A ativista sueca Greta Thunberg
Texto publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 18 de fevereiro de 2020
A realidade e os mitos da síndrome de Asperger, o transtorno
mental de Greta
A ciência diz que pessoas com essa condição podem ser
“excepcionalmente criativas” para problemas, mas especialistas ressalvam que
não é a regra
Por Nacho Sánchez
Sheldon Cooper, um dos protagonistas da série The Big Bang
Theory, é uma pessoa de rotinas: vai ao banheiro à mesma hora a cada dia,
senta-se sempre no mesmo lugar do sofá —onde a temperatura é perfeita tanto no
verão como no inverno, e de onde pode ver a televisão sem reflexos e manter uma
conversa sem distrações—, e tem uma dinâmica concreta para cada noite. É uma
eminência em Física Teórica, possui uma inteligência única e não sossega
enquanto não encontra a solução para um novo problema. Por outro lado, não
entende o sarcasmo e tem sérios problemas em se relacionar com os outros.
Muitos são os que especularam que o personagem teria Asperger, uma síndrome a
cujos portadores se atribuem capacidades excepcionais.
Incluído dentro dos transtornos do espectro autista —que
afetam cerca de um em cada cem meninos e meninas, segundo a organização Autism
Europe e a Estratégia Espanhola em Transtornos do Espectro do Autismo—, o
Asperger afeta principalmente dois aspectos. Primeiro, a comunicação social: de
como nos relacionamos com outras pessoas até quais fórmulas usamos para isso (a
leitura nas entrelinhas ou o entendimento das sutilezas sociais). O segundo
está relacionado à flexibilidade do pensamento e do comportamento, e se
manifesta em patrões repetitivos, rigidez na conduta, dificuldade para encarar
mudanças e inclusive obsessão com questões muito específicas. “Não é uma doença
nem uma deficiência intelectual. Pelo contrário, o funcionamento cognitivo está
na média ou acima dela”, explica Ruth Vidriales, diretora-técnica da
Confederação Autismo Espanha, salientando que, por tudo isso, essas pessoas
frequentemente passam despercebidas para a sociedade. Tampouco tem traços
físicos distintivos. “Podem ser vistas como pessoas diferentes, mas não se sabe
explicar por quê. E chegam a ser julgados como egoístas ou pouco empáticos”,
acrescenta a especialista.
Era o que contava em primeira pessoa Greta Thunberg, a jovem
líder do movimento contra a mudança climática, em sua conta do Twitter: “Tenho
Asperger e isso significa que às vezes sou um pouco diferente da norma”. O
diagnóstico, prosseguia, a havia limitado antes de começar sua greve escolar para
sensibilizar sobre a importância de cuidar do planeta. “Não tinha energia, não
tinha amigos e não falava com ninguém. Só ficava em casa sentada com um
transtorno alimentar. Tudo isso acabou agora, que encontrei um significado em
um mundo que às vezes parece superficial e sem sentido para tanta gente”,
acrescentava, ressaltando que, dadas as circunstâncias, “ser diferente é um
superpoder”. Mas é verdade que as pessoas com Asperger são extraordinárias?
Do domínio dos idiomas à acumulação de dados
“Seus cérebros funcionam de forma diferente, e isso faz que,
em alguns casos, ocorram modos diferentes de entender a realidade”, conta
Vidriales. Isso foi demonstrado em 2015 por quatro pesquisadores britânicos num
estudo que procurava relacionar autismo e pensamento divergente: suas
conclusões refletem como pessoas com traços autistas se destacam por apresentar
ideias “excepcionalmente criativas”. Esse ponto de vista original pode dar a
sensação de que são pessoas que oferecem soluções que apenas os gênios são capazes
de encontrar. E, embora às vezes aconteça, não é a norma. “A verdade é que a
criatividade é uma das grandes limitações que costumam aparecer no autismo:
eles têm muita dificuldade para imaginar”, destaca Ricardo Canal, professor da
Universidade de Salamanca (Espanha) e diretor de seu Centro de Atenção Integral
ao Autismo. Mas ele ressalva que algumas pessoas com Asperger podem desenvolver
atividades imaginativas no contexto de seus interesses específicos.
Para explicar isso mais facilmente, o professor cita
exemplos. O mais claro é relativo ao conceito de suspensão da incredulidade,
cunhado pelo filósofo inglês Samuel Taylor no século XIX e que se baseia em
como aceitamos, em nosso papel de espectadores, as premissas da ficção. Ou
seja, por mais que saibamos que não existem dragões, vemos Game of Thrones com
total normalidade. “Mas eles são realistas, partem dos fatos, por isso a ficção
não os atrai”, comenta Canal. Quando crianças, tampouco se sentem cômodos em
brincadeiras que incluam simbolismos ou imaginação. Sempre preferirão uma
miniatura de montar a um jogo de representação, com um fogãozinho de onde saem
legumes assados que são servidos a clientes de faz-de-conta, interpretados por
pais e amigos. “Aí se sentem ausentes, isso os afeta muito”, salienta o
especialista, que destaca como as pessoas com Asperger são literais, não
enganam e têm muita dificuldade em entender a falsidade que serve de base a
muitas relações pessoais.
Todas essas características – dificuldade em representar
mentalmente aspectos de caráter simbólicos, literalidade, rigidez, apego às
rotinas, obsessão com determinados temas, complicações para ter uma visão
global das coisas e dificuldade com a mudança – geram um perfil cognitivo
especial que os torna muito bons em alguns aspectos. Podem acumular quantidades
enormes de dados, falar vários idiomas, resolver problemas ou conseguir uma
incrível concentração nos temas que os atraem. Então, há quem se torne um estupendo
professor de matemática, capaz de transmitir a seus alunos a paixão pela
matéria, e também aqueles a quem tratamos como gênios por serem especialmente
bons em uma área concreta, como Thomas Edison, Albert Einstein, Alan Turing,
Isaac Newton e outros grandes nomes da história que relacionamos com o
Asperger. Mas os mitos são só isso, mitos. “Há personagens históricos que
poderiam estar dentro do espectro, mas são apenas especulações”, esclarece José
Antonio Peral, diretor-técnico da Confederação Asperger Espanha (CONFAE). E,
provavelmente, nunca saberemos. “Não se podem fazer diagnósticos em pessoas que
já não estão mais aqui”, acrescenta.
Habilidades diferentes que devem ser cultivadas desde a
infância
Mas quem está realmente diagnosticado, como Greta, pode
servir de exemplo para mostrar como as pessoas com Asperger têm a capacidade de
se destacar em algum aspecto e encontrar nele o seu caminho. A jovem ativista,
por exemplo, achou na crise climática um âmbito ao qual dedicar toda a sua
capacidade intelectual e expressá-las com recursos sociais que são suficientes.
Seu trabalho para visibilizar o transtorno do espectro autista é muito valioso.
“Ajuda a sensibilizar, a percebermos que há coisas que não entendemos e das
quais convém não antecipar um julgamento prévio”, destaca Peral, insistindo em
que a condição do Asperger deve ser homologada por um especialista. E adverte
que a suposta genialidade nem sempre é positiva: assim como são deslumbrados
por um tema específico, podem ter problemas de motivação ou concentração em
outras áreas do conhecimento ou uma maior dificuldade em suas relações com
outras pessoas.
“É importante observar que na sociedade deve haver
diversidade e também espaço para todo tipo de talento”, acrescenta Ruth
Vidriales, destacando a importância de uma detecção precoce para apoiar essas
pessoas em sua aprendizagem no colégio – onde são vítimas propícias para o
assédio escolar – e, mais tarde, na busca por um emprego que, às vezes, lhes
custa manter. “Têm as capacidades para isso, mas ainda há muitos preconceitos,
por isso é importante adotar medidas para que as barreiras sejam superadas e a
igualdade seja efetiva”, acrescenta a especialista da Confederação Autismo
Espanha, que agrupa e representa quase uma centena de entidades que trabalham
com indivíduos com este tipo de transtorno. “As pessoas com autismo podem ter
muitas capacidades, talentos muito variados e habilidades de grande utilidade
para a sociedade. É preciso cultivá-los desde a infância e fazer que adquiram
valor para a vida da pessoa”, conclui Ricardo Canal.
Texto reproduzido do site: brasil.elpais.com
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