Legenda: Parlamento francês dividido na obra Abertura dos Estados Gerais
em Versalhes, 5 de maio de 1789, de Louis Charles Auguste Couder, 1839.
Publicado originalmente no site da revista IDEIAS, em 2 de janeiro de 2019
O que faz a esquerda, esquerda?
Por Eduardo Ramos
[Esboço de resposta ao artigo “Petismo: doença geriátrica do
comunismo”, de Dédallo Neves, publicado na Ideias 206]
“Mas também é verdade que o interesse pelo conhecimento
rigoroso, determinado, diminui bastante quando uma autêntica transformação política
parece fora de questão.” (Terry Eagleton)
O que faz da esquerda, esquerda? O tempo se fecha de tal
forma que parece precisarmos voltar às perguntas fundamentais, basilares, de
nossas formações políticas.
Concordando com a linha geral do ensaio “Petismo: doença
geriátrica do comunismo”, pretendo tensionar aqui alguns pontos que emergiram
de sua leitura e que, ao meu ver, parecem colocar algumas cores nesta
problemática tão urgente para a reorganização das esquerdas no Brasil após 14
anos de permanência do Partido dos Trabalhadores no “poder”, ou melhor, no
poder executivo federal (e isso não é um mero detalhe, como demonstrarei). Para
tanto, assim como o autor do ensaio ora apreciado, é preciso sempre “colocar os
pingos nos is”: não se trata de uma crítica rasteira, sectária e conservadora
em relação ao “petismo” ou ao PT; trata-se, em verdade, de tentativa de esboço
crítico e aproximativo para uma crítica de esquerda ao cenário político da
esquerda brasileira. Cenário este que, convenhamos, apesar das dissidências e
dos pluralismos, se encontra centrado na atuação e sob a batuta do PT e, por
isso mesmo, a necessidade de lançarmos, neste roteiro crítico, críticas diretas
e indiretas a este partido. Desta forma, busco, desde já, deixar claros alguns
pontos: o PT não é a esquerda brasileira, o que é óbvio, mas em tempos de
obscurantismo confusionista é sempre bom – e triste – ter que relembrar; o PT
não é o “mal-estar” da nossa “civilização”, para citar o velho Freud, e, logo,
seu fim – seja via perseguição e repressão, seja, num mundo imaginário, via
dissolução interna do próprio partido − não é a panaceia da sociedade
brasileira; e, por fim, procurando operar uma crítica de esquerda a um dos
campos desse cenário político tempestuoso, testemunho minha “fé” na renovação
deste campo – e, consequentemente, minha disposição para pensá-la.
ESQUERDA… ESQUERDA?
Iniciemos no encalço da pergunta basilar e programática: o
que faz da esquerda, esquerda? Numa análise imediata, diríamos: a divisão entre
direita e esquerda no espectro político vem de uma tradição revolucionária
francesa onde os jacobinos – os “igualitaristas radicais” – sentavam-se à
esquerda no Parlamento e os girondinos – os “liberais” – sentavam-se à direita.
Logo, ser de esquerda significaria orientar-se pelo princípio da igualdade – o
que não deixa de ser verdade, mas não representa a totalidade do que significa
ser de esquerda – e ser de direita significaria orientar-se pelo princípio da
liberdade – o que é uma piada para nós, brasileiros, se “lembrarmos” como a
nossa direita foi, predominantemente, em nossa história, autoritária e pouco
afeita à ideia de liberdade, que dirá à liberdade em si.
Assim, sem perder de vista tal exemplo de análise, passemos
para uma aproximação mais complexa. Se a esquerda não se esgota no princípio da
igualdade, o que mais preenche essa orientação política? Poderíamos dizer: a
luta pela democracia! E não seria mentira se não precisássemos de alguns bons
anos de luta e de produção teórica para definir exatamente o significado desta
democracia pela qual lutamos. Liberais têm seu sentido de democracia,
conservadores também e até mesmo fascistas o têm. Para encontrar seu
“conteúdo”, não basta traçarmos o roteiro tradicional das aulas de ciência
política retornando ao grego “demokratia” para falar em “poder do povo” nem
retomarmos o estudo dos clássicos gregos sobre formas de governo – em que, para
nós, modernos, além de ficarmos decepcionados com a experiência grega de
democracia, também decepcionados ficaríamos com a concepção que alguns de seus
maiores autores possuem sobre ela. Prossigamos com o raciocínio.
Igualdade, democracia, o que mais podemos constar em nossa
investigação? Nestas duas indagações iniciais, ficou subjacente uma ideia: a
ideia de luta. Na primeira, enquanto opositores dos liberais, recebe-se a pecha
de radical e, mais precisamente, de radicalismo revolucionário. Na segunda, a
palavra democracia vem acompanhada do seu meio de realização: a luta, o
combate, a persistência, a ação e, muitas vezes, a resistência. Assim,
deparamo-nos com outro elemento que informa esta postura política. Mas a luta é
privilégio da esquerda? Só a esquerda enche as ruas para “fazer” a ação
política concreta? A velha Revolução Francesa, ou melhor, Burguesa, de 1789,
não foi levada a cabo por meio de cabeças que rolavam para dentro de seus
respectivos cestos? Os “russos brancos” não carbonizaram léguas e mais léguas
da velha Rússia pós-revolucionária em sua guerra civil sangrenta contra o
Exército Vermelho nos anos que se seguiram à Revolução de 1917? Ou, mais perto,
o “Comando de Caça aos Comunistas”, o “CCC”, na eclosão do golpe civil-militar
de 1964 no Brasil, não correu as ruas das cidades onde atuava perseguindo,
violentando, depredando, delatando e até mesmo assassinando qualquer um que
aparentasse ser “esquerdista” demais? Lembremos: violência política é violência
política, seja ela de esquerda ou de direita, seja ela explícita, numa rajada
de fuzil que assassina uma criança escolarizada e uniformizada na porta de sua
casa em alguma favela no Rio de Janeiro, seja ela velada, quando uma criança
morre de fome na mesma favela.
Vejamos: parece que nos deparamos com um daqueles casos em
que a velha filosofia não nos basta. Poderíamos continuar com o exercício de
encontrar os elementos pertinentes e impertinentes para nossa tentativa de
investigação genética sobre a esquerda. De nada adiantaria se não colocarmos
pontos incisivos para sua devida compreensão: sem vislumbrarmos que estes
elementos expressam condições sociais concretas, materiais, históricas, jamais
poderemos compreender o significado de ser de esquerda. Ser de esquerda não é
ter uma postura política qualquer diante de uma sociedade qualquer. Esta
postura política não é um comportamento singular de um indivíduo qualquer
lançado em relações sociais quaisquer. É de uma sociedade específica que
falamos, de uma forma de subjetividade singular, de relações sociais
determinadas e não de abstrações isoladas, apartadas da vida real. É neste
ponto que podemos compreender o famoso trecho d’A Ideologia Alemã, de Marx:
“Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se
eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem,
imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e
representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se
dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se
também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de
vida. (…) Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência”.
Vejam, não se trata de pedantismo ou ortodoxia: é uma
questão teórica ou, melhor, teórico-metodológica. Partir da materialidade das
relações sociais não se trata de um enunciado científico aleatório: denota um
tipo de investigação que, rompendo com os positivismos pueris da primazia do
método científico, estabelece a primazia do objeto, ou seja, da realidade, sem
cair em um empirismo cru e ingênuo − e eis, em linhas gerais, parte da riqueza
da tradição marxista em termos científicos.
O que significa, portanto, atravessar aquelas indagações
sobre a natureza da esquerda com os marcos do materialismo histórico?
Significa, antes de tudo, compreendermos sua particularidade histórico-social:
a “esquerda”, enquanto expressão de uma postura política, representa um dos
espectros políticos que marcam o campo das lutas entre as classes sociais no
seio de uma formação social e econômica marcada pelo modo de produção
capitalista. Expressa uma resposta política e social de sujeitos sociais a uma
condição social concreta: o capitalismo. Agora sua proximidade com o princípio
da igualdade deixa de ser uma mera questão de tradição política; sua luta pela
democracia deixa de ser qualquer apelo vazio a uma forma de governo; seu
caráter combativo deixa de ser só mais uma das faces da violência política moderna.
Rastreando suas origens sociais, a esquerda deixa de ser uma postura política
abstrata diante de um “mal-estar” social; passa a ser, adequadamente, a
resposta prática e política de uma classe social e de sua perspectiva: o
proletariado.
O leitor mais conservador poderia agora, então confirmado o
“esquerdismo” deste que escreve, fechar a presente edição e bradar na mesa do
café da manhã: “esses marxistas malditos só querem saber de dividir a
sociedade, de disseminar essa ideia de classes sociais… isso não existe!”.
Igualmente, o leitor pós-moderno.
Acompanhem o raciocínio, predominantemente histórico: não é
o “marxismo” que inventa as classes sociais ou a luta entre estas; é
precisamente o modo de produção capitalista que funda uma nova forma de sociabilidade
classista e que, logo, instaura a luta entre as classes que a compõem; a
oposição – aqui propositalmente esquemática e binária – entre burguesia e
proletariado não foi criada por uma teoria social consolidada décadas depois de
estas classes surgirem no cenário social da Europa no processo multissecular de
industrialização. Apesar de todos os relativismos da pós-modernidade, a
burguesia jamais será a classe que só possui sua força de trabalho para vender
no “mercado” sob condição de morrer de inanição. É do próprio “chão de fábrica”
que emergem estas classes sociais e que as colocam em posições antagônicas – e,
mesmo que o “chão de fábrica” vire um andar de um edifício ultramoderno em
alguma megalópole ocidental no século XXI, isso não dissolve a realidade do
fato de que continua existindo uma grande parcela de nossas sociedades, e até
da humanidade, que sobrevive da venda de sua força de trabalho, que não possui
sua existência garantida nem minimamente, que precisa sobreviver dispondo das
migalhas que uma mínima porcentagem de seres humanos lhes permite dispor. Isso
não é uma questão de identidade ou de narrativas, é uma questão, perdoem-me o
chavão, de vida ou de morte.
Assim, desta necessária mediação com o aspecto material das
relações sociais, podemos iluminar nosso problema inicial com novas respostas e
novas tensões. A luta pela democracia e pela igualdade, esse caráter distintivo
da esquerda em sua permanente oposição à sociabilidade capitalista, preenchidos
por seu conteúdo de classe, permite-nos vislumbrar o fato de que as bases de
sua atuação e organização política e partidária se assenta nas práticas e nas
tradições operárias do século XIX: greves, revoluções, insurreições,
sindicatos, associações internacionais de trabalhadores, partidos políticos
etc. É esse desenho político que se projeta sobre o século XX e nos alcança no
XXI com uma força que talvez se desacredite. Se dissemos que a igualdade é um
elemento típico da esquerda, podemos dizer agora que, mais do que a igualdade,
ser de esquerda significa lutar pela realização concreta de uma outra forma de
sociabilidade, esta sim assentada em um modo de produzir a vida social que não
seja sujeito ao interesse particular de uma classe particular. A democracia, em
suas mãos, deixa de ser um apelo à fraseologia jurídico-política burguesa para
se tornar pressuposto da emancipação humana; deixa de ser o “cão” de um fuzil
apontado para a cabeça de cada país subjugado a múltiplos interesses
político-econômicos alheios e passa a ser a viabilização concreta da
participação social nos processos políticos e econômicos. A luta e a ação
política deixam de ser um apelo vazio à generalidade abstrata do Estado ou a
essa “cultura de palavras” que é a sua forma jurídica, para se manifestar
enquanto forma concreta de transformação social.
Talvez seja isso, em linhas gerais, o significado e o
sentido do que faz da esquerda, esquerda. E talvez sejam justamente estes
pontos que nos façam refletir sobre o processo que vivemos atualmente no Brasil
em relação ao cenário político da esquerda.
CENÁRIOS, DISPUTAS E VOLUNTARISMOS
Em seu ensaio, Dédallo coloca a questão fundamental de
indagarmos se o PT é um partido de esquerda ou não − inclusive, chega a
acusá-lo de “contrarrevolucionário”, “antiesquerda”. Pois bem, daí a
necessidade destas considerações sobre a natureza da esquerda. Cumpre então
colocarmos a questão do papel social desempenhado pelo partido enquanto
organização político-partidária no seio do cenário político de esquerda no
Brasil.
Não há dúvida de que o PT é um partido originário dos
movimentos sociais que despontam no cenário turbulento da “transição” da
Ditadura Militar para a “Nova República”. Naquele ínterim, entre o mandato de
Ernesto Geisel e a promulgação da Constituição de 1988, surge um partido
paulista assentado nas classes sociais exploradas, nos trabalhadores, e apoiado
por parcelas da “pequena-burguesia”, via intelectualidade, e até mesmo de
franjas da burguesia que identificam no partido uma nova esquerda para além da
herança do PCB e da esquerda revolucionária das décadas de 1960-1970. O
processo de sua formação, inclusive, encontra-se exatamente nesse contexto de
disputa intelectual em torno da esquerda no Brasil que marca uma série de
“saldos” históricos, realizados via USP, acerca do que o país viveu nas décadas
de 1950-1960 – disputa marcada, por exemplo, pelo ostracismo em que foram
colocados os intelectuais pertencentes ao antigo Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB) por sua suposta proximidade imperdoável com o PCB ou com a
política nacional-desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, como é o caso de
Alberto Guerreiro Ramos e Nelson Werneck Sodré.
Produto desta disputa no cenário da esquerda brasileira, o
PT foi capaz de aglomerar ao seu redor os movimentos sociais que com ele se
identificavam e teve a capacidade de mobilizar estas forças sociais para
viabilizar um projeto político bem-sucedido que levou Lula até o Palácio da
Alvorada. Esta centralidade da figura de Lula e a forma como este centralizou o
comando do partido possuem uma ambiguidade central para o nosso problema: se de
um lado ele viabilizou a consecução de seu projeto político, de outro lado,
como uma força centrípeta, diluiu os movimentos sociais em si próprio e
reivindicou o lugar monolítico de “esquerda brasileira”. Sim, os outros
partidos de esquerda continuaram existindo e até mesmo surgiram dissidências do
próprio PT que culminaram em novos partidos. Isso, entretanto, não contradiz a
força centralizadora e efetiva que o partido mobilizou neste longo período
desde sua fundação até os dias atuais.
Apesar da nocividade destrutiva desta tendência
centralizadora em torno dos movimentos sociais, acredito que o partido, neste
aspecto – do seu papel desempenhado enquanto organização político-partidária –
representa ainda o que poderíamos chamar de um “ideário de esquerda”. Centralizador,
o PT não deixou de representar um partido de esquerda no cenário brasileiro,
como um partido que possui grande inserção nos movimentos sociais nacionais e
até seus representantes em movimentos sociais internacionais.
O ponto crítico talvez resida na complexa questão de
analisar o papel desempenhado pelo partido enquanto governo. Apesar de não
possuirmos nem tinta nem compasso para tal análise, parece importante destacar
uma de suas muitas dificuldades.
É sempre preciso estar atento ao perigo dos voluntarismos.
Por vezes ouvimos nas rodas de conversa o argumento de que o PT estava com “a
faca e o queijo na mão” durante estes anos de governo e “optou” por não
fazê-lo. Antes de adentrar na própria plataforma de poder político do PT, é
importante levar em conta que, apesar da pluralidade de lideranças e correntes
dentro do partido, este se assenta na institucionalidade e, por isso, no
reformismo – o que não nos impediria de rastrear em suas correntes internas um
ideário revolucionário mais forte ou mais fraco. Talvez em alguma data remota
nos idos da década de 1980 pudéssemos encontrar uma postura ou outra mais
declaradamente anticapitalista, mas parece que algo se perdeu no caminho.
Voltando à crítica do voluntarismo. Primeiro, o PT alcançou
o poder executivo federal, mas não teve uma vitória ampla e hegemônica no
território nacional no que tange aos poderes executivos municipal e estadual e,
mais do que isso, não possuiu maioria própria e inconteste no Congresso
Nacional, muito menos nas principais casas legislativas estaduais e municipais
do país; segundo, assumir o governo executivo federal colocou para o partido
problemas diretos de natureza decisória e problemas estruturais de natureza
histórica que jamais poderiam ser enfrentados no decorrer de um ou mesmo quatro
mandatos. É claro que devemos fazer uma crítica sobre a forma como o partido
conduziu o enfrentamento destes problemas, mas nunca sem perder do horizonte o
fato de que para a devida apreciação crítica desta trajetória institucional é necessário
compreendermos sua inserção dentro de um processo de longa duração e de uma
formação social específica. Mais do que identificarmos os limites presentes na
própria configuração do partido, é absolutamente necessário estudarmos a
própria formação social e econômica do capitalismo brasileiro e os limites que
se impõem à atuação política institucional – aqueles pontos inegociáveis,
irrevogáveis, inquestionáveis e insubstituíveis de fato e, para usar o
palavrório jurídico, de direito.
Evitarmos os voluntarismos impõe-nos a necessidade estrita
de traçarmos um percurso de compreensão da realidade brasileira, resgatando o
melhor das nossas tradições intelectuais tão esquecidas para operarmos uma
análise crítica do processo histórico que marca nossa gênese, constituição,
desenvolvimento e assentamento em bases capitalistas. Um esforço de compreensão
estreitamente ligado à necessidade de sua transformação política, apesar do
rebuliço pós-moderno bem delineado por Terry Eagleton em nossa epígrafe. E é
neste cenário, em que aparentemente o sólido já se desmanchou completamente
pelo ar, que nos perguntamos, enquanto críticos de uma forma de sociabilidade –
e, por isso, também de posturas políticas não condizentes com o seu
enfrentamento consequente e radical –, com o nosso grande poeta e comunista,
Carlos Drummond de Andrade: “Posso, sem armas, revoltar-me?”. Mas isso já é
assunto para o próximo ensaio.
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