Publicado originalmente no site do jornal El País Brasil, em 16 ABR 2018
Wim Wenders: “Não se pode fazer sermão na tela”
Gregorio Belinchón
Pensou em ser sacerdote, virou pintor, mas acabou se
tornando o guru do cinema europeu. Títulos como ‘Asas do desejo’ e ‘Paris,
Texas’, na ficção, e ‘Buena Vista Social Club’ e ‘O sal da terra’ (sobre o
fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado), em documentários, forjaram uma
carreira que agora se prolonga em ‘Submersão’: uma história de amor com o
terrorismo jihadista como pano de fundo. O presidente da Academia de Cinema
Europeu prepara além disso um filme sobre o papa Francisco.
Wim Wenders (Düsseldorf, 1945) gosta de recordar que sua
personalidade nasceu do choque entre dois indivíduos quase antagônicos: de um
lado, o rapaz que estudou medicina e filosofia e se propôs seriamente a ordenar-se
padre; de outro, o jovem de 20 e poucos anos que em 1966 esteve em Paris por um
ano em um curso e aproveitou para assistir filmes na Cinemateca Francesa todos
os dias. “Algo de tudo aquilo ficou em mim, obviamente. Mas quanto?”, ri
tranquilo.
O atual presidente da Academia de Cinema Europeu é um dos
grandes do gênero autoral com títulos como Paris, Texas; Asas do desejo; O medo
do goleiro diante do pênalti e Estrela solitária. Wenders soube transitar da ficção
ao documentário com exemplos como Um filme para Nick, Buena Vista Social Club,
Pina e O sal da terra. Mas em 12 de abril estreará no Brasil uma nova ficção,
Submersão, que recebeu críticas desiguais em Cannes. Narra uma história de amor
que acontece durante uma semana entre uma biomatemática especializada no fundo
do mar (Alicia Vikander) e um engenheiro hidráulico (James McAvoy). Esse
encontro é narrado em sucessivos flashbacks por seus protagonistas: uma,
embarcada em uma perigosa viagem científica; o outro, sequestrado na Somália
por terroristas jihadistas que descobriram que é um espião. E acima de tudo
paira o ritmo narrativo de Wenders, que não é o predominante no cinema atual.
Submersão está ligado a trabalhos anteriores seus?
Talvez a Medo e obsessão... e, quem sabe, a O amigo
americano, porque sua base é um romance. Na verdade, gosto de pisar em
territórios desconhecidos e por isso embarquei em Submersão. Ao mesmo tempo em
que me levava a um território inexplorado, sentia que falava diretamente ao meu
coração.
Com Medo e obsessão o sr. compartilha sua necessidade de
dizer algo sobre a realidade social.
Naquele caso, sobre os Estados Unidos em guerra. Neste,
sobre o terrorismo. Certo, e pode ser que Medo e obsessão contenha mais fúria
do que Submersão porque naquele tempo estava muito irritado com a política
norte-americana. Em Submersão nos concentramos em um problema que vai além do
nacional, o terrorismo, e o fazemos a partir da ficção, não do documentário.
Porque assim se tem mais liberdade para abordar o tema. É possível usar atores,
música, enfim, contar uma história, você não se restringe à realidade. Como um
pintor ou um arquiteto, você tem ferramentas que lhe permitem um voo... que às
vezes não se alcança com o documentário.
Pode ser que Medo e obsessão, com sua reflexão sobre a falta
de cultura nos EUA, o patriotismo exacerbado, a desilusão que viver em um país
como esse pode representar, seja mais atual hoje do que no momento da estreia.
“O Novo Cinema Alemão não era uma escola estética, não
defendíamos um estilo em comum, e isso nos ajudou a ser felizes porque não
competíamos entre nós”
Pode ser, porque chegou antes da hora. Estreamos muito perto
do 11 de setembro de 2011 e foi muito mal interpretado. Coisas da vida [risos].
E aqui o sr. apostou em uma história de amor para guiar a
narrativa, mais do que no mero drama social.
É que não sei como poderia ter enfrentado tanta escuridão no
filme sem a história de amor. As sombras que rodeiam James em sua viagem para a
jihad na África são tão densas que era necessária a luz do romance. Acredito
que Martin Luther King tinha razão. “A escuridão não pode expulsar a escuridão;
só a luz consegue fazer isso”, dizia, e por isso fomos por aí. Aprendi que não
se pode fazer sermões na tela, que o filme deve se revelar ao espectador por si
mesmo. E mais ainda quanto mais complexo é o que se conta. Creio que falta
reflexão ao cinema atual, e sem dúvida em casos como o que move Submersão, que
mistura investigação sobre o início da vida na Terra e a morte que acompanha o
Estado Islâmico, precisamos de um pouco de filosofia.
A Europa não sabe como encarar o problema do EI?
A cultura ocidental falhou há anos e o exemplo é a recepção
que Medo e obsessão teve, com sua estreia em um momento crucial, quando se
declarou uma guerra ao terrorismo que só conseguiu criar um novo terrorismo. O
Ocidente provocou o nascimento de terroristas onde não existiam. Começamos com
o passo errado e seguimos bombardeando por bombardear, como se fosse a solução.
Vivemos o triunfo da vaidade, da crença de que nosso pensamento é o único
possível. Vale para todas as áreas.
O sr. não sente que a política cultural europeia também está
desaparecendo?
Estamos lutando exaustivamente por ela. É um problema de
educação. Se continuamos sem ensinar cinema e linguagem audiovisual, nos
perderemos como cultura e como pessoas, porque ninguém nos educa para ver
imagens.
Outros artistas mudam de pensamento com os anos, mas o sr.
não parece ter mudado em seu íntimo. Pelo menos não se percebe vendo seu
cinema.
“O silêncio se tornou um dos grandes privilégios dos
cineastas atuais. É preciso lutar por ele. A tecnologia vai em sentido
contrário.”
Não acredito que uma pessoa mude ao se tornar cineasta, nem
conforme uma carreira se desenvolve. Eu continuo com minha natureza otimista,
por exemplo. Inclusive quando filmo temas muito controversos ou escabrosos, me
nego a ser engolido pela escuridão. Não é saudável viver de outra forma. Eu me
dedico a fazer filmes o mais abertos possível e a aprender no processo de sua
realização. Neste caso, sobre a vida marinha e a jihad. Dirigir é uma maneira
incrível de aprender e de compartilhar o que se aprende.
O sr. pensa muito no que teria acontecido se se tornasse um
pintor em Paris, como desejava quando jovem?
Teria levado uma vida muito diferente, sem dúvida. Tenho
muitos amigos pintores e costumo ir a seus estúdios. De um lado, me causa certa
dor, porque é a vida que escolhi não viver e às vezes me arrependo. De outro,
sou feliz com o que faço e sei que os filmes bebem da pintura. Em Submersão me
permiti uma pequena homenagem a meu pintor favorito, Caspar David Friedrich.
Mas foi uma decisão consciente ou uma mudança gradual que o
levou da pintura ao cinema?
Aconteceu aos poucos. No início para mim o cinema foi uma
forma diferente de me aproximar da arte. Quando comecei, estudava-se sobretudo
os movimentos de câmera. Na época muitos usavam a câmera como um pincel. Eu
mesmo comecei com um cinema não narrativo, mais próximo da pintura, e
lentamente descobri a arte de contar histórias, o que gradualmente me afastou
da pintura. Foi um processo que durou cinco anos e até meu quarto filme ainda
pensava em voltar à pintura.
Conforme vamos evoluindo, fazemos isso dentro de uma
tradição. Werner Herzog fez isso apegado a Murnau e a um cinema romântico.
Fassbinder vinha de Douglas Sirk, do melodrama. E eu encontrei minha tradição
no clássico americano, em John Ford, Howard Hawks, Samuel Fuller... E tive a
sorte de conhecer alguns de meus heróis. Mas todos tivemos claro desde o início
que isso não era uma limitação, mas um ponto de apoio a partir do qual
encontrar nossa linguagem. E a beleza do Novo Cinema Alemão é que não éramos
uma escola estética, na verdade não defendíamos nenhum estilo em comum, e isso
nos ajudou a ser felizes, porque não competíamos entre nós. Compartilhávamos
distribuidoras, inclusive produtoras... Percebemos que entendíamos o cinema
como ato de solidariedade e, portanto, não havia interferências, só ajuda.
Ninguém ficava com medo de mostrar seu filme para os outros e ouvir os
comentários. Hoje prevalece a competição e é improvável que ocorra um grupo
assim com gente jovem. Só podíamos existir porque existiam os outros.
O sr. desfrutou de uma proveitosa e frutífera colaboração
naqueles anos com o escritor Peter Handke. O que se lembra dessa fase?
É meu amigo mais antigo. Nos conhecemos há mais de meio
século. Mostrei a ele meu primeiro curta e ele me ofereceu um livro dele, que
na época era um best-seller, para que adaptasse ao cinema. Simples assim.
Começamos a colaborar [Wenders recita os numerosos projetos em comum], produzi
filmes que ele dirigiu. Enfim, é meu irmão.
E depois de muito tempo sem filmes em comum, reuniram-se há
dois anos em Os belos dias de Aranjuez.
Sim. Peter é dois anos e meio mais velho que eu e sempre me
ensinou coisas. Uma das primeiras foi que se pode fazer o que se quiser
confiando em si mesmo e sendo radical. E Peter era muito no início. Meus
primeiros filmes também eram. E, sinceramente, não sei até onde teria chegado
sem sua ajuda nem seus roteiros.
Era um bom momento para ser jovem e cineasta?
Em minha opinião, o melhor. Porque eu trabalhei com pessoas
que tinham começado na era do cinema mudo, que tinham começado nos anos 20 e
agora me dedico a fazer documentários em 3D. Enfim, tive uma grande sorte de
ver essas mudanças, de usá-las. Nos anos setenta e oitenta a juventude mudou o
cinema, certo. Mas também tínhamos acesso fácil aos clássicos. No ano em que
estudei em Paris, vi 2.000 filmes, e apreciei a herança que podia me
impulsionar para o futuro. Hoje sem dúvida é mais complicado, não os invejo.
O sr. sempre honrou outros artistas: penso em filmes como
Pina, sobre a coreógrafa Pina Bausch, ou Tokyo-Ga, sobre Ozu. Conseguiu que
grandes diretores aparecessem em seus filmes como atores.
Na verdade a sorte não foi fazer cinema com eles ou sobre eles,
mas conhecê-los. Recebi grandes presentes de outros artistas como cineastas,
escritores, arquitetos...
Músicos.
Realmente, músicos mais do que outros. De Pina aprendi mais
sobre a beleza do que todo o cinema que vi junto. O cinema é o resumo de todas
as artes... Compartilhar uma paixão é um excelente motivo para fazer um filme.
Suponho que seja doloroso ver esses homenageados falecerem.
Não posso continuar sem perguntar sobre Harry Dean Stanton e Sam Shepard, ator
e coração de Paris, Texas, ou o músico Ibrahim Ferrer, cuja morte também foi um
duro golpe para o sr.
Fui testemunha da morte de Nicholas Ray. Sofri com o
falecimento de Ibrahim e Harry Dean, e era muito amigo de Lou Reed. Estou mais
velho, você perde amigos... Vivi dias maravilhosos na filmagem de Buena Vista
Social Club, com aqueles músicos setentões... Compay passava dos oitenta. Pouco
a pouco você descobre que nunca estarão com você para sempre. Três anos depois
da filmagem do documentário voltei a rodar um comercial de rum, e ao entrar em
meu quarto havia um ramalhete enorme de rosas. Desci à recepção porque pensei
que tinham se enganado de quarto. Me disseram que não, que o buquê era para
mim, apesar de achar que ninguém soubesse que estava em Havana, e descobri um
cartão entre as flores. Era de Compay Segundo, que disse ter passado comigo o
melhor momento de sua vida. E olha que era velho [sorri]. Mas com Sam [Wenders
para e uma lágrima escapa]... Era jovem demais, tinha tanto a oferecer [o
diretor esconde seu rosto atrás de uma xícara de café].
Voltando à música, continua escolhendo os CDs que coloca na
mala antes da roupa?
Pior ainda, levo um disco rígido com 28 dias de música... Já
não preciso de CDs.
E escolhe ou deixe que toque ao acaso?
Vou contar meu segredo. Comecei compilando as músicas que
tinha e a tarefa ficou grande demais para mim. Então comecei a qualificar os
discos de uma a cinco estrelas e consegui um sistema em que só os álbuns de
cinco estrelas entram nesse disco rígido.
Mas agora já ocupa 28 dias...
E por isso tenho outro problema. Não sei o que fazer. Coloco
no modo aleatório e deixo que toque o que for.
Ry Cooder conta que nunca teria sido quem é se o sr. não o
tivesse contratado quando era quase um desconhecido para fazer a trilha sonora
de Paris, Texas.
Por sorte, tive muita liberdade naquele filme. Quis
contratá-lo três anos antes, para Hammet – Mistério em Chinatown, mas tinha
acabado de lançar seu primeiro álbum e os estúdios o rejeitaram. Prometi que o
chamaria assim que pudesse. Nosso respeito é mútuo. Paris, Texas não teria tido
o sucesso que teve sem a música de Ry. Vou contar uma história. Harry Dean
Stanton era um bom músico e cantor estupendo. Gostava de interpretar músicas
mexicanas. Na filmagem de Paris, Texas à noite cantava para nós no bar. Um dia
Harry me perguntou se eu não achava que o filme precisava de uma música assim e
me pareceu uma ideia brilhante. Então fez a versão de ‘Canción Mixteca’ e
gravamos no fim da produção. Depois da estreia do filme, Ry Cooder saiu em
turnê e em seus primeiros três concertos na Europa Harry apareceu para cantar
com ele, tendo pago a própria viagem. Na quarta, Ry me ligou e me pediu para
fazer alguma coisa. “Está ameaçando me seguir a turnê inteira, é um cara
adorável, mas acredita que faz parte do show.” No fim, tudo acabou quando Ry
viajou para o Japão.
O sr. também é muito amigo de Nick Cave...
Sim, é um cara incrível. Se tornou o [dá risada] Frank
Sinatra de nossos tempos. É ótimo na composição e tem uma voz que representa
toda uma geração. Vou continuar trabalhando com ele enquanto puder. Como
escritor de romances é surpreendente em seu uso dos tons.
Sendo um apaixonado pela música, seu cinema está repleto de
silêncios.
O silêncio se tornou um dos grandes privilégios dos
cineastas atuais. É preciso lutar por ele. Faz com que o espectador se
concentre no que vê. A tecnologia vai em sentido contrário, prima cada vez mais
para que o cinema tenha um som mais alto.
Podemos falar mais de Paris, Texas?
Sei que esse filme é muito popular na Espanha. Na verdade, é
um fenômeno estranho. Há filmes que estreiam no momento exato, e foi o que
aconteceu com Paris, Texas. Comigo aconteceu mais duas vezes, com Asas do
desejo e Buena Vista Social Club. Às vezes os filmes estreiam cedo ou tarde
demais, e não é você quem decide. Pode chamar de destino, sorte, o que
quiser... Harry Dean Stanton estava em seu momento perfeito, era o primeiro
roteiro de Shepard... Nastassja estava no ápice de sua carreira, e Ry estava
disposto a mostrar ao que veio. A única coisa que eu podia fazer era não
estragar tudo, e consegui. Porém, ninguém se importou com Estrela solitária e
veja como Sam Shepard e Jessica Lange estavam bem.
Vai continuar filmando em 3D?
Quando precisar, sem dúvida. É uma mídia muito interessante,
mas está sendo usada de forma horrível, o que piora sua má reputação. Quis
rodar Submersão em 3D, mas não me deixaram. Sinto-me como um lobo solitário
uivando à noite: “Deixem-me filmar em 3D!”.
Não é curioso que tenha sido candidato ao Oscar por três
vezes, sempre com documentários?
Que vou fazer ou dizer? É a vida. Paris, Texas foi comprada
para os Estados Unidos pela Twentieth Century Fox e prepararam um lançamento
inteligente, a fim de obter inclusive vários Oscars, sobretudo pensando em
Harry Dean Stanton. E em três semanas mudou tudo, da cúpula diretora até a
recepcionista. Os novos executivos não quiseram nem saber das intenções dos
anteriores e não fizeram nem uma projeção para os acadêmicos nem colocaram um
anúncio. Harry ficou arrasado.
O sr. conseguiu controlar sua carreira?
Sempre fiz o que quis. Aprendi em minhas colaborações com
Coppola e seu estúdio Zoetrope. Vendo a loucura que rodeava Francis, entendi
que aquilo não era para mim e que precisava me manter em filmes que podia
controlar.
E agora está filmando o papa Francisco.
Começamos a trabalhar em seu primeiro ano de papado. Nos
vimos cinco vezes e cada encontro durava meio dia. Assisti milhares de horas de
imagens de suas viagens e rodei muito com ele. Na verdade fomos nos
aproximando, apesar de este não ser um filme biográfico. O que me interessa é o
que conta, estou me concentrando em suas ideias, em sua coragem de devolver a
Igreja a suas origens, a suas preocupações com a pobreza, os refugiados, a
natureza, o diálogo entre religiões. Não são ideias novas, vêm de alguém de
quem escolheu o nome, Francisco, um legado enorme vindo de alguém que foi um
revolucionário. E acredito que o papa Francisco também é.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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