Publicado originalmente no site Brasil El País, em 17 de dezembro de 2018
Todos somos esquisitos: cientistas de Yale confirmam que a
pessoa normal só existe nas estatísticas
O indivíduo médio serve para identificar as características
mais frequentes, mas não é de carne e osso
Por Kristin Sulen
Se você é viciado em xadrez e apaixonado pela teoria das
cordas, segundo a qual o espaço-tempo tem onze dimensões; se vive
permanentemente conectado ao computador, porque é mais fácil encontrá-lo
on-line do que em qualquer outro lugar, se não faz a mesmas coisas que os
outros, pode ter se achado esquisito uma vez ou outra. Ou alguém fez você se
sentir assim. No entanto, mesmo que alguém o identifique como rato de
biblioteca ou o defina como nerd, geek ou freak, adjetivos que poderiam ser
usados para os personagens da série Big Bang Theory, você não tem nada de
estranho. Todos temos características que nos tornam diferentes. Além disso,
segundo um novo estudo da Universidade Yale (EUA), ninguém é normal.
A ideia de normalidade, diz Francisco Estupiñá, professor de
Psicologia da Universidade Complutense de Madri, é relevante no sentido
estatístico para manuais de diagnóstico no campo da saúde mental, como o DSM
(sigla em inglês de Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), a
bíblia da Associação Americana de Psiquiatria: "O normal, estatisticamente
falando, é o frequente". Por exemplo, entre ser destro ou canhoto, o
primeiro é mais comum (apenas entre 10% e 17% da população é canhota). A
questão, continua o especialista, "está no uso desse conceito na linguagem
comum."
A denominação "normal" geralmente causa problemas
por ser uma combinação de dois sentidos diferentes, o científico e o comum, diz
Cristian Saborido, professor do departamento de Lógica, História e Filosofia da
Ciência da UNED. Segundo ele, "o segundo tem a ver com os ideais que temos
sobre o perfeito".
Ideias diferentes sobre normalidade
No âmbito do pensamento, e na filosofia da medicina em particular,
esse duplo sentido do termo se traduz em um debate entre duas perspectivas: a
naturalista e a construtivista. "A primeira diz que permite distinguir
objetivamente estados saudáveis dos doentes, e o ideal frente ao patológico. A
segunda crítica essa visão, defendendo que a saúde e a doença são conceitos
cheios de valores que somos incapazes de entender de forma objetiva, e que
dependem do contexto sociocultural", explica Saborido.
Esse segundo ponto de vista, na avaliação da psiquiatria, é
defendido em The Myth of Optimality in Clinical Neuroscience (o mito da
otimalidade na neurociência clínica), um artigo dos pesquisadores Avram J.
Holmes e Lauren M. Patrick, do Departamento de Psicologia da Universidade Yale,
publicado na revista Cell. Embora o que digam não seja novo: "A filosofia
tem dito isso desde o início do século XX", diz Saborido, citando os
filósofos franceses Michel Foucault e Georges Canguilhem, que criticavam a
ideia de normalidade na medicina e na psiquiatria.
A psiquiatria se baseia na combinação do ideal e do
estatístico para estabelecer, a partir de um conjunto de população, o que deve
ser o comportamento padrão e considerar patológico tudo o que se distancie
dele. "O objetivo da psiquiatria seria trazer as pessoas para a normalidade
estatística, porque entende-se que corresponde à normalidade ideal",
afirma o professor de filosofia.
Existe um comportamento ideal?
O artigo também questiona a história de nossa espécie. Os
autores, destaca Saborido, criticam a concepção que assume a evolução como um
caminho unidirecional que nos levou ao ideal. "A evolução não nos levou a
ter um padrão único de comportamento, e sim a uma enorme quantidade
deles", diz o professor. Mais do que o ideal, o motor que nos impulsiona
como espécie é o diverso.
"O ideal é um mito. Evolutivamente, somos capazes de
desenvolver comportamentos diferentes, porque vivemos e enfrentamos contextos
muito diferentes. Se tivéssemos apenas uma maneira de agir, seríamos um
fracasso", diz Saborido. Portanto, é um equívoco, dizem os autores do
estudo, que um neuropsiquiatra, neurologista ou psicólogo analisem
comportamentos de forma isolada.
"Não se trata de pensar que as pessoas têm que se
comportar de uma certa maneira em todos os casos. O ser humano vive em
ambientes mutáveis, as ameaças e as oportunidades surgem e desaparecem, e o
cérebro precisa se adaptar a tudo isso. É preciso observar o comportamento em
seu contexto", continua este especialista. Só se pode falar em
comportamentos ideais em determinadas circunstâncias, mas como termo global não
funciona, afirma Carmen Agustín, bióloga e doutora em Neurociências.
O problema de não se sentir normal
A otimalidade está ligada à busca da superação, lembra
Estupiñá: "Está relacionada com o perfeccionismo, até que o esforço deixa
de ser eficiente. É como a caricatura das muitas coisas que precisamos fazer
para ser saudáveis, mas não há horas [suficientes] no dia para cumprir tudo o
que é sinônimo de saúde", compara.
Muitas pessoas decidem consultar um psicólogo por não se
sentirem comuns. Poucas recorrem à afirmação "eu não sou normal". A
maioria prefere expressar suas experiências: "Doutor, o que acontece
comigo não é normal". Ou seja, vivenciam as experiências como algo
inconfessável ou repreensível. "O que esperam é que os psicólogos deem
alguma garantia de que o que acontece com elas é conhecido e tratável. E a
resposta deve transmitir que não devem ter vergonha e tentar expor
soluções", afirma o psicólogo.
Para avaliar como patológico um problema comportamental,
duas perguntas fundamentais devem ser feitas, continua Estupiñá: a pessoa sofre
com o que acontece com ela? Tem mais dificuldade em participar de sua vida
social, profissional e familiar? "A interferência com o ser subjetivo e
circunstâncias objetivas é mais importante do que os rótulos complexos. Quando
o problema não perturba a vida diária, é difícil considerá-lo um transtorno,
mas, se isso acontecer, então é preciso abordá-lo", diz Estupiñá.
Então, podemos dizer que ninguém é normal?
Fica claro que, estatisticamente, é complicado dizer, porque
as pessoas tendem a ser parecidas e, geralmente, estabelecemos perfis ou
categorias para diferentes comportamentos. Mas outra coisa é a existência da
normalidade.
"O indivíduo médio é uma caricatura, não existe, é uma
mera construção estatística. Embora muitas vezes abordemos as estatísticas de
maneira muito ingênua, sem entendimento técnico. Se dissermos que uma população
come, em média, meio frango, isso significa que há pessoas que não comem frango
e outras que comem um inteiro. Isso acontece em áreas sensíveis, como a
sexualidade. Em estudos epidemiológicos, a vida sexual é desenhada como uma
média, mas outros estudos que se concentram no comportamento por meio do que as
pessoas procuram na internet não têm nada a ver com esse estereótipo resultante
de fazer pesquisas com as pessoas sobre como se veem", conclui Estupiñá.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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