Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
6 de janeiro de 2020
A nova moda do Vale do Silício de abandonar o álcool, o sexo
e as redes sociais para “reiniciar” o cérebro
Tentar melhorar o funcionamento do órgão mestre reduzindo
prazeres potencialmente ‘viciantes’. Adianta alguma coisa?
Por Kristin Suleng
O Vale do Silício é conhecido por seu papel como um polo
mundial de desenvolvimento de tecnologia e pelos milhões de dólares gerados por
seus gigantes digitais. Mas o paraíso geek por excelência também é o lugar onde
emergem as tendências de saúde mais extravagantes, geralmente ligadas ao
aumento da produtividade pessoal. Os executivos de São Francisco puseram na
moda a dieta de jejum intermitente, a de beber água pura da chuva e fontes sem
tratar, o consumo de microdoses de LSD para obter um melhor desempenho no
trabalho... e agora chega a de nos afastarmos de tudo o que produz prazer –da
comida, ao álcool e o sexo até as redes sociais e as novas tecnologias. A
prática é conhecida como jejum de dopamina, termo cunhado pelo psicólogo e
investidor em tecnologia Cameron Sepah, ao qual se atribuem os benefícios de
“reiniciar” e melhorar a eficiência do cérebro. Ou seja, como uma maneira de
nos livrarmos dos “vícios” que nos impedem de alcançar nossas mentes e
potencializar a produtividade. Vale a pena tentar?
Contra o hormônio do desejo e da motivação
A dopamina é um neurotransmissor básico do sistema nervoso
central e não é prejudicial, lembra a neurocientista Raquel Marín, professora
de Fisiologia da Universidade de La Laguna, em Tenerife. O cérebro precisa dela
para várias tarefas relacionadas à memória, à motivação, à recompensa, ao
aprendizado, à atenção e aos estados de alerta. “Também está envolvido nas
funções motoras, é estimulada quando nos apaixonamos e atua até mesmo na
produção de prolactina, o hormônio da secreção de leite na mama”, diz Marín.
O fato de a dopamina ser liberada no cérebro quando sentimos
algum tipo de satisfação ou bem-estar em atividades como ler um livro, sair com
amigos, viajar ou praticar sexo fez com que durante muito tempo se acreditasse
que essa molécula era a responsável pelo sentimento do prazer. Agora é
conhecida como o neurotransmissor do desejo e da motivação. “Ao liberar
dopamina, sentimos um enorme desejo de buscar prazer; quando o encontramos, as
endorfinas ou encefalinas nos fazem senti-lo. O desejo nos faz procurar prazer,
e o prazer também aumenta a vontade de procurar desejo”, explica Ignacio
Morgado, professor de Psicobiologia no Instituto de Neurociências da
Universidade Autônoma de Barcelona.
A dopamina também está ligada à surpresa; portanto, quanto
mais inesperado for um evento, mais dopamina é liberada. “É como quando alguém
está sentado tranquilamente em um café e de repente aparece um amigo que não
via há muitos anos”, diz Morgado, autor do livro Deseo y Placer, la Ciencia de
las Motivaciones (Editora Ariel, sem tradução). Então o que há de errado? Por
que alguém iria querer bloquear sua produção?
Os vínculos com a dependência química e a depressão
A graça da proposta é que o jejum de dopamina se baseia na
renúncia a comportamentos pouco saudáveis que envolvem abusar do prazer. Pode
ser entendido como um tipo de estratégia para escapar de situações que distraem
a atenção de outras mais produtivas, ou como uma "terapia de
desintoxicação" daquilo que nos separa do que é realmente importante. No
entanto, "o organismo a regula para que não seja escassa nem excessiva. É
difícil conceber uma possível regulação para menos, por controlar
voluntariamente aspectos relacionados com a produção de dopamina", explica
Marín.
Para Morgado, existe uma maneira, embora não seja atraente:
“Se você se tranca em casa, não recebe telefonemas e não assiste à TV, impede
que seu cérebro libere dopamina de forma natural. Não sabemos em que
circunstâncias o jejum deve ser aplicado nem como deveria ser, mas se volta
para a vida cotidiana e nos chama a todos de abusadores da vida, como uma
homilia de domingo”, enfatiza. A neurocientista é a favor da ideia do jejum,
mas como meio de pesquisa em substâncias inibidoras para casos de dependência,
quando a sobrecarga dos sistemas de recompensa deteriora o cérebro. “Não é um
tratamento terapêutico para qualquer pessoa, reduzi-la só é bom em casos de
excesso exacerbado de algo prejudicial para o organismo e que o impede de levar
uma vida normal”, ressalta o professor.
Ocorre que a dopamina está ligada às dependências químicas,
quando o cérebro pede a recompensa com insistência. Nesses casos, prega uma
peça. “Produz uma sensação permanente de inquietação e desassossego na ausência
do prêmio, assim como de atender a essa necessidade para subsistir, mesmo que
estejamos conscientes de que é uma prática que nos prejudica”, diz Marín, que
dá como exemplo o café matinal. “Nenhum estudo científico mostra que é
essencial para sobreviver, no entanto, muitas pessoas sentem que não podem
funcionar sem ele”, diz a neurocientista.
O diretor da seção de Neurociência Cognitiva do Centro de
Evolução e Comportamento Humano da Universidade Complutense de Madri, Manuel
Martín-Loeches, observa que “não há como restaurar algo que está em constante
mudança desde antes do nascimento, como é o caso do cérebro. Se restringirmos a
dopamina com o jejum, ocorrerá algo semelhante aos efeitos a longo prazo de um
vício: falta de satisfação, que costuma levar à depressão”.
Paradoxalmente, só fato de se considerar essa opção também
aumenta o nível dessa molécula. “Reduzir o horário de conexão com as redes
sociais, eliminar o consumo de drogas ou mudar a dieta com diretrizes mais
saudáveis é altamente recomendado para uma melhor saúde do cérebro, maior
concentração, um melhor senso de recompensa contra limites mais baixos de
estímulos e um melhor senso de autoestima. Mas, por si só, a decisão de adotar
esse pseudo jejum de dopaimna também estimula a produção de dopamina”, diz
Marín, autor do livro Pon en Forma tu Cerebro (Editora Rock, sem tradução).
Mudar a cerveja da tarde por meia hora de academia
Os especialistas concordam em que, do ponto de vista
neurocientífico, o jejum de dopamina é algo inimaginável. “São muitos os
parâmetros fisiológicos e psíquicos que regulam sua produção”, afirma a
neurocientista de modo taxativo. No entanto, o fato de o nível do neurotransmissor
não poder ser controlado em muitas funções não impede a realização de ações
conscientes para controlar as práticas que estimulam sua síntese. “Se pudermos
reduzir a produção de dopamina nas áreas específicas do cérebro envolvidas nos
vícios, é provável que nos sintamos mais capazes de controlar hábitos
prejudiciais. Em algumas pesquisas em animais, já foi possível reduzir o desejo
por doces”, lembra Marin.
O cientista propõe criar ambientes com menos estímulos à
dopamina, como mudar a rotina diária da cerveja no fim do dia por meia hora de
academia ou desligar os aparelhos eletrônicos durante o almoço. “As mudanças de
contexto que envolvem a eliminação do uso de narcóticos beneficiam o cérebro a
médio prazo, pela mesma razão que nos sentimos fisicamente melhor quando
paramos de comer doces todos os dias”, ele insiste.
Mas a ideia de ter um desempenho melhor no trabalho graças
ao jejum de dopamina é questionada pela relação positiva que existe entre a
molécula, os estados de ânimo positivos e a criatividade. “Eles podem não ser
adequados para determinadas tarefas, como a contabilidade, pois se cometem mais
erros. Mas para a maioria das funções profissionais e pessoais, a dopamina
seria muito recomendável”, diz Martin-Loeches. E em contextos mais românticos também,
diz Marín: “Nem tudo é prejudicial na superprodução de dopamina. Também
precisamos dela para nos apaixonarmos. Sem essa molécula maravilhosa, é muito
provável que nunca sucumbiríamos ao amor”, conclui. E quem quer renunciar a
esses deleites?
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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