um Narciso à sua imagem e semelhança. Com o dedo em riste, os idiotas dizem como o mundo deve ser, como devemos nos comunicar, impõem o que somos obrigados a tolerar e os valores que deverão pautar nossos comportamentos. São libertários, alimentados pela liberdade dos feitores: “Ah, os nossos libertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria liberdade! A dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Berram contra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura”. Envolto pela bolha imaginária da reclusão mental, o idiota não pensa, seja à direita ou à esquerda, e, com seu rosto esculpido pelo ódio, se torna incapaz de um pensamentozinho.

Acéfalo, o idiota é jovem, em sua grande maioria. Mas que o leitor não se engane, pois a juventude se estendeu, se desvencilhou do tempo, e hoje se faz presente em todas as idades. Os tristes mortais se esqueceram de crescer, e passaram a ser acompanhados pela fragilidade emocional, o isolamento superconectado, a descrença religiosa, a insegurança financeira e o fantasma da indefinição de gênero. Para esses, o polemista ofereceu o seguinte conselho: “Jovens: envelheçam rapidamente!”. É uma sugestão preciosa para quem ainda valoriza o amadurecimento: viver é carregar consigo os amargores da experiência, as lembranças das vitórias episódicas e um lamento triste do fracasso. “Não há nada que fazer pelo ser humano: o homem já fracassou”. Permanecer com aquela firmeza ou tonicidade quase estoica não é uma opção diante de um universo que se desmancha assolado pela contingência, mas uma necessidade para todo aquele que não aceita se entregar à violência do mundo. Para conviver com este espetáculo cósmico macabro, organizado por um demiurgo mal-intencionado, uma dose de supérfluo é necessário, algo que falta aos espíritos infantis, que pensam que a vida só vale por aquilo usualmente percebido como indispensável e prioritário, seja uma causa, um amor ou uma carreira. “O homem só é feliz pelo supérfluo”.

Não se consagra uma vida inteira ao supérfluo, mas sem ele nem mesmo conseguimos saborear o que chamamos de essencial. Navegando, então, entre o supérfluo e o essencial, Nelson Rodrigues nos deixa alguns recados.

Às mulheres bonitas, recomenda: “Era preciso que alguém fosse de mulher em mulher anunciando: ser bonita não interessa, seja interessante”. A beleza deslumbrante da mulher encanta meus olhos, contudo, quando mensuro o peso dessa beleza sobre os ombros da mulher, lembro da via crucis e seu principal personagem, o nazareno. Quantas mulheres perderam sua vida no intuito de transformar plasticamente seus corpos em objetos de admiração de si mesmas e dos outros? Quantas lamentam que seu rosto não se espelha em uma foto cheia de filtros? Ser bela é fácil: basta um bisturi, um bom cirurgião ou, se tiver sorte, as graças da natureza. O problema é que a beleza passa: “A beleza interessa nos primeiros quinze dias; e morre, em seguida, num insuportável tédio visual”. A bela paisagem perfeita para turista é, para o caiçara, repetitiva e enfadonha. A harmonia das formas não resiste ao tempo e torna-se monótonacansa o olhar. Mas isso não significa que a beleza deve ser desprezada: “Considero que uma mulher deve estar sempre preparada, sempre bonita, sempre maquilada, seja para o marido, seja para os outros, seja para si mesma”.[3] Portanto, a mulher bonita deve zelar por sua beleza, pois essa é uma característica que lhe é própria, é sua natureza: assim como a lei da gravidade faz as coisas pesadas caírem, a mulher bonita chamará atenção. Contudo, esteja ciente de que a beleza se desmancha e, por isso, cuide de ser interessante.

Até agora, falei das mulheres bonitas que, como tudo que é belo, são raras. Há também as mulheres feias, as quais não são tão raras assim. Tão feias que nem a medicina ajuda. Eu sei que, nesse momento, o coro dos indignados costuma entrar em ação, mas eu não tenho culpa de a feiura ter sido tão bem distribuída pela Natureza. Além disso, existe espelho, e ele não mente, ao contrário dos humanos. “A maioria das mulheres pensa que é bonita. E vive, envelhece, morre nessa ilusão. Há o espelho, que nos retransmite a imagem, com absoluta fidelidade”.[4] O que fazer quando a verdade insuportável se desvela? Myrna as aconselha: “De uma maneira geral, é sempre interessante que a mulher se faça de difícil. (…) Até uma esposa deve, de vez em quando, resistir. E com muito mais razão uma mulher feia. A mulher feia precisa jogar, até a última hora, com uma premeditada ‘dificuldade’. Precisa se fazer, por bastante tempo, ‘inconquistável’”.[5] Essa escassez do contato mais profundo cria, milagrosamente, um interesse indelével do amante. Ser inconquistável: eis a mística da mulher feia. Porém, que ela não se esqueça da astúcia, daquela que está contida na natureza de toda mulher, e que a permite ser interessante.

Não raro, belas e feias sempre se encontram, já que, sem fazer nenhuma distinção de pessoa, a contingência sempre se manifesta por seu papel corrosivo, direcionando a humanidade ao nada. Se estamos fadados a perder as formas — a nos deformar —, nos restaria cultivar aquilo que é interessante. Todavia ser interessante é difícil, raro, e exige um esforço tremendo para forjar tal imagem, assim como a energia que se despende na produção de moedas falsas: “O ser humano é o único que se falsifica”. Macacos, gazelas e marrecos não se falsificam, diz o dramaturgo. Entretanto o que mais restaria ao pobre humano senão falsear a si mesmo para se tornar minimamente interessante? É uma pergunta difícil de ser respondida. Afirmo, porém, que quando se trata da beleza e da arte de ser interessante, a medicina mostra-se uma ciência muito mais simplória na produção da beleza, quando comparada à astúcia cotidiana das mulheres interessantes: a produção hospitalar de beleza depende de um número reduzido de técnicas médicas, ao passo que ser interessante é um astucioso trabalho de uma vida inteira, ou, talvez, uma dádiva da graça.

Penso que o conselho dado às mulheres na década de 1980 também poderia ser aplicado aos homens. Com suas barbinhas bem-feitas e perfumadinhas, sobrancelhas alinhadas, tatuagens engenhosamente impressas em braços torneados e desérticos de pelos para sublinhar o visual, sem se esquecer dos cabelos aprumados, fio a fio, Nelson Rodrigues, provavelmente, diria aos homens, com sua voz alta e rouquenha: ser bonito não interessa, seja interessante.

Tal conselho instigaria os homens, talvez, a buscarem aquele alto valor excelente e distinto, cuja grandeza se faz ainda mais gloriosa por ser tão raro entre os varões: ser interessante. Uma mulher que busque um homem interessante corre o risco de repetir a tragédia camusiana de Calígula: busca-se a lua, ou melhor, procura-se aquilo que não se pode encontrar.[6] É “mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha” (Mt. 19, 23) do que uma mulher encontrar um homem interessante. Se a humanidade dependesse de que as mulheres encontrassem homens interessantes, “assistiríamos um espetáculo tenebroso; ou seja: o súbito despovoamento do mundo”.[7] Bem-aventurados os homens desinteressantes, pois eles herdarão a terra. Não precisa ser profeta para fazer essa constatação quase matemática. O homem é feiíssimo, abrutalhado, pouco confiável, violento, estranho, portanto nem belo nem interessante, como algumas mulheres. A mulher foi capaz de realizar um ato heroico e assombroso: erotizar o homem desinteressante. Por isso, na minha opinião — pura opinião mesmo! —, o homem ser amado pela mulher é mais um daqueles mistérios insondáveis que pairam sobre a Terra.

A “vida como ela é” é crudelíssima para todos aqueles seres racionais compostos de cromossomos xx ou xy. O que fazer diante de um quadro tão difícil? “Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela”. Esse ensinamento de Nelson Rodrigues foi dado aos homens, contudo eu não tenho dúvida que ele vale para todos os mortais. Nesse caso, a “bunda” é a grande metáfora rodriguiana da vida: quando nela nos aprofundamos, corremos o risco de nos deparamos com um cheiro horrível. Não suportamos ficar submersos por muito tempo no mais profundo e sem fundo da vida, pois é preciso respirar. Por isso, “passar a mão na bunda” da vida é tornar a existência mais leve e reservar-se o direito de algumas superficialidades que nos desviem do mal-estar que nos habita.

Quando o miserável humano se põe a meditar sobre sua condição, ele se torna mais pensativo, melancólico, percebe que “tem uma face linda e outra hedionda”. Ao “passar a mão no rosto”, e corajosamente “reconhecer a própria hediondez”, o homem salva si mesmo, se redime da canalhice, da mentira e, como um santo que conhece as sombras que pairam sobre sua alma, passa a sentir vergonha: “Só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam”. Nelson Rodrigues era menos pessimista do que eu.

Agora entendo o epitáfio do profeta: “Aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”.

Notas:

[1] Alexandre Flores ALKIMIM. A última entrevista de Nelson Rodrigues. Entrevista de

1980 dada ao repórter J. J. Ribeiro, do periódico “O Opiniático”. Revista Bula, 2016. Acessível em: <https://www.revistabula.com/5753-a-ultima-entrevista-de-nelson-rodrigues-2/>. Demais citações neste artigo, sem referência específica, poderão ser encontradas na mesma entrevista.

[2] Cf. Joaquim NABUCO, Minha Formação. São Paulo: Editora 34, 2012. p. 73.

[3] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 44.

[4] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 79.

[5] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 80-81.

[6] Albert Camus. Caligula. Paris: Editions Gallimard, 1958, ato I, cena 4.

[7] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 27.

Andrei Venturini Martins é Doutor em Filosofia pela PUC-SP. Professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), palestrante na Casa do Saber e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP LABÔ.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário