O escritor peruano Mario Vargas Llosa na sua casa, em Madri,
em 2019.
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
13 de abril de 2020
Mario Vargas Llosa: “Com o progresso, acreditamos que a
natureza estava dominada”
O ganhador do Nobel de Literatura passa o confinamento lendo
Galdós na sua casa de Madri, e alerta para os efeitos negativos de um
retrocesso da globalização e de ter o Governo chinês como modelo
Por Juan Cruz
“Acaba de sair o sol!”, dizia, às cinco da tarde do último
sábado, Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura, com 84 anos
recém-completados (em 28 de março). “Assim se levanta um pouco o ânimo.” O
autor peruano passa o confinamento em sua casa de Madri, lendo Los Episodios
Nacionales, de Benito Pérez Galdós (1843-1920).
Pergunta. Escute isto: “Fiquei sozinho como um cogumelo e
tornei a fazer a vida monástica (…). Só continuarei aqui até o fim de mês,
felizmente, porque é como viver na Lua (…). Sinto-me menos que um homem, que um
animal ou que uma planta, um pedacinho de lixo, umas gotinhas de xixi, às vezes
nem sequer isso. Não há um café, nem um cinema, e a ideia de fazer essa longa
expedição até os lugares habitados me deprime…”.
Resposta. É a reflexão de um confinado, sem dúvida. De onde
saiu isso?
P. É de uma carta que você escreveu ao seu amigo Abelardo
Oquendo quando, em 12 de fevereiro de 1966, você estava escrevendo Conversa no
Catedral. Como se sente agora?
R. Este confinamento é algo formidável para mim porque tenho
um tempo para ler como nunca tive. Geralmente trabalho muito pelas manhãs, mas
duas ou três tardes à semana tenho sempre algum encontro, alguma entrevista.
Agora não vem ninguém! Posso ler dez horas por dia!
P. E está lendo Galdós.
R. Sim, praticamente já terminei Los Episodios Nacionales.
Um trabalho gigantesco, em uma linguagem acessível, divertida. Ele se
documentou, mas trabalhou com liberdade. Descreve o caos, as contradições, como
são arbitrários alguns dirigentes partidários. E há esse personagem
maravilhoso, Mosén Antón, que tem uma raivinha e passa para o lado dos
franceses por mau humor. Imagine o que isso significa como caos.
P. Encontra nessa leitura algo que a relacione com a Espanha
deste mês, por exemplo?
R. Sem dúvida nenhuma. Tínhamos a impressão de que, com o
progresso e a modernidade, tínhamos dominado a natureza. Pois não! Uma grande
idiotice. A prova é que isto pegou praticamente todos os países de surpresa.
Nenhum estava preparado para um desafio assim. Um chinês come um morcego e isso
provoca uma pandemia que aterroriza o mundo. Nenhum país estava preparado para
um desafio semelhante. Isto significa como o progresso é relativo, como podemos
ter surpresas muito desagradáveis com essa confiança. E uma das lições que será
preciso tirar é que temos que estar mais bem preparados para o imprevisível.
P. O aspecto global também fica questionado.
R. Tudo tem um preço, e o preço negativo da globalização é
este. Por outro lado, permite aos países pobres derrotarem a pobreza a grande
velocidade, algo inesperado há poucos anos. Pela primeira vez hoje os países
pobres têm possibilidades de saírem a uma velocidade impensável. Isso é algo
que a globalização permite. Seria muito negativo que, como consequência desta
pandemia, a globalização retrocedesse e voltássemos a levantar fronteiras que
tanto trabalho custou diminuir.
P. Não lhe causa assombro que uma potência como os Estados
Unidos seja atacada por um vírus e só possa ser defendida pela ciência, pelo
acaso ou pela esperança?
R. Os Estados Unidos, que pareciam estar acima do bem e do
mal, estava muito pouco preparados. Prova disso são as 2.000 mortes que
ocorreram um dia destes. Havíamos confiado em que o progresso havia trazido
tantos benefícios que já não haveria surpresas desagradáveis. Mas não! As
surpresas desagradáveis estão à porta. É verdade que alguns países resistiram
melhor que outros, mas não foi o caso dos países que acreditávamos estar na
ponta do progresso, como os Estados Unidos.
P. Você foi um dos primeiros a levantar a voz em relação à
manipulação que a China fez de seu próprio caso.
R. O caso da China é muito interessante, porque tem muita
gente surpresa com progressos que a colocavam agora como modelo: sacrificar as
liberdades abrindo um mercado livre na economia. Agora ficou demonstrado que o
progresso sem liberdade não é progresso, e o caso da China foi flagrante. Um
país que se vê sacudido por uma pandemia como esta, que nasce em seu seio e
diante da qual os próprios dirigentes agem de maneira autoritária, tentando
esconder o que seus melhores médicos denunciaram que iria acontecer. Foi o
típico reflexo de um sistema autoritário: negá-lo, obrigar esses médicos a se
desmentirem. Muitas vidas poderiam ter sido salvas se um Governo como o chinês
tivesse informado imediatamente.
P. Trump, Bolsonaro e Johnson resistiram a entender que isso
também acontecia com eles...
R. Isso custou muitas vidas! Agiram de forma irresponsável,
pensando que poderiam driblar a ameaça. Acredito que os eleitores dos países
democráticos e livres os examinarão, sem dúvida pagarão por isso. Seguiram
aquele reflexo autoritário de não dar importância quando se tratava de um
perigo tão sério.
P. Como vê a situação da América Latina?
R. Felizmente a pandemia chegou lá no verão. E o calor é
dissuasivo para o vírus [ainda não existem estudos concretos que apontem para
esta relação]. Ele a está golpeando, mas muitíssimo menos do que se tivesse
chegado no inverno [no Brasil e Equador o número de casos não para de aumentar].
Do contrário seria difícil explicar que o Peru, com uma infraestrutura que não
está à altura do desafio, ainda não chegou a cem mortos. De qualquer forma, meu
país respondeu vigorosa e rapidamente, de modo que o presidente Martín Vizcarra
aumentou enormemente sua popularidade.
P. Compartilha as advertências sobre a possibilidade de que
as normas para combater a pandemia firam as liberdades civis?
R. Sem dúvida. Infelizmente essa é uma das consequências do
pânico generalizado causado pela pandemia... Estava em andamento um processo de
dissolução de fronteiras. A globalização estava funcionando muito bem. No
entanto, o terror dessa pandemia corre o risco de nos fazer retroceder a essa
espécie de retorno à tribo, acreditando que essas fronteiras nos protegerão
melhor contra a pandemia. Não é verdade. Acredito que hoje em dia a resposta
generalizada da Europa à pandemia está poupando muitas vidas em relação com
fatos do passado.
P. Como viu a atitude da Europa?
R. É um pouco injusto criticar os países que fizeram bem a
lição de casa e estão expostos a demandas daqueles que nem sempre a fizeram.
Finalmente, houve um acordo através de uma negociação difícil. Aceitaram fazer
parte de uma unidade como a europeia e vamos compartilhar esse progresso graças
à compreensão daqueles que fizeram bem a lição de casa.
P. No final do seu artigo de 18 de março no EL PAÍS [Retorno
à Idade Média?], você diz: “O terror à peste é, simplesmente, o medo da morte
que nos acompanhará como uma sombra”. Você teve medo?
R. Acredito que é impossível não ter medo da morte se você
não estiver muito desesperado ou tiver uma vida demasiado trágica para desejar
que ela acabe. Essa é a exceção à regra. O normal é ter medo da extinção. Em
uma situação como a que vivemos agora, vendo amigos ou conhecidos que
desaparecem arrastados por essa doença, é impossível que o medo da morte não se
espalhe. É a reação saudável, natural. Além disso, graças à morte a vida é
maravilhosa, tem essas compensações fantásticas, como a leitura, por exemplo.
Espero que aumente graças à pandemia!
A Europa estará melhor
Não se pode aceitar, diz Vargas Llosa, que esta crise
represente um retrocesso para a Europa. É preciso corrigir os defeitos, é
claro, “mas os países da União Europeia estarão melhores”. Em primeiro lugar,
“a paz na Europa continuará, uma realidade sem precedentes porque até agora as
pessoas não fizeram nada além de se inimizar”. Essa é uma projeção que
incentiva que o futuro “não seja de retrocesso, mas de avanço, com o
desvanecimento total das fronteiras, para consolidar um projeto supraestatal
que agora traz tantos benefícios”.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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