O documentarista e editor João Moreira Salles.
Publicado originalmente no site Brasil El País, em 26 de maio de 2018
João Moreira Salles: “A prisão de Lula vai contaminar a
democracia no Brasil nas próximas gerações”
O documentarista João Moreira Salles debate política e
cinema, comparando as imagens de seu último filme
Por Alejandro Romero
Quando terminou seu segundo documentário, João Moreira
Salles (Rio de Janeiro, 1962) decidiu deixar o audiovisual considerando que
tudo já havia sido contado, e fundou a revista de jornalismo literário Piauí.
Sua amizade com o diretor Eduardo Coutinho levou-o de volta às telas do cinema.
Agora, este produtor, documentarista e editor apresenta No Intenso Agora, um
documentário sobre as revoltas do Maio de 68. Na Casa da América, em Madri, o
brasileiro, herdeiro de um dos maiores bancos da América Latina, o Itaú
Unibanco, debate sobre política e cinema, comparando as imagens de 50 anos
atrás com as da atualidade.
Qual é a situação do documentário hoje em dia?
Acredito que a popularização dos smartphones fez um grande
favor ao documentário. Ela permite realizar coisas com orçamento muito baixo e
chegar a muitos lugares graças à Internet. Há coisas que vejo no YouTube que
são profundamente criativas e que mudam a forma de fazer documentários. A
democratização traz consigo uma maior capacidade de produção – e da quantidade surgem
os gênios. Existe também uma mudança nas formas, pois, ao migrar da tela do
cinema para a do celular, já não dependemos da telona e das duas horas de
duração. Agora tudo pode ser feito.
Acredita que plataformas como Netflix tiram a liberdade do
documentário?
O documentário jamais se beneficia com a indústria. É muito
arriscado fazer ficção experimental porque é muito caro e os filmes precisam
ser rentáveis. O documentário é diferente: seu papel é mudar as formas de
narração. Tudo o que acontece como novidade no cinema de ficção quase sempre
foi visto antes no documentário. Não porque sejamos mais originais, inventivos
ou inquietos, mas porque não há ninguém que nos diga: “Faça assim.” Quando isso
se transforma numa encomenda da Netflix e você tem uma responsabilidade em
relação ao público, mata-se algo que é essencial para o documentário: arriscar.
Se você fracassa fazendo Titanic, não fará um filme de novo. Mas se fracassa
fazendo, não sei, No Intenso Agora, não há problema porque é um filme pequeno, sem
importância. O fracasso não é significativo porque não é um fracasso público,
pois ninguém conhece o filme.
O que buscava quando começou a filmar ‘No Intenso Agora’?
Que relação tem com movimentos como Occupy Wall Street e 15-M?
No Intenso Agora não foi feito para pensar a atualidade.
Começou como algo pessoal, com alguns filmes familiares e um diário que minha
mãe tinha feito. Naquele momento, em que ela escreveu e fez essas imagens,
estava muito conectada com a vida, com uma capacidade muito grande de ser
feliz. Eu me interessava sobre como temos essa capacidade e como a perdemos. Ao
pesquisar, muito rapidamente cheguei ao Maio de 68 e, ao ler os diários das
pessoas que vivenciaram as revoltas, encontrei a mesma dinâmica: uma completa
conexão com a vida que se perde quando os protestos acabam. Comecei com o filme
em 2012, antes das grandes manifestações de 2013 no Brasil, quando mais de dois
milhões de pessoas saíram às ruas. Quando me perguntam se meu filme é um
comentário sobre isso, respondo que não. Não queria entender por que as pessoas
saem às ruas, e sim por que deixam de sair. Não por que alguém se torna
militante, e sim por que deixa de ser.
Sente que esses movimentos sociais, como o de 2013 no Brasil
e a “primavera árabe”, serviram para mudar as coisas?
O Maio de 68 não mudou a França de junho, mas sim a dos anos
oitenta. E de maneira profunda. O movimento feminista, a integração, a
liberação sexual, a universidade que se flexibiliza. A sensação de fracasso dos
movimentos sociais é real, mas também é ilusória porque as coisas mudam, só que
muito lentamente. Penso que é a situação que vivemos no Brasil. Nos protestos
de 2013, os que não tinham voz perceberam que podiam falar. Os negros, os
movimentos LGBT, o novo feminismo brasileiro, grupos de favelas que passaram a
se organizar politicamente. Marielle Franco, que foi assassinada recentemente,
era uma expressão maravilhosa disso. De alguém que representa um novo Brasil,
que tem uma vontade política que antes não tinha. Ela entrou na faculdade graças
à política de cotas, e em 2013 se viu no centro de um movimento que foi
essencialmente de empoderamento graças à palavra. Essas pessoas não vão mudar o
Brasil de 2018, mas vão mudar o Brasil de 2025.
Qual é a sua sensação com o momento atual que o Brasil vive?
Acredito que a prisão de Lula foi uma catástrofe política,
mas não se pode confundir isso com uma absolvição do Partido dos Trabalhadores
(PT). O partido precisa fazer uma autocrítica que jamais fez. Se temos hoje
Michel Temer é porque Temer foi o vice-presidente de Dilma. No Brasil existe um
pacto com o atraso. O PMDB sempre esteve no poder e continua lá, mamando nas
tetas do Estado. A partir da investigação da Petrobras, onde havia montado um
esquema de corrupção numa escala que não existia antes, o sistema político
brasileiro ficou contaminado. Hoje temos um sistema morto que não representa
ninguém. Está morto, mas continua de pé. Precisamos destruir isso para
construir algo novo. É por isso que sou muito pessimista em relação ao
presente, mas otimista em relação ao futuro.
Mais concretamente, o que pensa sobre a prisão de Lula?
O encarceramento de Lula é algo que vai contaminar a
democracia brasileira nas próximas gerações. Porque, seja qual for o resultado
das eleições de 2018, ficará sempre o fantasma de que Lula não poderá
disputá-las e, portanto, não poderá ser eleito nem derrotado pelos votos. É
muito delicado. Acho que a questão da culpabilidade de Lula é uma questão à
parte. Há elementos que podem ser discutidos, mas não se pode dizer que não
existem. O próximo presidente estará sempre à sombra da legitimidade, pois terá
ganhado porque Lula não estava na disputa.
Nada está muito claro. Há um descrédito profundo na
política, e a situação está pronta para que alguém de fora do sistema o compre
para trazer ordem e lei. E isso se aproxima muito de um personagem que
conhecemos bem na América Latina: o caudilho. O sujeito autoritário e
antidemocrático. No Brasil, há uma cadeira preparada para ser ocupada por
alguém dessas características. Em 2019 podemos ter como presidente alguém que
seja, se não fascista, protofascista.
O que a imprensa pode fazer para combater situações como
essa?
Acho que a imprensa tem um papel essencial, mas infelizmente
com armas que são muito pouco apropriadas para o momento. É como a cavalaria
polonesa na Primeira Guerra Mundial, que enfrentava os tanques alemães a
cavalo. As armas que temos são pouco poderosas para enfrentar as redes sociais
e as fake news. Acredito cada vez mais na figura do gate keeper, das grandes
organizações nas quais podemos confiar. A boa imprensa tem que ser uma
instituição conservadora. O rigor precisa de instituições.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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