A família de Chaplin durante funeral privado
Imagem do túmulo de Charles Chaplin (no cemitério de
Corsier-sur-Vevey, Suíça), profanado em 1978
A paródia de Adolf Hitler que Chaplin imortalizou em
'O
Grande Ditador' ficou quase tão famosa quanto o próprio ditador alemão
Publicado originalmente no site do El País Brasil, em 17 de março de 2018
Quem roubou o cadáver de Chaplin e onde ele está agora
O artista protagonizou uma história que poderia ter sido
escrita por ele mesmo, mas foi real
Por Juan Sanguino
Poderia ser uma cena de um filme de terror B, mas ocorreu há
40 anos, na madrugada de 1.º de março de 1978, no cemitério de
Corsier-sur-Vevey (Suíça). Depois de horas de buscas na escuridão sob a chuva
(que caía na horizontal pelas fortes rajadas de vento), os dois homens
encontraram o que queriam: uma lápide branca que se destacava entre as mais de
400 anônimas com a seguinte inscrição: “Charles Chaplin 1889 - 1977”.
Em seguida, os dois homens passaram duas horas cavando a
terra ainda fresca (Chaplin tinha sido enterrado em 27 de dezembro de 1977,
dois dias depois de sua morte), carregaram o caixão em sua caminhonete e
fugiram sem nem mesmo se preocupar em tapar o buraco. Os profanadores deixaram
o monte de terra ao lado do buraco para que a polícia o descobrisse na manhã
seguinte. Essa invasão dos ladrões de corpo acabaria se transformando primeiro
em um thriller, depois em uma comédia.
Durante dez semanas, a polícia suíça e a Interpol
praticamente não encontraram pistas além de telefonemas anônimos nos quais
alguns brincalhões diziam estar com o caixão.
Algumas dessas ligações impostoras iam mais longe e
ameaçavam as vidas dos filhos de Charles Chaplin. Uma de seus filhos (ele teve
nada menos que 11), Eugene, recorda que ninguém ria naquela casa porque alguns
meses antes um político italiano, Aldo Moro, tinha sido sequestrado e
assassinado: “O ambiente era horrível, todo mundo estava muito nervoso. Os
terroristas que mataram Moro também tinham assassinado seu motorista, de modo
que nosso motorista suava como louco. Foi um acontecimento terrível,
principalmente em um país como a Suíça, onde as coisas sempre são muito
tranquilas”.
O país mais neutro da Europa viu sua aprazível existência
sacudida por um crime tão macabro que, durante essas dez semanas sem notícias,
o mundo quis encontrar um sentido perverso, místico ou político ao que havia
ocorrido. Porque isso das fake news não é uma invenção do século XXI.
Falou-se de que o roubo tinha sido perpetrado por
antissemitas, contrários a que o corpo de Chaplin (que, segundo alguns rumores
da época, era judeu) repousasse em um cemitério anglicano. Outros diziam que os
autores eram nazistas enfurecidos pela paródia de Adolf Hitler que Chaplin
imortalizou no filme O Grande Ditador, que se tornou quase tão famosa quanto o
próprio ditador alemão. Também circulou a teoria de que uns admiradores do
artista tinham exumado o cadáver para sepultá-lo na Inglaterra, seu país de
origem.
Mas a realidade, por uma vez, não superou a ficção, e a
resolução do crime acabou sendo muito mais vulgar, mundana e delirante do que
qualquer fascinante teoria da conspiração. Os autores do roubo eram dois
ladrões baratos, tão inexperientes e desesperados que primeiro pediram um
resgate e depois começaram a negociar o valor.
Os ladrões soavam nervosos e disfarçavam a voz cada vez que
telefonavam para a residência dos Chaplin (um castelo na área de Lausanne,
perto do cemitério) e propunham ao mordomo, um homem inabalável chamado
Giuliano Canese, um preço distinto em troca do caixão.
Primeiro pediram 600.000 francos suíços (pouco mais de 2
milhões de reais). A viúva de Charles Chaplin, Oona (com quem teve oito filhos,
ela era filha do dramaturgo americano Eugene O’Neill), negou-se a ceder e declarou
que seu marido “teria considerado ridícula toda esta situação”. Aí os
sequestradores experimentaram mudar de moeda, vai que o problema fosse a
divisa, e pediram 600.000 dólares americanos (pouco menos de 2 milhões de
reais).
A resposta continuava sendo negativa. E que tal 500.000
dólares? Nada. A matriarca dos Chaplin ficou irredutível até eles baixarem o
valor para 100.000 dólares (328.000 reais), aí aceitou, mas só como parte de
uma armadilha para que a polícia os capturasse. Ela nunca teve a menor intenção
de lhes dar nenhum centavo. Ficou combinado que o mordomo da família entregaria
pessoalmente aos criminosos uma maleta com os 100.000 dólares exigidos. Um
policial suíço se fez passar pelo mordomo e dirigiu o Rolls Royce em direção ao
lugar da entrega, mas a má sorte foi tanta que o carteiro local, ao ver um
homem desconhecido dirigindo o automóvel dos Chaplin, começou a segui-lo. A
polícia deteve o carteiro por engano e a missão foi abortada.
Mas os ladrões não se rendiam e informaram, com assombrosa
precisão, que telefonariam novamente para a residência dos Chaplin para
renegociar o resgate em 17 de maio às 9h30. A polícia lançou uma operação de
vigilância sobre mais de 200 cabines telefônicas de Lausanne e assim conseguiu
deter Roman Wardos, um polonês de 24 anos, e depois seu cúmplice Gantscho
Ganev, um búlgaro de 38.
Esses dois mecânicos confessaram que, pressionados por sua
precária situação econômica, tinham começado a pensar em cometer um crime que
resolvesse seus problemas sem usar a violência. E um dia, quando estavam lendo
o jornal, viram a notícia de que alguém tinha roubado um cadáver na Itália e
havia pedido um resgate para devolvê-lo. Então tiveram a ideia: roubariam o
cadáver de Chaplin. Onde qualquer outra pessoa veria um plano arrepiante,
Wardos e Ganev viram uma oportunidade de encher os bolsos de dinheiro.
Wardos, o cérebro (para dizer de alguma forma) da operação,
foi condenado a quatro anos e meio de trabalhos forçados e Ganev, a 18 meses.
Ambos enviaram uma carta de desculpas a Oona Chaplin, que os perdoou sem
titubear. E quando a mulher de um deles (“do mais simpático”, como recorda
Eugene Chaplin) também escreveu uma carta desculpando-se, a viúva respondeu:
“Olhe, já os perdoei”.
Os astros de Hollywood, os gênios da arte e os ícones
culturais (e Charles Chaplin era as três coisas de uma vez) nunca deixam de
gerar histórias sobre sua vida, nem mesmo depois de sua morte. No entanto,
Chaplin é o único que, literalmente, protagonizou um espetáculo depois de
morto. Um história que podia perfeitamente ter sido escrita por ele mesmo: o
perigo absurdo, a comédia que nasce da amargura, a pobreza que leva suas
vítimas a cometer disparates miseráveis e, acima de tudo, a reescrita dos
valores culturais: a típica frase “descanse em paz” se transformou, neste caso,
em uma comédia absurda.
Tanto que, há quatro anos o francês Xavier Beauvois dirigiu
O Preço da Fama, uma comédia que conta esse caso com as ferramentas que o
próprio Chaplin teria utilizado: humor físico durante a profanação,
protagonistas vagabundos com tendência a se meter em confusões e mal-entendidos
desconcertantes quando os sequestradores perceberam que dezenas de anônimos
estavam telefonando para a família Chaplin para pedir resgate. Como ocorria
sempre com o mítico alter ego de Carlitos, o Vagabundo, os desventurados não
serviam nem para o crime. Eugene Chaplin apareceu no filme interpretando o dono
de um circo: “Fizemos esta comédia para que o mundo conhecesse a maluquice que
foi aquela história”.
Mas não se levantem de suas cadeiras ainda, porque ainda
falta a resolução final: onde, afinal, estava o cadáver? Os ladrões só
recordavam que o haviam enterrado “em um campo de milho”. A chuva tinha feito
com que as plantas crescessem profusamente e, depois de vários dias de busca, a
polícia o encontrou em uma plantação de trigo a um quilômetro da mansão dos
Chaplin.
Uma paisagem tão bonita que a própria viúva exclamou que, de
certa forma, era uma pena retirá-lo dali. Mas ele foi retirado. Preferiram
sepultá-lo em seu túmulo original e cobri-lo com concreto, como um féretro
maldito, em vez de terra.
O agricultor, por sua parte, ficou furioso com o sacrilégio
perpetrado em seu terreno, mas depois acabou instalando nele uma placa
comemorativa: “Aqui descansou Charles Chaplin. Brevemente”.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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