George Steiner na porta de sua casa em Cambridge, em 2016.
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
06/02/2020
A entrevista póstuma de George Steiner: “Faltou-me coragem
para criar”
O grande crítico literário, que morreu na segunda-feira,
conversou ao longo dos anos com o ensaísta italiano sob a condição de que as
confissões viessem à luz no dia seguinte à sua morte
Por Nuccio Ordine
“O segredo de uma boa velhice nada mais é do que um pacto
honesto com a solidão”; não pude deixar de pensar nessa maravilhosa reflexão de
Gabriel García Márquez quando soube do desaparecimento de George Steiner.
Morreu na segunda-feira, às 14h, por complicações de uma febre aguda em sua
casa em Barrow Road, em Cambridge. A última vez que falamos foi no sábado
passado, por telefone, e ele me confidenciou com uma voz muito rouca: “Não
aguento mais o cansaço da fraqueza e da doença”.
Assim, Steiner, um dos críticos literários mais agudos e
importantes do século XX, viveu os últimos anos de sua vida longe do foco de
atenção, dos meios de comunicação, dos congressos e conferências, de qualquer
evento público. Tive o privilégio de estar com ele também nesta última fase de
isolamento voluntário.
Depois de mais de vinte anos de encontros em Paris, na
Itália e em outras cidades europeias, os telefonemas mensais e a visita anual a
Cambridge tornaram-se um ritual. Mas o último encontro, marcado para 14 de
junho de 2018, não foi sucedido por nenhum outro: um dia antes George o
cancelou porque não estava bem e não queria se mostrar cansado e desanimado.
Foi em uma dessas reuniões (em 21 de janeiro de 2014, há exatamente seis anos)
que ocorreu a Steiner conceder-me uma entrevista póstuma: reunir algumas de
suas reflexões e não publicá-las até o dia seguinte ao seu desaparecimento. Uma
maneira discreta de romper o silêncio e se despedir dos amigos, alunos e
numerosos leitores.
Voltou a este texto no ano passado, modificando algumas
palavras aqui e ali e me pedindo para reescrever algumas frases. Quem sabe
quantos aspectos desconhecidos de sua vida e seu pensamento virão à luz em
2050, quando for possível estudar as centenas de “cartas autobiográficas” agora
lacradas nos arquivos do Churchill College de Cambridge.
Agora que ele se foi ―seu filho David me deu a notícia―,
além da profunda dor pela perda de um amigo querido e de um verdadeiro mestre,
nem quatro meses depois do desaparecimento de Harold Bloom, noto mais
claramente as consequências desse silêncio forçado e o vazio intransponível que
deixa entre os defensores dos clássicos e da literatura. Penso em seus livros,
em seu conhecimento enciclopédico incentivado por uma curiosidade surpreendente.
E penso, principalmente, em sua paixão pelo ensino, em sua capacidade de
compartilhar o amor pela literatura e pelo conhecimento com os alunos e o
público.
George não se destacou somente na palavra escrita. Também
foi um grande orador: sua eloquência elegante foi capaz de inflamar alunos e
colegas.
Pergunta. Qual é o segredo mais importante que deseja
revelar nesta entrevista póstuma?
Resposta. Posso dizer que durante 36 anos enviei a uma
interlocutora (seu nome deve permanecer em segredo) centenas de cartas que
representam meu “diário”, nas quais contei a parte mais representativa da minha
vida e os eventos que marcaram meu cotidiano. Nessa correspondência falei sobre
os encontros que tive, as viagens, os livros que li e escrevi, as conferências
e também os episódios normais e comuns. É um “diário compartilhado” com minha
destinatária, no qual é possível encontrar inclusive meus sentimentos mais
íntimos e minhas reflexões estéticas e políticas. Será conservado em Cambridge,
em um arquivo do Churchill College, juntamente com outras cartas e documentos
que testemunham as etapas de uma vida talvez demasiado longa. Essas
cartas-diário, em particular, serão lacradas e só poderão ser consultadas
depois de 2050, ou seja, depois da morte de minha esposa e (talvez) de meus
filhos. Em resumo, serão tornadas públicas somente quando muitas pessoas
próximas a mim já não estiverem aqui. Alguém vai lê-las depois de tanto tempo?
Não sei. Mas eu não poderia fazê-lo de outra maneira...
P. Por que uma entrevista póstuma?
R. A ideia sempre me fascinou. Algo que será tornado público
precisamente quando eu não puder mais ler sobre isso nos jornais. Uma mensagem
para aqueles que ficam e uma maneira de me despedir deixando que ouçam minhas
últimas palavras. Uma ocasião para refletir e fazer um balanço. Cheguei a uma
idade em que cada dia mais ou menos normal deve ser considerado um valor
agregado, um presente que a vida te dá.
Nesta fase as lembranças do passado se tornam o único e
verdadeiro futuro interior. É uma viagem para trás baseada na memória, o que
nos permite alimentar algumas esperanças. Não dispomos das palavras exatas para
definir a lembrança que o amanhã encerra em si. Estou em um momento da minha
vida em que o passado, os lugares que frequentei, as amizades que tive, a
impossibilidade de ver as pessoas que amei e que continuo amando e até a
relação com você constituem o horizonte do meu futuro mais do que pode ser o
futuro real.
P. Você se recrimina por algo em particular?
R. Claro. Por mais de uma coisa. Escrevi um pequeno livro,
Errata, no qual falo dos erros que cometi. Não consegui captar alguns fenômenos
essenciais da modernidade. Minha educação clássica, meu temperamento e minha
carreira acadêmica não me permitiram compreender completamente a importância de
certos grandes movimentos modernos. Não entendi, por exemplo, que o cinema,
como nova forma de expressão, poderia revelar talentos criativos e novas visões
melhor do que outras formas mais antigas, como a literatura e o teatro. Não
compreendi o movimento contra a razão, o grande irracionalismo da desconstrução
e, em alguns aspectos, do pós-estruturalismo. Deveria ter percebido que o
movimento feminista, que apoiei em Cambridge com grande convicção ao reconhecer
a importância do papel da mulher, mais tarde assumiria, na luta para ocupar um
lugar dominante em nossa cultura, uma função política e humana extraordinária.
P. No âmbito pessoal, que erros cometeu?
R. Essencialmente, deveria ter tido a coragem de me provar
na literatura “criativa”. Quando jovem, escrevi histórias e também versos. Mas
não quis assumir o risco transcendente de experimentar algo novo nessa área,
que me apaixona. Crítico, leitor, erudito, professor, são profissões que amo
profundamente e que vale a pena exercer bem. Mas é completamente diferente da
grande aventura da “criação”, da poesia, de produzir novas formas. E,
provavelmente, é melhor fracassar na tentativa de criar do que ter algum
sucesso no papel de “parasita”, como gosto de definir o crítico que vive de
costas para a literatura. É claro que os críticos (já enfatizei isso várias
vezes) também têm uma função importante; tentei lançar, às vezes com sucesso,
alguns trabalhos e defendi os autores que acreditava que mereciam meu apoio.
Mas não é a mesma coisa. A distância entre aqueles que criam literatura e
aqueles que a comentam é enorme; uma distância ontológica (para usar uma
palavra pomposa), uma distância do ser. Meus colegas universitários nunca me
perdoaram que eu apoiasse essas teses; muitos barões e certa crítica
estritamente acadêmica não aceitaram que eu zombasse de sua presunção de serem,
às vezes, mais importantes do que os autores dos quais estavam falando...
P. A quem deseja enviar uma mensagem?
R. Penso em alguns alunos, mais brilhantes que eu, que estão
concluindo trabalhos importantes; o sucesso deles é uma grande recompensa para
mim. Penso com profunda gratidão em alguns dos meus colegas que me acompanharam
no caminho acadêmico. E penso, principalmente, em pessoas mais íntimas, como
você, que entenderam o que tentei fazer e graças a elas pude viver uma intensa
aventura intelectual e emocional. Mas, neste momento, sobretudo, tento entender
por que a distância que me separa do irracionalismo moderno e, ouso dizer, da
crescente barbárie dos meios de comunicação, da vulgaridade dominante, é cada
vez maior. Acredito que estamos atravessando um período cada vez mais
difícil...
P. O que mais te fez sofrer?
R. Me fez sofrer o fato de ser consciente de ter publicado
ensaios que teria gostado de escrever melhor. É claro que há páginas do meu
trabalho que defendi e defendo com convicção, e também com amargura. Mas sei
que provavelmente não era isso o que teria gostado de escrever. E muitas vezes
penso na injustiça do grande talento: ninguém entende como surgem esses dons
supremos e como são distribuídos. Penso em um garoto de cinco anos e meio que
desenha um aqueduto romano perto de Berna e então, de repente, representa um
pilar com sapatos; desde então, graças a Paul Klee, esse é o nome dele, os
aquedutos caminham por todo o mundo. Ninguém pode explicar as sinapses
neurológicas que podem desencadear em um garoto essa “paixão” pela metamorfose,
essa brilhante intuição que muda a realidade. Pensei que era uma injustiça que
pudéssemos tentar, tentar novamente, nos esforçarmos de novo, só para podermos
permanecer na esteira dos adultos, mas sem alcançá-los, porque são diferentes
de nós.
P. E o que te fez mais feliz?
R. A felicidade de ter ensinado e vivido em muitos idiomas.
A felicidade que tentei cultivar todos os dias, até o fim, tirando da minha
biblioteca um poema para traduzi-lo nos meus quatro idiomas (francês, inglês,
alemão e italiano). E, embora não tenha traduzido bem, tenho a impressão de ter
deixado entrar um raio de sol no meu cotidiano.
P. Que desejos não pôde cumprir?
R. Muitíssimos: viagens que não ousei fazer, livros que
queria escrever e que não escrevi, principalmente encontros cruciais que evitei
por falta de coragem, disponibilidade ou energia. Poderia ter conhecido, por
exemplo, Martin Heidegger, mas não me atrevi. E acredito que tinha razão.
Sempre respeitei um princípio: não há necessidade de importunar os adultos,
eles têm outras coisas para fazer. Além disso, nunca suportei aqueles que se
consideram importantes porque colecionam encontros com grandes nomes. As
pessoas excelentes têm o direito de escolher com quais interlocutores querem
“perder” seu tempo. Então acontece que um dia, ao abrir livros de memória, se
leem frases como: “Me importunou o senhor X, que insistiu em se reunir comigo,
mas não tinha nada interessante a dizer”. Sempre tive medo de cair no erro
grosseiro. Penso em Jean-Paul Sartre, por exemplo, especialista em revelar
circunstâncias ligadas a “chatos” famosos. E tive dificuldade em renunciar, nos
últimos tempos, à companhia de um cachorro. Depois da morte de Muz, percebi
que, na minha idade, era muito arriscado ter outro. Adoro esses animais, mas no
limiar dos 90 anos parece terrível oferecer-lhe uma casa para deixá-lo sozinho.
P. Qual é a vitória mais bela?
R. Insistir na ideia de que a Europa continua sendo uma
necessidade importantíssima e que, apesar das ameaças e dos muros que se
constroem, não devemos abandonar o sonho europeu. Sou antissionista (postura
que me custou muito, a ponto de não poder imaginar a possibilidade de viver em
Israel) e detesto o nacionalismo militante. Mas agora que minha vida está
chegando ao fim, há momentos em que penso: talvez me equivoquei? Não teria sido
melhor lutar contra o chauvinismo e o militarismo vivendo em Jerusalém? Eu
tinha o direito de criticar, confortavelmente sentado no sofá da minha bela
casa de Cambridge? Fui arrogante quando, do estrangeiro, tentei explicar às
pessoas em perigo de morte como deveriam ter se comportado?
P. Você se lembra de ter chorado em sua vida?
R. Claro. Nos últimos tempos, muitas vezes me lembro de
circunstâncias particulares. Penso, por exemplo, em grandes experiências
humanas que terminaram sem que eu tivesse previsto o final. O desaparecimento
repentino de algumas pessoas que você nunca mais verá. Ou lugares que você não
visitou e que já não poderá visitar. E também penso em mais coisas, simples,
talvez banais: peixe e alimentos que você já não poderá experimentar. E, às
vezes, encontrar na esquina de uma rua ou em um jardim a sombra de uma pessoa
que você ama e de que precisa enormemente, mas que sabe que já nunca poderá
alcançar.
P. Qual a importância que a amizade teve em sua vida?
R. Uma importância enorme. Ninguém sabe melhor que você. Eu
teria vivido muito mal minhas últimas décadas sem você e sem outros dois ou
três amigos com quem troquei uma correspondência abundante, interlocutores
notáveis com os quais compartilhei uma profunda intimidade afetiva. Talvez a
amizade seja mais valiosa que o amor. Defendo esta tese porque a amizade não
tem nada do egoísmo do desejo carnal. A amizade, a autêntica amizade, se baseia
em um princípio que Montaigne, em uma tentativa de explicar sua relação com
Etienne de la Boétie, condensou em uma frase belíssima: “Porque era ele; porque
era eu”.
P. E o amor?
R. O amor teve muitíssima importância, talvez demasiada. Em
primeiro lugar, a felicidade que meu casamento me deu e que não posso explicar
com palavras, racionalmente. E depois um ou dois encontros que foram decisivos
na minha vida. Acredito que, potencialmente, as mulheres têm uma sensibilidade
superior à dos homens. Tive o enorme privilégio de ter relações amorosas em
diferentes línguas (escrevi bastante sobre esse assunto). O donjuanismo
poliglota foi uma enorme recompensa para mim, uma oportunidade de viver
múltiplas vidas. E é curioso que nem a psicologia nem a linguística nunca
tenham se ocupado desse fenômeno apaixonante. Por isso, em Depois de Babel
cunhei uma definição original da tradução simultânea como um bom orgasmo.
Sempre considerei como assunto capital o fenômeno das palavras e dos silêncios
em relação com o erotismo.
P. Pensa alguma vez na morte?
R. Continuamente. Mas não só agora; também quando era jovem.
Cresci à sombra da ameaça hitleriana e lembro perfeitamente que os únicos
sobreviventes da minha turma na escola foram um colega e eu. Meu pai e a vida
me prepararam para enfrentar a perda e o perigo da morte. Agora penso que o encontro
com a morte talvez seja interessante; talvez se revele como uma maneira de
entender melhor muitas coisas.
P. Acredita que existe algo depois da morte?
R. Não. Estou convencido de que não haverá nada. Mas o
momento da passagem pode ser muito interessante. Acho infantil a reação
daqueles que, depois de ter pensado sempre no nada, na fase final da vida mudam
e imaginam um “mundo” ultraterreno. Penso que não ter medo é uma questão de
dignidade; não se deve perder o respeito pela razão, é preciso chamar as coisas
claramente pelo nome. É verdade que se pode mudar a maneira de pensar. Tive a
felicidade de viver sempre em contato com grandes cientistas e sei que todos os
dias se aprendem coisas novas e se corrigem outras. Na ciência, isso é normal.
Agora, acreditar em uma vida além é algo muito diferente.
P. Nesta entrevista póstuma você gostaria de pedir desculpas
a alguém com quem brigou?
R. Sim, gostaria de me desculpar com uma pessoa cujo nome
não posso dizer. Acredito que ele também preferiria permanecer no anonimato.
Trata-se de um homem eminente, durante muito tempo amigo íntimo, com quem
discuti por causa de um assunto estúpido. Uma frase mal escrita em uma carta
fez explodir pelos ares nossa relação de anos. Aprendi muito com essa
experiência; como às vezes um instante insignificante pode se transformar em um
fato decisivo na vida. É um risco que corremos frequentemente. Um gesto sem
importância, uma simples palavra, em um único segundo, pode causar verdadeiras
tragédias. E agora, depois de tantos anos, gostaria de dizer ao meu amigo:
“Venha, vamos comer juntos e rir do que aconteceu”. Mas, com muita dor, percebo
que já não há mais tempo. É demasiado tarde.
P. No entanto, você é famoso por sua irascibilidade. Sempre
foi um ponto fraco do seu caráter?
R. Sim, é verdade, mas não só na idade adulta. Lembro-me de
que quando era criança me alterava por coisas pequenas, às vezes sem uma
verdadeira razão. Essa maneira de me comportar criou muitas inimizades. Depois,
com os anos, tive de aprender a me moderar. Mas também paguei um preço pela
minha ironia, frequentemente muito mordaz e nem sempre bem recebida. E talvez a
tristeza, resultado da consciência da minha mediocridade, tenha incomodado não
poucas vezes meus interlocutores. Infelizmente, ao longo de tantos anos,
colecionei muitas hostilidades e rompi muitas amizades. É triste reconhecer
isso, mas é assim.
P. Você recebeu algum conselho que mudou sua vida?
R. É claro. Especialmente aqueles que minha mãe me deu com
todo o seu amor. Devo a ela ter me incentivado a viver de maneira frutífera com
minha deficiência. Quando era criança, para me fazer reagir em momentos de
desespero, ela me dizia que a “dificuldade” era um “dom” divino. Além de me
livrar do serviço militar, meu defeito me deu a oportunidade de aprender a
melhorar, de tentar entender que, sem esforço, não se consegue nada na vida.
Lembrei-me disso em diferentes circunstâncias. Uma das conquistas mais bonitas
da minha existência foi quando consegui amarrar meus sapatos pela primeira vez
com a mão paralisada.
© Corriere della sera
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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