Ilustração: Raquel Marín/El País
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
27 de março de 2020
A volta do conhecimento
Tínhamos nos acostumado a viver na névoa da opinião; mas
hoje, pela primeira vez desde que temos memória, prevalecem as vozes de pessoas
que sabem e de profissionais qualificados e corajosos
Por Antônio Muñoz Molina *
Pela primeira vez desde que temos memória, as vozes que
prevalecem na vida pública espanhola são as de pessoas que sabem. Pela primeira
vez assistimos à aberta celebração do conhecimento e da experiência, e ao
protagonismo merecido e até então inédito de profissionais de diversas áreas
cuja mistura de máxima qualificação e coragem civil sustenta sempre o mecanismo
complicado de toda a vida social. Nos programas de televisão em que, até
recentemente, reinavam exclusivamente dissertadores especializados em opinar
sobre qualquer coisa a qualquer momento, agora aparecem médicos de família, epidemiologistas,
funcionários públicos que enfrentam diariamente uma doença que perturbou tudo e
que a qualquer momento pode atacá-los. Todas as noites, às oito, nas ruas
vazias, eclodem aplausos como uma tempestade repentina, dirigidos não a
demagogos embusteiros, mas a trabalhadores da saúde, que até ontem cumpriam sua
tarefa acossados por cortes contínuos, pela falta de meios, pelo desdém às
vezes agressivo de usuários caprichosos ou resmungões. Agora, exceto nos
redutos habituais, não ouvimos slogans, nem lemas de campanha criados por
publicitários, nem banalidades cunhadas por essa espécie de gurus ou de
aprendizes de feiticeiro que inventam estratégias de “comunicação” e que aqui
também, que remédio, já são chamados de spin doctors: charlatães, trapaceiros,
vendedores de fumaça.
A realidade nos obrigou a nos colocarmos no terreno até
agora muito negligenciados dos fatos: os fatos que podem e devem ser
verificados e confirmados, para não serem confundidos com delírios ou mentiras;
os fenômenos que podem ser medidos quantitativamente, com o mais alto grau de
precisão possível. Tínhamos nos acostumado a viver na névoa da opinião, da
diatribe sobre as palavras, do descrédito do concreto e do comprovável,
inclusive do aberto desdém pelo conhecimento. O espaço público e compartilhado
do real havia desaparecido em um turbilhão de bolhas privadas, dentro das quais
cada um, com a ajuda de uma tela de celular, elaborava sua própria realidade
sob medida, seu próprio universo cujo protagonista e centro era ele mesmo, ela
mesma.
Estava andando pela rua e notava que quase todo mundo ao meu
redor se virava para viver dentro de seu espaço privado, exatamente igual que
se estivesse na sala de estar de sua casa, em seu quarto, até mesmo em seu
banheiro: o diadema dos capacetes gigantes para não ouvir o mundo exterior e
ser alimentado a cada momento por um fio sonoro ajustado às suas preferências;
o olhar não nas pessoas com que você cruza, mas na tela à qual olha; a voz que
fala no mesmo tom que em um quarto fechado, tão descuidada dos outros que era
habitual assistir involuntariamente a conversas íntimas embaraçosas, brigas,
explosões de lágrimas.
“O senhor tem todo o direito do mundo às suas próprias
opiniões, mas não aos seus próprios fatos”, escreveu o grande senador democrata
e ativista cívico Patrick Moynihan. Disse isso antes de um porta-voz de Donald
Trump cunhar o termo “fatos alternativos”, e de que a penúria financeira dos
meios de comunicação os levasse a se alimentar de opiniões mais do que de
fatos, uma vez que sempre será muito mais caro, mais trabalhoso e até mais
arriscado investigar um fato do que expressar uma opinião. Soma-se a isso uma
difusa hostilidade coletiva, que os meios de comunicação incentivam, em relação
a tudo que pareça demasiado sério, pesado, pouco lúdico. O entrevistador não
esconde sua impaciência diante do convidado que soa lento enquanto se esforça
em uma explicação. Ele o interrompe: “Me dê uma manchete”. Investigar com rigor
e explicar com clareza requer conhecimento e experiência, que é o conhecimento
mais profundo que só pode ser obtido com o tempo e a prática: são as qualidades
necessárias para exercer uma tarefa pública comprometida, desde assistir a um
doente em uma sala de emergência a mantê-la limpa, ou dirigir uma ambulância,
ou montar um hospital de campanha da noite para o dia.
Mas entre nós a experiência havia perdido qualquer valor e
todo o seu prestígio, e o conhecimento provocava receio e até zombaria. Quando
tudo tem de parecer ostensivamente jovem e associado à última novidade
tecnológica, a experiência não serve para nada e até se torna uma desvantagem
para quem a possui; quando alguém acredita que pode viver instalado na bolha de
seu narcisismo particular ou daquele outro narcisismo coletivo que são as
fantasias identitárias, o conhecimento é uma substância maleável que assume a
forma que se deseja dar a ele, assim como sua presença pessoal é moldada pelos
filtros virtuais apropriados. E a política deixa de ser o debate sobre as
formas possíveis e sempre limitadas de melhorar o mundo em benefício da maioria
para se tornar um teatro perpétuo, um espetáculo de realidade virtual, não
submetido ao pragmatismo nem à cordura, uma fantasmagoria que se fortalece
graças à ignorância e que encobre com eficácia a crua ambição pelo poder, o
abuso dos fortes sobre os fracos, a propagação da injustiça, o desperdício, o
roubo do dinheiro público.
Na Espanha, a guerra da direita contra o conhecimento é
imemorial e também é muito moderna: combina obscurantismo arcaico com a
proteção de interesses venais perfeitamente contemporâneos, os mesmos que
impulsionam nos Estados Unidos a guerra aberta do Partido Republicano contra o
conhecimento científico, financiada pelas grandes empresas petrolíferas. A
direita prefere esconder os fatos que prejudicam seus interesses e privilégios.
A esquerda desconfia dos que parecem não se adequar aos seus ideais ou aos
interesses dos aproveitadores que se disfarçam com eles. A esquerda cultural se
filiou há muitos anos a um relativismo pós-moderno que considera qualquer forma
de conhecimento objetivo suspeita de autoritarismo e elitismo. Nem a esquerda
nem a direita têm o menor inconveniente em substituir o conhecimento histórico
por fábulas patrióticas ou lendas retrospectivas de vitimismo e emancipação.
Curiosamente, na Espanha, a esquerda e a direita sempre concordaram
em deixar de lado ou encurralar as pessoas dotadas de conhecimento e
experiência na esfera pública e submetê-las ao controle de pseudoespecialistas
e apaninguados. Professores do ensino fundamental e médio estão sujeitos ao
flagelo de psicopedagogos e comissários políticos há décadas; os médicos e
enfermeiros da saúde pública estão sujeitos ao capricho e à inexperiência de
supostos especialistas em gestão ou em recursos humanos, cujo único talento é
medrar no emaranhado dos cargos políticos.
Foi necessária uma calamidade como a que estamos sofrendo
agora para que descobríssemos bruscamente o valor, a urgência, a importância
suprema do conhecimento sólido e preciso, para nos esforçarmos em separar os
fatos dos boatos e da fantasmagoria e distinguir com nitidez imediata as vozes
das pessoas que sabem de verdade, aquelas que merecem nossa admiração e nossa
gratidão por seu heroísmo de servidores públicos. Agora ficamos com um pouco de
vergonha de termos nos acostumado ou resignado durante tanto tempo ao
descrédito do saber, à celebração da impostura e da ignorância.
* Antonio Muñoz Molina é escritor.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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