Hoje, os trabalhos de Tertuliana podem ser vistos principalmente em cordéis
e xilogravuras, arte comum à região Nordeste.
Tertuliana Lustosa: A ‘sertransneja’ que ocupa a sala de
aula como um ato político
Piauiense é transgênero e acredita que a arte pode
ultrapassar o controle dos corpos. “É o momento de dizer que a tradição não se
resume no controle do corpo e na catequese."
By Ryot Studio e CUBOCC
Uma jovem de 18 anos, nascida no interior do Piauí, chega ao
Rio de Janeiro para começar os estudos. Esta é uma história comum, que
provavelmente acontece todos os dias, e é também a história de Tertuliana
Lustosa, hoje com 21 anos. Nascida em Corrente mas tendo passado boa parte da
vida em Salvador, na Bahia, a moça aterrissou no Rio para cursar História da
Arte na UERJ, movida pelo amor que sempre teve pela literatura. Mas
paralelamente à mudança, também aconteceu o que Tertuliana define como
"diáspora territorial de gênero". Poucos meses após chegar na
universidade, ela iniciou seu processo de transição.
Em entrevista ao HuffPost Brasil, Tertuliana explica que o
início não foi fácil. Todo o acompanhamento médico e psicológico fundamental
para o procedimento não aconteceu, e por medo. Ela conta que é comum, em
pessoas transgênero, o receio de sofrer tratamento transfóbico por parte dos
profissionais de saúde. Assim, ela começou o processo de transição hormonal por
conta própria, recém saída da adolescência.
Tertuliana começou o processo de transição hormonal por
conta própria, recém saída da adolescência.
"Não é recomendado, nunca! Mas as pessoas trans fazem
porque os médicos são transfóbicos. Se você chega lá com passabilidade cis,
eles dão o remédio e até te tratam no pronome correto. Mas se chegar lá antes
de tudo, eles vão questionar se temos certeza. E é um momento super delicado,
porque você não quer ouvir esse tipo de coisa, e às vezes é só uma pessoa trans
que vai te tratar bem", explica.
Pouco tempo depois, ela buscou ajuda em um hospital que,
sim, conseguiu acolhê-la e orientá-la da melhor forma. Com acompanhamento da
assistência social e psicológica, Tertuliana iniciou o processo de mudança do
nome e conseguiu se aproximar cada vez mais de quem ela realmente é. "Eu
tive sorte, porque esse apoio é muito importante", define.
Estar no Rio também é uma forma de se redescobrir o tempo
todo. No período anterior à transição, se sentia muito "fechada" em
expressões culturais que sempre reconheceu como bonitas, mas que exigiam uma
performance: aquelas em que tocavam ritmos como pagode baiano e forró. "Eu
não queria estar ali com aquele corpo que eu tinha. Só que na verdade não era
com aquele corpo, mas com uma performatividade de uma masculinidade que não era
minha", conta.
Atualmente, Tertuliana ministra oficinas de literatura
Escritos Trans, na UERJ. Um dos formatos usados por ela é o cordel.
Hoje, a música atravessou sua vida de vez e ficou.
Tertuliana também trabalha como DJ e estuda formas de incluir mais MCs LGBT nas
festas da cidade. "O funk foi meu momento de liberdade, por mais que eu
não seja 'cria' do Rio", conta ela.
A primeira experiência como DJ aconteceu quase sem querer,
na Casa Nem. O local fica no centro do Rio e abriga pessoas transgênero em
situação de vulnerabilidade. Ali, também, foi a primeira sede do curso
pré-vestibular, Prepara Nem, direcionado ao mesmo público. Depois de observar
uma DJ transgênero, quase por instinto Tertuliana tentou, também. E deu certo:
aos poucos dominou as carrapetas e encontrou parte de sua liberdade.
A Casa Nem também marca a vida de Tertuliana por outros
motivos. Foi lá, em 2015, que ela começou a dar aulas de artes e literatura no
pré-vestibular, quando "ainda estava aprendendo a ser professora".
Depois, ela começou a dar aulas como convidada também em
outras instituições. Até chegar ao momento atual, em que ministra a oficina de
literatura "Escritos Trans", na UERJ (Universidade Estadual do Rio de
Janeiro). Na oficina, que está em seu primeiro semestre, a professora trabalha
termos relacionados à causa transgênero, e também lança mão da criatividade
para demarcar seus espaços.
"Os termos relacionados [a transexualidade] vêm de um
estudo de gênero contemporâneo da Europa, como transgênero ou transexual. Eu
senti a falta de ter os termos da militância, um dos termos é tranvestigenere,
então também tem o termo que eu criei, sertransneja. É um termo para
complexificar a existência trans, uma existência trans de uma diáspora
territorial de gênero. Saio do território da masculinidade e vou pra outro que
pode não ser nem um, nem outro [da feminilidade]", explica.
Sertransneja é um termo que complexifica a existência trans,
de uma diáspora territorial de gênero.
O termo sertransneja, aliás, está marcado na pele. A
tatuagem foi feita pela estudante Matheusa Passarelli, assassinada em maio
deste ano no Rio. Theusa, como conhecida pelos amigos, também era uma artista.
Cabe a Tertuliana, durante a entrevista, relembrar a grandeza da amiga, ainda
que em poucas e emocionada palavras. "Ela era incrível", define.
A criação artística de Tertuliana a levou a lecionar como
convidada em escolas públicas, também. Ela conta que já houve casos dos alunos
desistirem de participar das oficinas ao saberem que a professora não é
cisgênero e/ou sobre a temática de algumas peças artísticas. Mas o saldo final
foi positivo. "Alguns levaram com naturalidade e produziram a xilogravura.
Eu acho que é super potente e importante ter pessoas trans lecionando porque aí
não precisa trazer a temática, só a presença mostra que tem uma
potencialidade", acredita ela, que pretende mergulhar também em outras
linguagens artísticas.
Ser professora, para Tertuliana, é um ato político. "As
pessoas trans são infantilizadas e colocadas num lugar de impotência, num lugar
de pessoas que ocupam sempre lugares marginalizados no mercado de trabalho e na
sociedade. Ter pessoas trans fora disso, principalmente na educação, é
fundamental", observa. E completa: "Ter uma professora trans na
infância pode ser uma experiência importante para o resto da vida [de uma
criança]."
Mas ela explica que seu trabalho pode, e vai, muito além do
que o senso comum acredita. "Incomoda ser convidada para expor ou falar
somente sobre a temática trans. Meu trabalho não é sobre isso, ele passa por
uma série de questões e não necessariamente precisa passar pela questão
trans."
Recentemente, ela também tem reencontrado textos que
escreveu ainda na infância, época em que também ganhou um concurso literário.
As características do que era feito naquela época se contrapõem à liberdade
artística que Tertuliana alcançou. "As personagens eram mulheres
assustadoras, um pouco sombrias. Na época eu tinha uma paixão muito grande
pelas mulheres, mas uma dificuldade muito grande de lidar, porque a sociedade
me colocava nesse lugar, dessa imposição heterossexual", explica ela, que
ressalta que sempre encontra uma história de transformação na literatura
produzida naquela época.
Hoje, os trabalhos de Tertuliana podem ser vistos
principalmente em cordéis e xilogravuras, arte comum à região Nordeste.
"Depois da transição, não fiquei mais tão presa. Não é o cabra macho, mas
é a trava da peste. A reinvenção desses termos também é importante",
conta.
A ideia do "cabra macho, viril e com muitos
filhos", inclusive, é combatida pela professora. Estes e outros termos,
segundo ela, são usados como ferramentas para controle dos corpos. "Essa
tradição nordestina muito fechada, que os grandes centros até têm preconceito
com ela, surgiu com uma catequese. Esses corpos que foram introduzidos aqui
dessa forma, por essa trama colonial, podem virar o jogo. A gente pode virar o
jogo quando desobedece o controle dos nossos corpos", afirma Tertuliana.
A estudante ainda sonha em voltar a viver em Salvador, e
deixa nítido que o objetivo do seu trabalho e de outros artistas contemporâneos
é "repensar a cultura nordestina" e ampliar os conceitos acerca dela.
"É o momento de dizer que a tradição não se resume no controle do corpo e
na catequese, nossa tradição está muito mais além disso", define a sertransneja.
Texto e imagens reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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