quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

O que faz a esquerda, esquerda?

Legenda: Parlamento francês dividido na obra Abertura dos Estados Gerais 
em Versalhes, 5 de maio de 1789, de Louis Charles Auguste Couder, 1839.

Publicado originalmente no site da revista IDEIAS, em 2 de janeiro de 2019   

O que faz a esquerda, esquerda?
Por Eduardo Ramos  

[Esboço de resposta ao artigo “Petismo: doença geriátrica do comunismo”, de Dédallo Neves, publicado na Ideias 206]

“Mas também é verdade que o interesse pelo conhecimento rigoroso, determinado, diminui bastante quando uma autêntica transformação política parece fora de questão.” (Terry Eagleton)

O que faz da esquerda, esquerda? O tempo se fecha de tal forma que parece precisarmos voltar às perguntas fundamentais, basilares, de nossas formações políticas.

Concordando com a linha geral do ensaio “Petismo: doença geriátrica do comunismo”, pretendo tensionar aqui alguns pontos que emergiram de sua leitura e que, ao meu ver, parecem colocar algumas cores nesta problemática tão urgente para a reorganização das esquerdas no Brasil após 14 anos de permanência do Partido dos Trabalhadores no “poder”, ou melhor, no poder executivo federal (e isso não é um mero detalhe, como demonstrarei). Para tanto, assim como o autor do ensaio ora apreciado, é preciso sempre “colocar os pingos nos is”: não se trata de uma crítica rasteira, sectária e conservadora em relação ao “petismo” ou ao PT; trata-se, em verdade, de tentativa de esboço crítico e aproximativo para uma crítica de esquerda ao cenário político da esquerda brasileira. Cenário este que, convenhamos, apesar das dissidências e dos pluralismos, se encontra centrado na atuação e sob a batuta do PT e, por isso mesmo, a necessidade de lançarmos, neste roteiro crítico, críticas diretas e indiretas a este partido. Desta forma, busco, desde já, deixar claros alguns pontos: o PT não é a esquerda brasileira, o que é óbvio, mas em tempos de obscurantismo confusionista é sempre bom – e triste – ter que relembrar; o PT não é o “mal-estar” da nossa “civilização”, para citar o velho Freud, e, logo, seu fim – seja via perseguição e repressão, seja, num mundo imaginário, via dissolução interna do próprio partido − não é a panaceia da sociedade brasileira; e, por fim, procurando operar uma crítica de esquerda a um dos campos desse cenário político tempestuoso, testemunho minha “fé” na renovação deste campo – e, consequentemente, minha disposição para pensá-la.

ESQUERDA… ESQUERDA?

Iniciemos no encalço da pergunta basilar e programática: o que faz da esquerda, esquerda? Numa análise imediata, diríamos: a divisão entre direita e esquerda no espectro político vem de uma tradição revolucionária francesa onde os jacobinos – os “igualitaristas radicais” – sentavam-se à esquerda no Parlamento e os girondinos – os “liberais” – sentavam-se à direita. Logo, ser de esquerda significaria orientar-se pelo princípio da igualdade – o que não deixa de ser verdade, mas não representa a totalidade do que significa ser de esquerda – e ser de direita significaria orientar-se pelo princípio da liberdade – o que é uma piada para nós, brasileiros, se “lembrarmos” como a nossa direita foi, predominantemente, em nossa história, autoritária e pouco afeita à ideia de liberdade, que dirá à liberdade em si.

Assim, sem perder de vista tal exemplo de análise, passemos para uma aproximação mais complexa. Se a esquerda não se esgota no princípio da igualdade, o que mais preenche essa orientação política? Poderíamos dizer: a luta pela democracia! E não seria mentira se não precisássemos de alguns bons anos de luta e de produção teórica para definir exatamente o significado desta democracia pela qual lutamos. Liberais têm seu sentido de democracia, conservadores também e até mesmo fascistas o têm. Para encontrar seu “conteúdo”, não basta traçarmos o roteiro tradicional das aulas de ciência política retornando ao grego “demokratia” para falar em “poder do povo” nem retomarmos o estudo dos clássicos gregos sobre formas de governo – em que, para nós, modernos, além de ficarmos decepcionados com a experiência grega de democracia, também decepcionados ficaríamos com a concepção que alguns de seus maiores autores possuem sobre ela. Prossigamos com o raciocínio.

Igualdade, democracia, o que mais podemos constar em nossa investigação? Nestas duas indagações iniciais, ficou subjacente uma ideia: a ideia de luta. Na primeira, enquanto opositores dos liberais, recebe-se a pecha de radical e, mais precisamente, de radicalismo revolucionário. Na segunda, a palavra democracia vem acompanhada do seu meio de realização: a luta, o combate, a persistência, a ação e, muitas vezes, a resistência. Assim, deparamo-nos com outro elemento que informa esta postura política. Mas a luta é privilégio da esquerda? Só a esquerda enche as ruas para “fazer” a ação política concreta? A velha Revolução Francesa, ou melhor, Burguesa, de 1789, não foi levada a cabo por meio de cabeças que rolavam para dentro de seus respectivos cestos? Os “russos brancos” não carbonizaram léguas e mais léguas da velha Rússia pós-revolucionária em sua guerra civil sangrenta contra o Exército Vermelho nos anos que se seguiram à Revolução de 1917? Ou, mais perto, o “Comando de Caça aos Comunistas”, o “CCC”, na eclosão do golpe civil-militar de 1964 no Brasil, não correu as ruas das cidades onde atuava perseguindo, violentando, depredando, delatando e até mesmo assassinando qualquer um que aparentasse ser “esquerdista” demais? Lembremos: violência política é violência política, seja ela de esquerda ou de direita, seja ela explícita, numa rajada de fuzil que assassina uma criança escolarizada e uniformizada na porta de sua casa em alguma favela no Rio de Janeiro, seja ela velada, quando uma criança morre de fome na mesma favela.

Vejamos: parece que nos deparamos com um daqueles casos em que a velha filosofia não nos basta. Poderíamos continuar com o exercício de encontrar os elementos pertinentes e impertinentes para nossa tentativa de investigação genética sobre a esquerda. De nada adiantaria se não colocarmos pontos incisivos para sua devida compreensão: sem vislumbrarmos que estes elementos expressam condições sociais concretas, materiais, históricas, jamais poderemos compreender o significado de ser de esquerda. Ser de esquerda não é ter uma postura política qualquer diante de uma sociedade qualquer. Esta postura política não é um comportamento singular de um indivíduo qualquer lançado em relações sociais quaisquer. É de uma sociedade específica que falamos, de uma forma de subjetividade singular, de relações sociais determinadas e não de abstrações isoladas, apartadas da vida real. É neste ponto que podemos compreender o famoso trecho d’A Ideologia Alemã, de Marx: “Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. (…) Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”.

Vejam, não se trata de pedantismo ou ortodoxia: é uma questão teórica ou, melhor, teórico-metodológica. Partir da materialidade das relações sociais não se trata de um enunciado científico aleatório: denota um tipo de investigação que, rompendo com os positivismos pueris da primazia do método científico, estabelece a primazia do objeto, ou seja, da realidade, sem cair em um empirismo cru e ingênuo − e eis, em linhas gerais, parte da riqueza da tradição marxista em termos científicos.

O que significa, portanto, atravessar aquelas indagações sobre a natureza da esquerda com os marcos do materialismo histórico? Significa, antes de tudo, compreendermos sua particularidade histórico-social: a “esquerda”, enquanto expressão de uma postura política, representa um dos espectros políticos que marcam o campo das lutas entre as classes sociais no seio de uma formação social e econômica marcada pelo modo de produção capitalista. Expressa uma resposta política e social de sujeitos sociais a uma condição social concreta: o capitalismo. Agora sua proximidade com o princípio da igualdade deixa de ser uma mera questão de tradição política; sua luta pela democracia deixa de ser qualquer apelo vazio a uma forma de governo; seu caráter combativo deixa de ser só mais uma das faces da violência política moderna. Rastreando suas origens sociais, a esquerda deixa de ser uma postura política abstrata diante de um “mal-estar” social; passa a ser, adequadamente, a resposta prática e política de uma classe social e de sua perspectiva: o proletariado.

O leitor mais conservador poderia agora, então confirmado o “esquerdismo” deste que escreve, fechar a presente edição e bradar na mesa do café da manhã: “esses marxistas malditos só querem saber de dividir a sociedade, de disseminar essa ideia de classes sociais… isso não existe!”. Igualmente, o leitor pós-moderno.

Acompanhem o raciocínio, predominantemente histórico: não é o “marxismo” que inventa as classes sociais ou a luta entre estas; é precisamente o modo de produção capitalista que funda uma nova forma de sociabilidade classista e que, logo, instaura a luta entre as classes que a compõem; a oposição – aqui propositalmente esquemática e binária – entre burguesia e proletariado não foi criada por uma teoria social consolidada décadas depois de estas classes surgirem no cenário social da Europa no processo multissecular de industrialização. Apesar de todos os relativismos da pós-modernidade, a burguesia jamais será a classe que só possui sua força de trabalho para vender no “mercado” sob condição de morrer de inanição. É do próprio “chão de fábrica” que emergem estas classes sociais e que as colocam em posições antagônicas – e, mesmo que o “chão de fábrica” vire um andar de um edifício ultramoderno em alguma megalópole ocidental no século XXI, isso não dissolve a realidade do fato de que continua existindo uma grande parcela de nossas sociedades, e até da humanidade, que sobrevive da venda de sua força de trabalho, que não possui sua existência garantida nem minimamente, que precisa sobreviver dispondo das migalhas que uma mínima porcentagem de seres humanos lhes permite dispor. Isso não é uma questão de identidade ou de narrativas, é uma questão, perdoem-me o chavão, de vida ou de morte.

Assim, desta necessária mediação com o aspecto material das relações sociais, podemos iluminar nosso problema inicial com novas respostas e novas tensões. A luta pela democracia e pela igualdade, esse caráter distintivo da esquerda em sua permanente oposição à sociabilidade capitalista, preenchidos por seu conteúdo de classe, permite-nos vislumbrar o fato de que as bases de sua atuação e organização política e partidária se assenta nas práticas e nas tradições operárias do século XIX: greves, revoluções, insurreições, sindicatos, associações internacionais de trabalhadores, partidos políticos etc. É esse desenho político que se projeta sobre o século XX e nos alcança no XXI com uma força que talvez se desacredite. Se dissemos que a igualdade é um elemento típico da esquerda, podemos dizer agora que, mais do que a igualdade, ser de esquerda significa lutar pela realização concreta de uma outra forma de sociabilidade, esta sim assentada em um modo de produzir a vida social que não seja sujeito ao interesse particular de uma classe particular. A democracia, em suas mãos, deixa de ser um apelo à fraseologia jurídico-política burguesa para se tornar pressuposto da emancipação humana; deixa de ser o “cão” de um fuzil apontado para a cabeça de cada país subjugado a múltiplos interesses político-econômicos alheios e passa a ser a viabilização concreta da participação social nos processos políticos e econômicos. A luta e a ação política deixam de ser um apelo vazio à generalidade abstrata do Estado ou a essa “cultura de palavras” que é a sua forma jurídica, para se manifestar enquanto forma concreta de transformação social.

Talvez seja isso, em linhas gerais, o significado e o sentido do que faz da esquerda, esquerda. E talvez sejam justamente estes pontos que nos façam refletir sobre o processo que vivemos atualmente no Brasil em relação ao cenário político da esquerda.

CENÁRIOS, DISPUTAS E VOLUNTARISMOS

Em seu ensaio, Dédallo coloca a questão fundamental de indagarmos se o PT é um partido de esquerda ou não − inclusive, chega a acusá-lo de “contrarrevolucionário”, “antiesquerda”. Pois bem, daí a necessidade destas considerações sobre a natureza da esquerda. Cumpre então colocarmos a questão do papel social desempenhado pelo partido enquanto organização político-partidária no seio do cenário político de esquerda no Brasil.

Não há dúvida de que o PT é um partido originário dos movimentos sociais que despontam no cenário turbulento da “transição” da Ditadura Militar para a “Nova República”. Naquele ínterim, entre o mandato de Ernesto Geisel e a promulgação da Constituição de 1988, surge um partido paulista assentado nas classes sociais exploradas, nos trabalhadores, e apoiado por parcelas da “pequena-burguesia”, via intelectualidade, e até mesmo de franjas da burguesia que identificam no partido uma nova esquerda para além da herança do PCB e da esquerda revolucionária das décadas de 1960-1970. O processo de sua formação, inclusive, encontra-se exatamente nesse contexto de disputa intelectual em torno da esquerda no Brasil que marca uma série de “saldos” históricos, realizados via USP, acerca do que o país viveu nas décadas de 1950-1960 – disputa marcada, por exemplo, pelo ostracismo em que foram colocados os intelectuais pertencentes ao antigo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) por sua suposta proximidade imperdoável com o PCB ou com a política nacional-desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, como é o caso de Alberto Guerreiro Ramos e Nelson Werneck Sodré.

Produto desta disputa no cenário da esquerda brasileira, o PT foi capaz de aglomerar ao seu redor os movimentos sociais que com ele se identificavam e teve a capacidade de mobilizar estas forças sociais para viabilizar um projeto político bem-sucedido que levou Lula até o Palácio da Alvorada. Esta centralidade da figura de Lula e a forma como este centralizou o comando do partido possuem uma ambiguidade central para o nosso problema: se de um lado ele viabilizou a consecução de seu projeto político, de outro lado, como uma força centrípeta, diluiu os movimentos sociais em si próprio e reivindicou o lugar monolítico de “esquerda brasileira”. Sim, os outros partidos de esquerda continuaram existindo e até mesmo surgiram dissidências do próprio PT que culminaram em novos partidos. Isso, entretanto, não contradiz a força centralizadora e efetiva que o partido mobilizou neste longo período desde sua fundação até os dias atuais.

Apesar da nocividade destrutiva desta tendência centralizadora em torno dos movimentos sociais, acredito que o partido, neste aspecto – do seu papel desempenhado enquanto organização político-partidária – representa ainda o que poderíamos chamar de um “ideário de esquerda”. Centralizador, o PT não deixou de representar um partido de esquerda no cenário brasileiro, como um partido que possui grande inserção nos movimentos sociais nacionais e até seus representantes em movimentos sociais internacionais.

O ponto crítico talvez resida na complexa questão de analisar o papel desempenhado pelo partido enquanto governo. Apesar de não possuirmos nem tinta nem compasso para tal análise, parece importante destacar uma de suas muitas dificuldades.

É sempre preciso estar atento ao perigo dos voluntarismos. Por vezes ouvimos nas rodas de conversa o argumento de que o PT estava com “a faca e o queijo na mão” durante estes anos de governo e “optou” por não fazê-lo. Antes de adentrar na própria plataforma de poder político do PT, é importante levar em conta que, apesar da pluralidade de lideranças e correntes dentro do partido, este se assenta na institucionalidade e, por isso, no reformismo – o que não nos impediria de rastrear em suas correntes internas um ideário revolucionário mais forte ou mais fraco. Talvez em alguma data remota nos idos da década de 1980 pudéssemos encontrar uma postura ou outra mais declaradamente anticapitalista, mas parece que algo se perdeu no caminho.

Voltando à crítica do voluntarismo. Primeiro, o PT alcançou o poder executivo federal, mas não teve uma vitória ampla e hegemônica no território nacional no que tange aos poderes executivos municipal e estadual e, mais do que isso, não possuiu maioria própria e inconteste no Congresso Nacional, muito menos nas principais casas legislativas estaduais e municipais do país; segundo, assumir o governo executivo federal colocou para o partido problemas diretos de natureza decisória e problemas estruturais de natureza histórica que jamais poderiam ser enfrentados no decorrer de um ou mesmo quatro mandatos. É claro que devemos fazer uma crítica sobre a forma como o partido conduziu o enfrentamento destes problemas, mas nunca sem perder do horizonte o fato de que para a devida apreciação crítica desta trajetória institucional é necessário compreendermos sua inserção dentro de um processo de longa duração e de uma formação social específica. Mais do que identificarmos os limites presentes na própria configuração do partido, é absolutamente necessário estudarmos a própria formação social e econômica do capitalismo brasileiro e os limites que se impõem à atuação política institucional – aqueles pontos inegociáveis, irrevogáveis, inquestionáveis e insubstituíveis de fato e, para usar o palavrório jurídico, de direito.

Evitarmos os voluntarismos impõe-nos a necessidade estrita de traçarmos um percurso de compreensão da realidade brasileira, resgatando o melhor das nossas tradições intelectuais tão esquecidas para operarmos uma análise crítica do processo histórico que marca nossa gênese, constituição, desenvolvimento e assentamento em bases capitalistas. Um esforço de compreensão estreitamente ligado à necessidade de sua transformação política, apesar do rebuliço pós-moderno bem delineado por Terry Eagleton em nossa epígrafe. E é neste cenário, em que aparentemente o sólido já se desmanchou completamente pelo ar, que nos perguntamos, enquanto críticos de uma forma de sociabilidade – e, por isso, também de posturas políticas não condizentes com o seu enfrentamento consequente e radical –, com o nosso grande poeta e comunista, Carlos Drummond de Andrade: “Posso, sem armas, revoltar-me?”. Mas isso já é assunto para o próximo ensaio.

Texto e imagem reproduzidos do site: revistaideias.com.br

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