Ilustração - GORKA OLMO
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 7 de março de 2020
Conselhos dos esquimós contra o pessimismo
Por Francesc Miralles
O presente como única realidade. Os verdadeiros amigos. Uma
inesperada saída ante o medo. Pequenas lições dos povos do norte que nos ajudam
a superar as adversidades diárias
Os 70.000 esquimós (ou inuit, que significa “povo” em seu
idioma) residem num território que abrange o Canadá, o Alasca, a Sibéria e a
Groelândia. Os habitantes do Ártico têm uma mitologia e uma espiritualidade
próprias. Segundo a escritora e ensaísta norte-americana Annie Dillard, eles
acreditam que “cada indivíduo possui seis ou sete almas, encarnadas por pessoas
diminutas espalhadas por diferentes partes do corpo”. Uma das crenças mais
belas desses povos do norte é que as estrelas são buracos no céu que deixam
passar a luz dos seres queridos que já morreram, para que aqui embaixo saibamos
que são felizes.
Talvez pelas duras condições de vida desses habitantes do
frio, sua sabedoria popular expressa a arte cotidiana de superar as
circunstâncias mais difíceis. Vejamos algumas dicas que podem ser úteis também
para o nosso dia a dia.
Ayurnamat. Esse termo inuíte não tem uma palavra equivalente
em nosso idioma, mas engloba uma filosofia vital que podemos resumir nesta
frase: “Não vale à pena se preocupar com as coisas que não podemos mudar.” Essa
mesma ideia existe nas tradições chinesa e árabe, mas o fato de que os esquimós
tenham um vocábulo específico indica até que ponto ele faz parte da sua
cultura. A sobrevivência exige concentrar-se apenas no que depende de nós
mesmos, deixando de fora tudo aquilo sobre o qual não temos controle.
“Não faça em sua casa janelas tão pequenas que impeçam a
claridade de entrar nos quartos.” Tomando isso de forma literal, é
compreensível que, nos assentamentos onde há pouca luz durante boa parte do
ano, seja preciso facilitar a entrada de Sol. Mas essa frase inuíte possui uma
segunda leitura mais pessoal. Se o seu olhar sobre a realidade é estreito, você
sempre verá tudo escuro ou diretamente preto, já que a sua visão é influenciada
por seu olhar. O melhor remédio contra o pessimismo e a negatividade é ampliar
horizontes e entender que há um mundo muito amplo além dos nossos problemas.
“Você nunca saberá realmente quem são os seus amigos até que
o gelo se rompa sob os seus pés.” Levando ao nosso entorno urbano, a atriz
Marlene Dietrich dizia que “os únicos amigos que contam são os aqueles para
quem você pode ligar às quatro da madrugada”. Em situações de comemoração e
tranquilidade, certamente podemos ter a ilusão de que contamos com muitas
amizades, mas a pedra de toque são os momentos difíceis. Ante uma ruína
econômica, uma separação ou uma longa doença – equivalentes ao gelo que se
rompe –, muitas pessoas desaparecem e só uma minoria continua presente, dando o
melhor de si. Esse filtro revelador é uma das coisas que podemos agradecer à
adversidade.
“Os presentes fazem escravos, assim como o chicote faz o
cão.” Todos temos em mente a imagem de um trenó puxado por cachorros cruzando o
território nevado. Os animais cumprem sua missão à força, empurrados pela chibata
de quem os conduz. Do mesmo modo, segundo a sabedoria dos esquimós, aceitar um
presente muito caro nos coloca numa posição de debilidade frente ao outro, já
que inconscientemente nos sentiremos obrigados a devolver o favor. Isso é algo
que nós mesmos devemos levar em conta quando oferecemos um presente. Deveríamos
nos perguntar antes: entrego isso de forma generosa e espontânea, ou esperarei
algo em troca com o tempo?
“Se você tem medo, mude de caminho.” Essa inspiração esquimó
parece ir de encontro ao moderno coaching, que aconselha desafiar as crenças
limitadoras e sair da zona de conforto. Mas há outra interpretação: se for
fazer algo com dúvida e desconfiança, melhor não fazer. Um exemplo seria
iniciar uma relação sentimental sob o temor de ser enganado ou de que as coisas
não darão certo por qualquer outro motivo. É preciso domar o medo primeiro para
viver e amar com liberdade.
“O ontem são cinzas, e o amanhã é madeira. Só hoje o fogo
arde com todo o seu esplendor.” Encontramos equivalentes dessa ideia no zen
japonês e em praticamente todas as tradições espirituais. Isto é tão simples
quanto difícil de aplicar, a não ser que sejamos conscientes em cada um dos
nossos atos. A existência é formada por momentos, e quem não sabe desfrutá-los
se condena a viver sempre na melancolia do passado ou no desejo do futuro.
Para mitigar e medir a irritação
E seu livro Pequeño Curso de Magia Cotidiana (sem edição em
português), Anna Solyom descreve um ritual dos esquimós citado pela
historiadora Lucy R. Lippard para os momentos em que a ira se apodera de nós.
“Um costume dos esquimós para aliviar alguém que está aborrecido consiste em
fazer essa pessoa caminhar seguindo uma linha reta através do campo. O ponto em
que o aborrecimento é conquistado é marcado com uma vara, como testemunho da
força e da duração da raiva.” Essa prática tem uma dupla vantagem. O fato de
mover o corpo em momentos de ira nos ajuda sair da armadilha em que nossa mente
nos colocou. Por outro lado, essa forma tão gráfica de medir a raiva permite
que nos afastemos dela e entendamos nossa própria emoção como algo que não nos
pertence.
Francesc Miralles é escritor e jornalista especialista em
psicologia.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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