Publicado originalmente no site da Livraria Cultura
Quarta revolução industrial: Os robôs cairão no samba com a
gente?
Por Viviane Vaz
Se você nasceu no século passado, deve ter assistido ou
tomado conhecimento do desenho animado Jetsons, de Hanna-Barbera. A empregada
doméstica Rosie era um robô e vários outros modelos falantes e dotados de
personalidade faziam parte, em 2062, da vida cotidiana da família que dá nome à
animação. Carros-naves voavam, skates superavam a força da gravidade, trens
aéreos eram autoconduzidos. Uma cozinha completamente automatizada servia a
comida em segundos. Falava-se à distância por meio de telas que permitiam ver o
interlocutor. Uma realidade que parecia tão distante dos anos 1970! Mas já
estamos lá – ou quase lá! E esse futuro tem nome: quarta revolução industrial,
revolução 4.0 ou 4RI. “Estamos a bordo de uma revolução tecnológica que
transformará fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos
relacionamos”, diz Klaus Schwab, diretor do Fórum Econômico Mundial (FEM) e
autor do livro A quarta revolução industrial (Editora Edipro), lançado no ano
passado.
A economia viveu três processos anteriores que mudaram nosso
modo de produzir e de viver. Quando a primeira revolução industrial surge na
Inglaterra, entre 1780 e 1830, o advento de máquinas movidas a vapor originado
da queima do carvão permite que a produção manual passe a ser mecanizada. A
segunda revolução aparece na segunda metade do século 19, com a invenção da
energia elétrica, do telégrafo, com o uso do petróleo, do motor à explosão, da
produção em série e em massa. A terceira ocorre em meados do século 20, com as
telecomunicações, os computadores eletrônicos, a internet e a digitalização de
dados. O Banco Mundial também chama a terceira revolução industrial de
revolução da informação. Na definição da entidade, a 4RI também poderia ser
chamada de segunda revolução da informação.
Schwab defende que as transformações atuais não representam
uma extensão da terceira revolução industrial por três grandes razões: a
velocidade, o alcance e o impacto. “A velocidade dos avanços atuais não tem
precedentes na história e está interferindo em quase todas as indústrias de
todos os países”, afirma. Não é por acaso que um dos primeiros livros sobre
essa nova era tenha sido escrito por um economista alemão. O termo “indústria
4.0” foi utilizado pela primeira vez na Alemanha em outubro de 2012, pelo
engenheiro Henning Kagermann e pelo físico Siegfried Dais na feira de
tecnologia Hannover Messe. Eles apresentaram um conjunto de recomendações para
implementação da indústria 4.0 ao governo federal da chanceler Angela Merkel,
que colocou o tema na lista de prioridades do país. Merkel, inclusive, chamou a
atenção dos governos presentes no Fórum Econômico realizado em Davos em 2015 a
“lidar rapidamente com a fusão do mundo on-line e do mundo da produção
industrial”.
O advogado australiano Nicholas Davis é quem lida diariamente
com esse tema complexo no FEM, em Genebra, como chefe do setor de sociedade e
inovação. Em entrevista por telefone, ele observa que cada “nova” revolução
industrial é formada graças aos avanços das anteriores. “Hoje, a quarta
revolução significa a convergência das tecnologias físicas, digitais e
biológicas, todas construídas nos sistemas digitais”, resume.
IOT – O FUTURO DAS FÁBRICAS
Nesta quarta revolução, a ideia é que as fábricas funcionem
em estruturas modulares, com sistemas ciberfísicos que monitoram os processos
físicos, criam uma cópia virtual do mundo real e tomam decisões
descentralizadas. Com a internet das coisas (“internet of things”, ou IoT, em
inglês), os objetos se comunicam e cooperam entre si e com os humanos em tempo
real, por meio da computação em nuvem.
Mas o que, afinal, é essa tal de internet das coisas? O
programador norte-americano Bob Rankin simplifica em seu bem-humorado blog que
são coisas que não deveriam estar conectadas à internet, mas receberam um nome
e um endereço IP. “Na pressa para conectar cada partícula de matéria na Terra à
internet, nós realmente precisamos parar e considerar todas as coisas que não
deveriam ser conectadas,” defende ele, que se mostra cético quanto à aplicação
da IoT em objetos de uso pessoal, como uma escova de dentes “inteligente”, a
qual foi lançada no ano passado e permite filmar os movimentos da escovação e
iluminar a arcada dentária sob até 12 cores. Os dados são enviados a um
aplicativo que possibilita analisar se houve uma escovação de dentes correta.
“Não, obrigado, internet. Fique fora do meu banheiro”, brinca Rankin.
Na indústria 4.0, porém, é a internet das coisas que permite
colocar em prática o conceito de fábrica inteligente, automatizada, que
dispensa a mão de obra humana. No Brasil, o italiano Fabio Bottacci trabalha
como consultor independente especialista em IoT. Ele confessa que pouca gente
entende seu trabalho. “Temos de fazer palestras, reuniões... Tem muito hype,
mas na verdade poucos sabem o que é essa inovação”, diz.
Bottacci traduz a IoT na indústria como um “monte de
sensores” espalhados em uma linha de produção ou montagem e que, em tempo real,
adquirem dados para análise. A informação pode ser enviada via internet para
uma “nuvem” de dados e ser avaliada em um computador do escritório ou pode ser
analisada imediatamente por um minicomputador instalado na peça em questão.
Pode servir, por exemplo, para avisar ao sistema que um determinado objeto da
fábrica está a ponto de quebrar e para conduzir medidas preventivas. “Vira
praticamente um guardião da produtividade sem precisar de intervenções
externas. E os eventos são previstos com semanas de antecedência. Dessa forma,
você otimiza a manutenção com a produção.”
O consultor avalia que não necessariamente as economias emergentes
deverão ficar de fora da corrida à 4RI e podem até saltar etapas. “Como no caso
da telefonia na África. Eles nunca tiveram a fixa e pularam diretamente para a
3G/4G. O custo de aplicar uma IoT está ficando tão acessível que a grande
diferença serão os algoritmos e a inteligência artificial aplicados a esse
monte de dados”, prevê.
RESPONSABILIDADE
Davis reconhece que o Fórum Econômico Mundial tem grande
responsabilidade em moldar “o que queremos parecer no futuro”, assim como o
consumidor em casa. “Essas coisas não são determinadas com antecedência e
dependem da escolha de famílias, consumidores individuais e líderes
governamentais que decidem sobre os regulamentos”, explica.
Segundo o australiano, as pessoas tendem a olhar para a
tecnologia de duas maneiras extremas: uma parte pensa que ela está
completamente fora do nosso controle e “aparece feito mágica” em algum lugar
como o Vale do Silício. Para esse grupo, a única resposta possível seria
adaptar-se e aceitar que nosso destino é determinado pela tecnologia. Um
segundo grupo pensa que ela é apenas uma ferramenta, sem valor em si, que
funciona como um martelo que podemos usar ou não.
“Nenhuma dessas correntes de pensamento é muito útil”,
considera Davis. “Por um lado, a tecnologia não é mágica, não vem de todos os
lugares e as pessoas têm diferentes quantidades de poder em termos de como ela
é criada. Por outro, a tecnologia pode, sim, exercer poder sobre nós. A
tecnologia nos afeta e a nossos filhos, as gerações futuras e as pessoas em
outros países que não a projetaram. Então, precisamos assumir a
responsabilidade, porque o valor dela tem poder e influência ao longo do
tempo”, defende.
CLASSE MÉDIA DESEMPREGADA
O que difere essa revolução das outras? Nas três revoluções
industriais anteriores, os avanços tecnológicos substituíram o homem
principalmente nos trabalhos físicos, que exigiam mecânica e força. Em seu
best-seller Homo Deus (Companhia das Letras), o escritor israelense Yuval
Harari observa que esta é a primeira vez na história da humanidade em que as
máquinas estão adquirindo capacidades cognitivas, tipicamente humanas. E, a
partir desse cenário, sua preocupação, como demonstrou em uma entrevista ao
escritor norte-americano Sam Harris, é que “não sabemos onde certo grupo de
pessoas irá trabalhar. As pessoas costumam dizer que novos empregos vão surgir
para substituir os antigos, tal como aconteceu em ondas anteriores de automação.
Acho que não podemos ter tanta certeza”, opina.
Para o autor, o perigo é que a automação e a ascensão da
inteligência artificial criem “a sociedade mais desigual” que já existiu,
porque mais e mais pessoas serão afastadas do mercado de trabalho para se
juntarem a uma nova classe: a inútil. “O problema crucial não é criar novos
empregos. O problema é a criação de novos empregos em que os humanos apresentem
melhor desempenho do que os algoritmos”, afirma em artigo publicado no jornal
britânico The Guardian. Harari aceita que novas profissões aparecerão, como a
de designers de realidade virtual. “Mas essas profissões provavelmente exigirão
mais criatividade e flexibilidade, e não está claro se os motoristas de táxi ou
agentes de seguros desempregados poderão se reinventar como designers do mundo
virtual”, diz. “Não vejo nenhuma maneira na qual um caixa de supermercado se
tornará um engenheiro do Vale do Silício”, alerta.
No Brasil, a antropóloga Elizete Ignácio considera que ainda
é cedo para uma interpretação pessimista. “As pessoas estão buscando caminhos.
Todos esses processos de transformação de modelos produtivos excluíram pessoas.
O exemplo do agricultor que perdia o emprego para a mecanização das lavouras e
tinha tempo de chegar à cidade e buscar um novo emprego foi mais uma questão de
adaptação individual do que de políticas públicas que deveriam ter sido
pensadas para ajudar essas pessoas a se recolocarem”, avalia. “Havia aquelas
pessoas que conseguiam se recolocar, mas também havia um índice crescente de
violência urbana, aumento de pobreza e degradação social.”
PREVISÕES
Os números não são alentadores. A consultora CB Insights
garante que a automação e a robótica colocarão mais de 10 milhões de empregos
em risco nos próximos cinco a dez anos. Um relatório do FEM publicado em
janeiro de 2016 indica que, em cinco anos, cerca de 7,1 milhões de empregos
podem ser perdidos. A consultoria Ernst & Young estima para sete anos o
tempo em que um a cada três trabalhadores será substituído pela automação. Um estudo
da Universidade de Oxford vai além e prevê que 47% dos empregos que hoje
conhecemos estão condenados a desaparecer em 25 anos.
No mundo do marketing, o irlandês Paddy Cosgrave, cofundador
da Web Summit (uma conferência de tecnologia), aposta no trabalho das máquinas.
No ano passado, meses antes de seu megaevento para cerca de 50 mil pessoas, ele
gabara-se pelo Facebook de não usar uma equipe de marketing, mas de engenharia.
“Apenas um marqueteiro em todas as plataformas, observando as máquinas que construímos
e, às vezes, dando sugestões para campanhas”, disse em post publicado em
fevereiro de 2016. “A idade do marketing está chegando ao fim. A mente humana
simplesmente não é construída para identificar e otimizar o tipo de escala,
velocidade e sofisticação”, declarou. “Na Web Summit, acreditamos firmemente
que formas específicas de inteligência artificial são mais capazes do que
centenas de seres humanos em descobrir os tipos de anúncios de alta qualidade
que as pessoas realmente querem ver”, defendeu.
No Brasil, o publicitário Luiz Buono aposta em um caminho
inverso. “Estamos falando de gente. Os profissionais de marketing precisam
olhar para as pessoas. Os algoritmos ajudarão em muito nossa tomada de
decisões, mas não conseguirão substituir nosso olhar atento e sensível”,
afirma, antes de ressaltar que as empresas terão de buscar mais coerência entre
“suas crenças e o que vendem”. “Não adianta utilizarmos estratégias invasoras,
que acabam por irritar as pessoas. Estamos num novo momento, as pessoas estão
olhando quem são as marcas, o que elas estão trazendo de bom ao mundo”,
explica.
O advogado belga Etienne Wery, especialista em Direito e
internet, observa que a automação e a inteligência artificial também avançam.
“Começamos a perceber um mecanismo de substituição do know how: por que pagar
200 euros para um advogado por um contrato de aluguel disponível em um
smartphone por 20 euros? E estamos apenas no início”, avisa.
Ele admite que muitos advogados ficarão sem trabalho e se
adaptar aos novos tempos não será fácil. Para ser bem-sucedido nessa
transformação, é necessário rever sua proposição de valor único. “Cada
advogado-empresário deve assumir o controle de seu destino e repensar sua
singularidade: por que um cliente viria até mim em vez de outro? Qual é o meu
modelo? Como posso testar o meu projeto (pontos fortes, fracos)?”, aconselha.
OS “CS” DO FUTURO
Nos Estados Unidos, o Departamento de Estatísticas do
Trabalho preparou um informe com previsões para os próximos dez anos, assumindo
que o desemprego deve aumentar na indústria com a crescente automação do
trabalho. Segundo o estudo, as oportunidades de emprego devem aumentar nos
setores apelidados de “3 Cs”: computadores, cuidados (care) e energia limpa
(clean energy). O setor de assistência a idosos e serviços domésticos deve
crescer e criar 1,1 milhão de postos de trabalho. Instaladores de painéis
solares e técnicos de turbinas eólicas são empregos que deverão duplicar em
2026, assim como os de matemáticos e estatísticos.
No mesmo sentido, um relatório do FEM indica que as maiores
perdas serão cargos de escritório e administrativos, que podem ser compensados
pela criação de 2,1 milhões de empregos em computação, matemática e engenharia.
Nicholas confessa que a preocupação é encontrar respostas para os trabalhadores
com “menos habilidades”. Ele espera que essas pessoas consigam migrar para
outros setores, como o de assistência aos idosos. No Brasil, ele cita como
estudo de caso alguns projetos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, envolvendo parcerias
do Estado, centros técnicos e empreendimentos privados, para reorientar e
empregar pessoas nos setores de turismo, serviços e agricultura familiar.
O futuro da educação também envolve outros Cs. O português
Marco Neves, professor de computação, é um dos embaixadores do Scientix, um
projeto da União Europeia para incentivar a ciência e a inovação. “Como o
futuro é uma grande incógnita, tentamos passar aos alunos um conjunto de
competências que não são simples, pois são abstratas. Aqui na Europa falamos
dos chamados 4 Cs das competências do século 21: colaboração, comunicação,
critical thinking (pensamento crítico) e criatividade. E normalmente costumo
acrescentar um C: o da curiosidade”, explica. “Temos de estar preparados para
sermos estudantes por toda a vida.”
O professor também alerta que “a tecnologia em si não é cura
nenhuma” para resolver os problemas e desafios da educação. “Apenas investir em
tecnologia, dar um smartphone, iPad ou um robô para uma criança não vai mudar
nada. Isso seria uma desresponsabilização da escola e dos pais”, avisa.
PREOCUPAÇÃO GLOBAL, RESPOSTA LOCAL
Elizete Ignácio defende que a cultura terá um papel
fundamental para definir como cada região e cada país vão se apropriar dessa
nova revolução industrial. “A globalização não trouxe a homogeneização total de
hábitos culturais”, afirma. Para obter respostas locais, será preciso dar
“diversidade cultural” aos processos de automação e criação de inteligência
artificial. “Estamos transferindo para essas inteligências artificiais o que
somos na vida real. Quanto mais conseguirmos dar diversidade a elas, melhores
resultados teremos”, sugere. “Sou otimista. Cada revolução industrial trouxe
melhorias de qualidade de vida em relação ao passado e aumentou a expectativa
de vida. Agora depende de nós, seres humanos, descobrir onde a gente quer
chegar e como a gente quer chegar.”
Texto e imagens do site: livrariacultura.com.br
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