Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS, em 24 JUL 2018
Por que nos esquecemos dos livros que lemos
Lembramos onde lemos aquela obra ou como era a capa. Mas
costumamos ter mais dificuldade em evocar o argumento
Por Aloma Rodríguez *
É muito frequente lembrar os lugares onde lemos: na esteira
da praia, à sombra das árvores; em um parque de diversões; em um apartamento
minúsculo onde dava para ouvir o trem; na mesa da cozinha de casa. Mas é um
pouco mais difícil se lembrar de qual livro foi lido em que lugar, quem era o
autor, ou o enredo. Mesmo que às vezes se lembre que tinha capa vermelha ou que
era uma edição de bolso.
Ou seja, guardamos lembranças da sensação física da leitura,
mas menos do que foi lido. “Quase sempre me lembro de onde estava e me lembro
do livro. Lembro-me do objeto físico”, disse Pamela Paul, editora do New York
Times Book Review, a Julie Beck em uma reportagem na The Atlantic. Ela
continua: “Eu me lembro da edição, da capa e, geralmente, de onde comprei ou
quem o deu para mim. O que não lembro —e isso é horrível— é todo o resto.” “O
que mais me lembro sobre a coleção de contos de Malamud O Barril Mágico é a luz
morna do sol na cafeteria às sextas-feiras, onde eu o lia antes de ir para o
colégio. Faltam os pontos mais importantes, mas já é alguma coisa. A leitura
tem muitas facetas, uma delas pode ser a mistura indescritível, e naturalmente
fugaz, de pensamento e emoção, e as manipulações sensoriais que ocorrem no
momento e logo desaparecem. Quanto da leitura é, então, uma espécie de
narcisismo, um marcador de quem você era e sobre o que estava pensando quando
se encontrou com um texto?”, escreve Ian Crouch na The New Yorker sobre ler e
esquecer o que se leu.
Há sortudos capazes de lembrar os enredos de filmes, séries
e livros, mas para a maioria, como escreve Beck, é “como encher uma banheira,
entrar nela e ver a água descer pelo ralo: pode deixar uma fina película na
banheira, mas o resto não está mais lá”. Existem algumas razões científicas
para explicar isso e têm a ver com a chamada “curva do esquecimento”, que é a
velocidade com a qual nos esquecemos de algo, mais intensa durante as primeiras
24 horas depois que aprendemos alguma coisa, a menos que se faça uma revisão.
Isso explicaria por que os livros lidos em um fôlego só, ou as séries devoradas
em uma sentada, são esquecidos mais facilmente: não se pôs a memória da
recuperação para trabalhar.
Os livros e séries devorados em uma sentada são mais
facilmente esquecidos: não ativam a memória de recuperação
De fato, sabe-se que quem consome uma série assistindo um
capítulo por semana ou um por dia se lembra dela melhor do que quem a vê
inteira em um único dia. Ler um livro de uma só vez, às vezes, significa
esquecê-lo mais cedo, porque só foi ativada a memória de trabalho, não há
revisão. Em parte, sempre foi assim, mas de acordo com Jared Horvath,
pesquisador da Universidade de Melbourne, citado por Beck, “a forma como se
consome informação e entretenimento hoje mudou o tipo de memória que
valorizamos”. A memória de recuperação se tornou menos necessária em parte
graças à internet, agora a memória de reconhecimento é mais importante, afirma
Horvath. A possibilidade de ter acesso à informação significa que não é
necessário memorizá-la. Está disponível na internet, a grande biblioteca
global, mas também em alguns de seus predecessores, como livros, cassetes ou
VHS. De fato, Sócrates já era contra o “uso das letras” como uma espécie de
memória externa que dificultaria a memorização. Hoje conhecemos a relutância do
filósofo contra a letra escrita, e todo o seu pensamento, graças aos diálogos
de Platão, que foram registrados por escrito.
A “curva do esquecimento” é a velocidade com que esquecemos.
É mais intensa nas primeiras 24 horas se não se fizer uma revisão
Em The Solitary Vice: Against Reading [O Vício Solitário:
Contra a Leitura], a professora e ensaísta Mikita Brottman recupera este
fragmento de O Tempo Redescoberto, de Proust, um grande explorador da
confluência entre leitura e memória: “Um livro que lemos não permanece unido
para sempre apenas ao que havia em torno de nós; continua fielmente unido
também ao que éramos então, e só pode ser sentido de novo, concebido, através
da sensibilidade, através do pensamento, pela pessoa que éramos então”.
Brottman também cita as memórias de Azar Nafisi, Lendo Lolita em Teerã, onde o
autor escreve: “Se um som pudesse ser guardado entre as páginas da mesma forma
que uma folha ou uma borboleta, diria que, entre as páginas do meu Orgulho e
Preconceito, o romance mais polifônico de todos... está escondido, como uma
folha de outono, o som daquela sirene [antiaérea].” Essa relação com os livros
lidos e às vezes esquecidos explica a existência das memórias bibliófilas. O
livro de Brottman pertence, em parte, a esse gênero, e Lendo Lolita em Teerã,
completamente. É um gênero que tem seu próprio acrônimo: Bob, book of books.
Pamela Paul mantém o seu diário de leituras desde os 17 anos
e foi com base nele que escreveu My Life with Bob: Flawed Heroine Keeps Book of
Books, Plot Ensues [Minha Vida com Bob: a Heroína Defeituosa Mantém o Livro dos
Livros, a Trama Continua]. De acordo com um artigo no Financial Times, estamos
em um bom momento para bibliomemórias. Lucy Scholes escreveu sobre o gênero: “A
bibliomemória é um convite aberto para olhar as prateleiras da biblioteca de
outra pessoa; uma oferta que eu, e claramente muitos outros, acho difícil
recusar”. O capítulo do expurgo da biblioteca de Dom Quixote sempre foi lido
como uma crítica literária mais ou menos camuflada, e como uma declaração das
fontes do Quixote, mas também é uma lista de livros lidos, ou seja, uma
bibliomemória. O desejo de registrar sua biblioteca essencial foi o primeiro
impulso que levou Ismael Grasa a escrever La Hazaña Secreta [A Façanha
Secreta], um livro que, entre muitas outras coisas, é um diário de leituras.
Alberto Manguel cultivou o gênero com resultados brilhantes. Em Packin’ My
Library [Encaixotando Minha Biblioteca], ele escreve que escritores e leitores
sempre se perguntaram se a literatura tem algum papel na formação de um
cidadão. Lucy Scholes responde que “em sua exploração da relação simbiótica
entre vida e literatura, a bibliomemória parece ser um grito de guerra
afirmativo”.
* Aloma Rodríguez é escritora e membro da redação de Letras
Libres.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário