quinta-feira, 10 de maio de 2018

De viúva endividada a chef de cozinha...



Odete entrega uma pombinha feita de massa de pão a cada um dos 
clientes que vai embora de seu restaurante.

Publicado originalmente no site Huff Post Brasil, em 10 de maio de 2018

De viúva endividada a chef de cozinha: A persistência de Odete Bettú Lazzari

Ela é dona da cozinha do Osteria della Colombina, na Serra Gaúcha; um restaurante criado com obstinação e comandado apenas por mulheres. "Fiz esse lugar com as minhas mãos", conta.

By Ryot Studio e Cubocc 

Quando se despede e entrega a cada dos clientes de seu restaurante uma pequena pomba feita de pão, a cozinheira Odete Bettú Lazzari, de 68 anos, os presenteia com um pouco de sua história. Cada colombina fala de trabalho, persistência, carinho e orgulho. Como tudo que é servido na Osteria, a receita é de família: dona Maria de Lourdes, mãe de Odete, as moldava à mão cada vez que preparava uma fornada de pão, e dava às crianças. Ganham olhos de semente de uva, e depois de assadas recebem embalagens individuais que remetem às caixas de fósforo que o pai de Odete colecionava.

É assim em cada canto da Osteria della Colombina, no município de Garibaldi, na serra gaúcha, a 120 km de Porto Alegre. Tudo ali, seja de comer ou de olhar, remete à história da família de agricultores descendente de imigrantes italianos. Uma narrativa plena de orgulho, mas também de sofrimento: o restaurante só existe porque Odete ficou viúva de forma repentina, aos 47 anos. Perdeu o marido, Danilo, 21 anos atrás, para um infarto fulminante, e ficou com as quatro filhas, 13 hectares de terra e algumas dívidas. "Faltou chão, faltou tudo, mas tive de respirar fundo. Me obriguei a não ficar lamentando", lembra em entrevista ao HuffPost Brasil.

Você é uma visita no restaurante. Fica quanto tempo quiser, e só vai embora quando cansa.

Odete foi compelida a arrendar parte da propriedade e vender as vacas de leite que possuía. As duas filhas mais velhas trancaram a faculdade. "As pessoas sabiam da minha situação, vinham e botavam preço nas minhas coisas. Depois de dois anos de arrendamento das parreiras, ainda não conseguia me manter", conta. Mas foi quando no Natal de 1998 que Odete escutou no rádio um chamado que mudou sua vida: um anúncio para famílias da região aderirem a um projeto de turismo rural. "Me interessei na hora. Era minha chance", lembra.

Engajou-se então em uma série de cursos nas áreas de gastronomia, hospitalidade e gestão (era o início do projeto que transformaria a região do Vale dos Vinhedos em roteiro famoso em todo o Brasil). Junto com as filhas Rosângela, Roselaine, Raquel e Raísa, participou de todas as feiras e eventos que pôde, oferecendo os produtos feitos em casa.

"Ela era uma das mais engajadas desde o começo. Era uma mulher sozinha com as quatro filhas, e precisava que aquilo desse certo para poder continuar na terra", conta Ivane Fávero, então assessora da Secretaria de Turismo local, que acompanhou desde o começo a trajetória das Bettú Lazzari. "Passei muitos dias em pé, falando sem parar", lembra Odete, hoje com 68 anos. Durante dois anos, ela investiu muita energia e o pouco dinheiro que tinha, sem ter lucro nenhum. No final de 2001, recebeu seu primeiro pagamento por um almoço - servido com toalha e louça emprestados. Lembra até hoje: "Era um professor universitário alemão, que veio aqui com a esposa. Voltou várias vezes".

Poderia ter vendido a propriedade e ter tido uma vida medíocre. Mas eu fiz esse lugar lindo com as minhas mãos. Não me passou pela cabeça vender.

Mas o negócio ainda carecia de capital de giro. Odete percorreu todos os bancos da cidade em busca de financiamento, em vão. "Fiquei uns cinco anos comendo prego, sem conseguir dinheiro. Quem pagava a luz era a Raquel". Ivane acompanhou essas visitas e foi testemunha das dificuldades: "exigiam sempre mais algum documento, mais alguma garantia". Para Odete, a explicação é simples: "não emprestavam porque eu sou mulher". Além disso, quase 20 anos atrás, o turismo era uma atividade incipiente na região, e portanto, um negócio de risco. O remédio foi obstinação. "Eu segui trabalhando, fazendo sempre melhor, sempre aprendendo. Eu sabia que estava no caminho certo pela reação das pessoas, mas não podia vacilar."

Apesar do sucesso da comida desde a primeira refeição, a situação financeira só se tornou confortável cerca de quatro anos depois. E somente em 2010 a família adquiriu o primeiro carro - até então, as compras eram transportadas de ônibus, e carregadas 300 metros lomba acima entre o ponto e a casa. "Às vezes tinha que deixar as sacolas escondidas e fazer duas viagens para trazer tudo", lembra a caçula Raisa.

Eu me pergunto hoje como é que eu fui acreditar, com tanto não na minha frente.

Hoje, o endereço disputado por turistas, que só atende mediante reserva, é uma referência na gastronomia da serra gaúcha. Raísa faz a administração do negócio, Rosângela cuida do cultivo orgânico de alimentos, e Roselaine e Raquel, que trabalham na cidade, ajudam no serviço dos finais de semana - junto com os maridos, que fazem as vezes de garçons. O restaurante funciona no porão da casa da família, com chão batido, paredes de pedra e repleto de retratos e antiguidades do acervo da família.

A comida que Odete serve na Osteria della Colombina é autêntica dos colonos italianos. São receitas que, na casa dos Bettú, só eram preparadas em datas especiais: a sopa de capeletti "que só se comia duas vezes por ano, no Natal e na Páscoa"; a carne assada com legumes e especiarias "dos dias de festa"; a abobrinha recheada que "só quando chegava visita de longe ou autoridade"; o nhoque com molho de tomate e salaminho "que me fazia lamber o prato". De novidade, só o sorvete caseiro à base de ovos, leite condensado e limão siciliano que é a estrela entre as sobremesas. Além de salame, queijos, pães e compotas caseiras - 75% da matéria-prima na cozinha da Osteria é colhida na propriedade da família.

Todo dia alguém acaba se emocionando a valer aqui dentro. Não é só comida, é uma experiência.

Em abril, Rosângela precisou ir ao banco tratar de uma linha de crédito, e faltou um documento. O tratamento foi bem diferente de 15 anos atrás: "Não te preocupa, a gente conhece vocês da televisão". A ida da filha ao banco foi necessária porque Odete estava fora do País. Foi a primeira visita à Itália, terra de seus avós, em uma viagem de intercâmbio do movimento slow food. E as colombinas voaram junto. Odete moldou, assou, embalou e presenteou 30 pombinhas, iguaizinhas às da dona Maria de Lourdes.

Ficha Técnica #TodoDiaDelas
Texto: Isabel Marchezan
Imagem: Caroline Bicocchi
Edição: Andréa Martinelli
Figurino: C&A
Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC

Texto e imagens reproduzidos do site: huffpostbrasil.com

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