Vizinhos conversam pela sacada em um prédio em Madri.
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 22 de março de 2020
Será que começamos a nos sentir mais iguais diante do medo
de uma nova guerra viral?
De repente, ninguém se sente seguro diante desse mal
invisível. Todos nós estamos igualmente desarmados
Por Juan Arias
O mundo está passando por uma prova global de medo diante da
nova epidemia viral que ameaça a todos por igual e que nos mostra que, para
ela, não existem muros nem fronteiras. É um inimigo que domina o espaço e o
tempo, e a humanidade não será a mesma depois deste enigma que ninguém é capaz
de resolver. Se será melhor ou pior, dependerá de nós e de como sejamos capazes
de entender sua mensagem.
O que é certo é que, de repente, ninguém se sente seguro
diante desse mal invisível. Todos nós estamos igualmente desarmados. Pessoas
importantes e simples, famosas e anônimas se veem forçadas a lavar igualmente
as mãos, a cobrir comicamente o rosto e a sofrer a quarentena até amorosa
imposta pelo temor do contágio. Todos sentem medo. Descobrimos ser igualmente
vulneráveis diante de um inimigo invisível que não pede nossa identidade de
gênero, política ou religiosa para nos atacar ou nos salvar. O presidente de um
banco importante morre e seu motorista se salva. Morrem o político e o
pedreiro, o crente e o ateu. O mundo, as coisas, a vida e seus velhos
paradigmas estão mudando vertiginosamente, para nosso assombro.
Será que esta guerra sem nome servirá para algo? Será que
nos fará mais humanos, com menos ódio, ou endurecerá ainda mais nosso coração?
Nestas horas de angústia global em que as crianças nos olham com estranhamento,
fazem-nos perguntas sem respostas e não entendem por que não podemos mais
beijá-las, prefiro apostar que o vírus diabólico que chega sem bater à porta
nos trará o paradoxo de nos ajudar a refletir se vale a pena cultivar no
coração tantos ódios políticos, tanta vontade de acumular. Ele nos obriga a
repensar nosso moderno e cruel capitalismo, assim como nos obriga a olhar nos
olhos as vítimas da pobreza e o abandono dos discriminados. Desta vez, todos
nós, sem distinção de posição social, sentimos medo e vulnerabilidade.
Talvez seja uma miragem, mas parece que alguma coisa já está
mudando. Estamos, por exemplo, mais sensíveis ao que possa acontecer com nossa
família e amigos. De repente, nós os sentimos mais próximos enquanto somos
obrigados a nos distanciar fisicamente deles. Nunca tínhamos nos comunicado
tanto através das redes para saber como estão aqueles que amamos ou que
havíamos esquecido. Nunca estivemos tão distantes e com tanta vontade de estar
juntos, de poder voltar a nos abraçar e a nos beijar sem medo.
É como se descobríssemos que somos mais iguais diante do
perigo e se despertasse em nós um sentimento de compaixão que tínhamos esquecido.
Eu mesmo vejo agora com uma ternura especial, por exemplo, aqueles que passam
para coletar o lixo, os médicos e enfermeiros que também estão morrendo, os que
não podem parar de descer das favelas para o asfalto porque precisam trabalhar,
e fazem isso utilizando um transporte coletivo abarrotado, expondo-se mais do
que ninguém ao contágio. Eles, os mais pobres, o novo proletariado da
modernidade, serão certamente os que terão de suportar o fardo mais pesado da
dor. Ainda vêm por aí muito desemprego −que atinge os mais fracos da cadeia
social− e muito sofrimento. Ainda mais em um país como o Brasil, com tantos
bolsões de pobreza e miséria e com milhões de pessoas sem serviços básicos de
higiene.
Mas, ao mesmo tempo, estou sentindo que, embora as vozes mais
estridentes do ódio político e religioso que infectou o Brasil não tenham se
calado, começa a ser percebida nas redes sociais, assim como nos comentários
dos leitores na imprensa, uma agressividade menor, como uma tentação de escutar
e entender que, diante do medo da nova praga, precisamos nos unir em vez de nos
dividir. Começamos a distinguir melhor o essencial do inútil que vamos
acumulando na vida, assim como a importância de defender nosso planeta dos
ataques que ameaçam sua existência.
É como se, de repente, uma parte da sociedade estivesse
mudando de registro, deixando de ser raivosa e ofensiva e abraçando um desejo
mais forte de comunhão, como se o novo inimigo começasse a derrubar as
trincheiras levantadas pelas ideologias.
Esta epidemia que nos atingiu como um lúgubre e imprevisível
fantasma da morte terá consequências políticas e sociais tanto mundiais como
locais. Inclusive aqui no Brasil, um país que, além disso, não tem um líder à
altura da gravidade do momento. Uma tragédia que nos afetará a todos também no
campo humano e emocional. Será que sairemos deste inferno melhores ou piores?
Será que teremos menos rancores, mais consciência de que todos nascemos nus e
iguais, mais vontade de lutar, de agora em diante, por uma vida melhor para
todos, de mãos dadas como em uma festa, menos apegados às coisas inúteis e
supérfluas, ou continuaremos olhando um para o outro com olhos de sangue?
Meu pressentimento é o de que, se o vírus nos perdoar,
sairemos desta com mais vontade de construir um mundo menos cruel, mais feliz e
mais de todos, onde, como afirma o profeta Isaías, “as espadas se transformem
em arados e os lobos possam conviver com os cordeiros”. E onde “nenhuma nação
se levantará contra outra e ninguém mais se preparará para a guerra”.
Mantenhamos a raiva contra tudo que nos oprime e tenta nos
alienar. Gritemos nossa indignação e angústia contra os tiranos do momento,
porque essa raiva e esse grito são justos e terapêuticos. Mas devemos nos
despojar do ódio e da violência que atingem principalmente os mais
desamparados, e ser capazes de nos olhar mais nos olhos, sem medo. Talvez
acabemos descobrindo que somos todos filhos da mesma luz e vítimas da mesma
cegueira.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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