Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 27
de julho de 2021
Assassinado pelos imbecis de ambos os sexos
Ensaio de Andrei Venturini Martins, publicado pelo Estado da
Arte:
A escrita de Nelson Rodrigues, jornalista e um dos maiores
dramaturgos do Brasil, sempre foi recheada de polêmicas, as quais enfrentou com
muita coragem, não se deixando moldar pelo coro dos indignados. Em 1980, deu
sua última entrevista a J. J. Ribeiro, repórter do jornal O Opiniático, veículo
mineiro de cunho sensacionalista. Em uma conversa descontraída, o pensador
pernambucano falava o que a censura do século XXI classificaria como
impublicável.
Não é de hoje que uma parva multidão de idiotas se avoluma.
“O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do
idiota”. É evidente que a turba de néscios grita palavras de ordem há muito
tempo, mas com o irromper de uma geração que passa boa parte do tempo lambendo
as telas dos seus smartphones, o eco de seus urros foi capaz de ultrapassar as
fronteiras da sua parca vizinhança e alcançar um número gigantesco de
consumidores, aumentando o nível de reclusão mental da multidão.
Essa reclusão mental[2] — termo criado pelo também
pernambucano, Joaquim Nabuco, para se referir ao frenesi violento dos
revolucionários franceses — foi muito bem ilustrada por Nelson Rodrigues:
“Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos
melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: — ou o sujeito se submete ao
idiota ou o idiota o extermina”. Os idiotas não andam sozinhos, mas em bandos,
e apresentam um rosto grasso de indignação ética, repudiando impetuosamente
todos aqueles e tudo aquilo que não reafirma seu impulso destemido de
transformar o mundo em um Narciso à sua imagem e semelhança. Com o dedo em
riste, os idiotas dizem como o mundo deve ser, como devemos nos comunicar,
impõem o que somos obrigados a tolerar e os valores que deverão pautar nossos
comportamentos. São libertários, alimentados pela liberdade dos feitores: “Ah,
os nossos libertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria
liberdade! A dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Berram contra
todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura”. Envolto
pela bolha imaginária da reclusão mental, o idiota não pensa, seja à direita ou
à esquerda, e, com seu rosto esculpido pelo ódio, se torna incapaz de um
pensamentozinho.
Acéfalo, o idiota é jovem, em sua grande maioria. Mas que o
leitor não se engane, pois a juventude se estendeu, se desvencilhou do tempo, e
hoje se faz presente em todas as idades. Os tristes mortais se esqueceram de
crescer, e passaram a ser acompanhados pela fragilidade emocional, o isolamento
superconectado, a descrença religiosa, a insegurança financeira e o fantasma da
indefinição de gênero. Para esses, o polemista ofereceu o seguinte conselho:
“Jovens: envelheçam rapidamente!”. É uma sugestão preciosa para quem ainda
valoriza o amadurecimento: viver é carregar consigo os amargores da
experiência, as lembranças das vitórias episódicas e um lamento triste do
fracasso. “Não há nada que fazer pelo ser humano: o homem já fracassou”.
Permanecer com aquela firmeza ou tonicidade quase estoica não é uma opção
diante de um universo que se desmancha assolado pela contingência, mas uma
necessidade para todo aquele que não aceita se entregar à violência do mundo.
Para conviver com este espetáculo cósmico macabro, organizado por um demiurgo
mal-intencionado, uma dose de supérfluo é necessário, algo que falta aos
espíritos infantis, que pensam que a vida só vale por aquilo usualmente
percebido como indispensável e prioritário, seja uma causa, um amor ou uma
carreira. “O homem só é feliz pelo supérfluo”.
Não se consagra uma vida inteira ao supérfluo, mas sem ele nem mesmo conseguimos saborear o que chamamos de essencial. Navegando, então, entre o supérfluo e o essencial, Nelson Rodrigues nos deixa alguns recados.
Às mulheres bonitas, recomenda: “Era preciso que alguém
fosse de mulher em mulher anunciando: ser bonita não interessa, seja
interessante”. A beleza deslumbrante da mulher encanta meus olhos, contudo,
quando mensuro o peso dessa beleza sobre os ombros da mulher, lembro da via
crucis e seu principal personagem, o nazareno. Quantas mulheres perderam sua
vida no intuito de transformar plasticamente seus corpos em objetos de
admiração de si mesmas e dos outros? Quantas lamentam que seu rosto não se
espelha em uma foto cheia de filtros? Ser bela é fácil: basta um bisturi, um
bom cirurgião ou, se tiver sorte, as graças da natureza. O problema é que a
beleza passa: “A beleza interessa nos primeiros quinze dias; e morre, em
seguida, num insuportável tédio visual”. A bela paisagem perfeita para turista
é, para o caiçara, repetitiva e enfadonha. A harmonia das formas não resiste ao
tempo e torna-se monótonacansa o olhar. Mas isso não significa que a beleza
deve ser desprezada: “Considero que uma mulher deve estar sempre preparada,
sempre bonita, sempre maquilada, seja para o marido, seja para os outros, seja
para si mesma”.[3] Portanto, a mulher bonita deve zelar por sua beleza, pois
essa é uma característica que lhe é própria, é sua natureza: assim como a lei
da gravidade faz as coisas pesadas caírem, a mulher bonita chamará atenção.
Contudo, esteja ciente de que a beleza se desmancha e, por isso, cuide de ser
interessante.
Até agora, falei das mulheres bonitas que, como tudo que é
belo, são raras. Há também as mulheres feias, as quais não são tão raras assim.
Tão feias que nem a medicina ajuda. Eu sei que, nesse momento, o coro dos
indignados costuma entrar em ação, mas eu não tenho culpa de a feiura ter sido
tão bem distribuída pela Natureza. Além disso, existe espelho, e ele não mente,
ao contrário dos humanos. “A maioria das mulheres pensa que é bonita. E vive,
envelhece, morre nessa ilusão. Há o espelho, que nos retransmite a imagem, com
absoluta fidelidade”.[4] O que fazer quando a verdade insuportável se desvela?
Myrna as aconselha: “De uma maneira geral, é sempre interessante que a mulher
se faça de difícil. (…) Até uma esposa deve, de vez em quando, resistir. E com
muito mais razão uma mulher feia. A mulher feia precisa jogar, até a última
hora, com uma premeditada ‘dificuldade’. Precisa se fazer, por bastante tempo,
‘inconquistável’”.[5] Essa escassez do contato mais profundo cria,
milagrosamente, um interesse indelével do amante. Ser inconquistável: eis a
mística da mulher feia. Porém, que ela não se esqueça da astúcia, daquela que
está contida na natureza de toda mulher, e que a permite ser interessante.
Não raro, belas e feias sempre se encontram, já que, sem
fazer nenhuma distinção de pessoa, a contingência sempre se manifesta por seu
papel corrosivo, direcionando a humanidade ao nada. Se estamos fadados a perder
as formas — a nos deformar —, nos restaria cultivar aquilo que é interessante.
Todavia ser interessante é difícil, raro, e exige um esforço tremendo para
forjar tal imagem, assim como a energia que se despende na produção de moedas
falsas: “O ser humano é o único que se falsifica”. Macacos, gazelas e marrecos
não se falsificam, diz o dramaturgo. Entretanto o que mais restaria ao pobre
humano senão falsear a si mesmo para se tornar minimamente interessante? É uma
pergunta difícil de ser respondida. Afirmo, porém, que quando se trata da
beleza e da arte de ser interessante, a medicina mostra-se uma ciência muito
mais simplória na produção da beleza, quando comparada à astúcia cotidiana das
mulheres interessantes: a produção hospitalar de beleza depende de um número
reduzido de técnicas médicas, ao passo que ser interessante é um astucioso
trabalho de uma vida inteira, ou, talvez, uma dádiva da graça.
Penso que o conselho dado às mulheres na década de 1980
também poderia ser aplicado aos homens. Com suas barbinhas bem-feitas e
perfumadinhas, sobrancelhas alinhadas, tatuagens engenhosamente impressas em
braços torneados e desérticos de pelos para sublinhar o visual, sem se esquecer
dos cabelos aprumados, fio a fio, Nelson Rodrigues, provavelmente, diria aos
homens, com sua voz alta e rouquenha: ser bonito não interessa, seja
interessante.
Tal conselho instigaria os homens, talvez, a buscarem aquele
alto valor excelente e distinto, cuja grandeza se faz ainda mais gloriosa por
ser tão raro entre os varões: ser interessante. Uma mulher que busque um homem
interessante corre o risco de repetir a tragédia camusiana de Calígula:
busca-se a lua, ou melhor, procura-se aquilo que não se pode encontrar.[6] É
“mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha” (Mt. 19, 23) do que
uma mulher encontrar um homem interessante. Se a humanidade dependesse de que
as mulheres encontrassem homens interessantes, “assistiríamos um espetáculo
tenebroso; ou seja: o súbito despovoamento do mundo”.[7] Bem-aventurados os
homens desinteressantes, pois eles herdarão a terra. Não precisa ser profeta
para fazer essa constatação quase matemática. O homem é feiíssimo, abrutalhado,
pouco confiável, violento, estranho, portanto nem belo nem interessante, como
algumas mulheres. A mulher foi capaz de realizar um ato heroico e assombroso:
erotizar o homem desinteressante. Por isso, na minha opinião — pura opinião
mesmo! —, o homem ser amado pela mulher é mais um daqueles mistérios
insondáveis que pairam sobre a Terra.
A “vida como ela é” é crudelíssima para todos aqueles seres
racionais compostos de cromossomos xx ou xy. O que fazer diante de um quadro
tão difícil? “Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela”.
Esse ensinamento de Nelson Rodrigues foi dado aos homens, contudo eu não tenho
dúvida que ele vale para todos os mortais. Nesse caso, a “bunda” é a grande
metáfora rodriguiana da vida: quando nela nos aprofundamos, corremos o risco de
nos deparamos com um cheiro horrível. Não suportamos ficar submersos por muito
tempo no mais profundo e sem fundo da vida, pois é preciso respirar. Por isso,
“passar a mão na bunda” da vida é tornar a existência mais leve e reservar-se o
direito de algumas superficialidades que nos desviem do mal-estar que nos
habita.
Quando o miserável humano se põe a meditar sobre sua
condição, ele se torna mais pensativo, melancólico, percebe que “tem uma face
linda e outra hedionda”. Ao “passar a mão no rosto”, e corajosamente
“reconhecer a própria hediondez”, o homem salva si mesmo, se redime da
canalhice, da mentira e, como um santo que conhece as sombras que pairam sobre
sua alma, passa a sentir vergonha: “Só acredito nas pessoas que ainda se
ruborizam”. Nelson Rodrigues era menos pessimista do que eu.
Agora entendo o epitáfio do profeta: “Aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”.
Notas:
[1] Alexandre Flores ALKIMIM. A última entrevista de Nelson
Rodrigues. Entrevista de
1980 dada ao repórter J. J. Ribeiro, do periódico “O
Opiniático”. Revista Bula, 2016. Acessível em:
<https://www.revistabula.com/5753-a-ultima-entrevista-de-nelson-rodrigues-2/>.
Demais citações neste artigo, sem referência específica, poderão ser
encontradas na mesma entrevista.
[2] Cf. Joaquim NABUCO, Minha Formação. São Paulo: Editora 34,
2012. p. 73.
[3] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao
mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 44.
[4] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao
mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 79.
[5] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao
mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 80-81.
[6] Albert Camus. Caligula. Paris: Editions Gallimard, 1958,
ato I, cena 4.
[7] Nelson RODRIGUES. Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao
mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 27.
Andrei Venturini Martins é Doutor em Filosofia pela PUC-SP.
Professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), palestrante na Casa do
Saber e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da
Fundação São Paulo/PUC-SP LABÔ.
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com
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