Nem da Rocinha Nem após ser preso no Rio de Janeiro, em 2011.
A/A BEATRIZ REUTERS
Publicado originalmente do site El País Brasil, em 14 MAR 2018
Nem da Rocinha: “Não me arrependo de ter sido traficante. O
que você faria no meu lugar?”
Exclusivo: ex-chefe do tráfico na Rocinha fala com o EL PAÍS
no presídio de Porto Velho.
Para ele, a intervenção no Rio é mais do mesmo. “Quer o fim
do tráfico? Legalize as drogas”
Por Gil Alessi, de Porto Velho.
“Peão E2 para E4”, grita Antônio Bonfim Lopes, 41 anos, de
dentro da sua cela de 7 metros quadrados na penitenciária federal de Porto
Velho, em Rondônia, enquanto move uma peça de papel sobre um tabuleiro feito à
mão. O termômetro bate os 30º C e o dia está extremamente úmido, obrigando-o a
enxugar as mãos constantemente. Segundos depois a resposta ecoa do outro lado do
corredor: “Cavalo B8 para C6”. Assim, jogando xadrez à distância com outro
preso como se fosse batalha naval, o ex-traficante mais conhecido como Nem da
Rocinha passa boa parte de seus dias na moderna prisão de segurança máxima
construída em meio à selva amazônica. Em um duro regime disciplinar que inclui
22 horas por dia dentro de uma cela individual sem TV e apenas duas horas de
banho de sol, ele explica que matar o tempo – “e os mosquitos” – é fundamental.
A reportagem do EL PAÍS visitou o ex-traficante no início de março na
penitenciária onde ele cumpre penas que somam mais de 96 anos por tráfico de
drogas, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.
Uma das principais lideranças da facção criminosa Amigos dos
Amigos, Nem foi coroado dono da Rocinha em 2004 após a morte do dono do morro
Luciano Barbosa da Silva, vulgo Lulu. Seu reinado durou até a prisão, em 2011,
e é tido pelos moradores e até por alguns policiais como um período de relativa
tranquilidade no local. Usando a corrupção em detrimento da violência para se
manter no controle, aos poucos Nem se tornou um dos traficantes mais populares
da comunidade. "Até hoje perguntam pra minha mãe quando eu volto pra
lá!", brinca. "Como se no dia em que eu sair da prisão eu voltarei
pro tráfico". A hipótese é prontamente descartada. "Não quero mais
nada com isso, quero ficar com meus filhos, poder ir pra praia, pro teatro,
aproveitar a vida". Apesar de já condenado, Nem vislumbra um futuro
próximo ao lado dos sete filhos.
Ele traduz sua filosofia de pacificação da favela com uma
frase simples: “Eu sempre perguntei pro meu pessoal: o que tu quer? Trocar tiro
com polícia ou curtir o baile na Rocinha? Porque se quiser trocar tiro não tem
baile, a polícia vem pra cima e fecha tudo. Claro que eles sempre preferiram o
baile”. A estratégia adotada por ele, de manter o nível de crimes violentos o
mais baixo possível de forma a deixar a polícia (e a mídia) longe fez da
Rocinha uma das favelas mais lucrativas do Rio de Janeiro para o tráfico,
movimentando em torno de 15 milhões de reais por mês. Questionado sobre o atual
momento da comunidade, com diferentes grupos disputando o poder e trocas de
tiro frequentes, Nem mostra irritação. "Isso pra mim é uma grande traição.
Saber que agora tem moleque andando com fuzil na Rocinha e que tem traficante
extorquindo o morador, nada disso existia quando eu estava lá", diz, em
uma referência velada ao ex-guarda-costas e agora rival Rogério Avelino Santos,
vulgo Rogério 157, preso em dezembro 2017.
A história de Nem – e da Rocinha – poderia ter sido
diferente não fosse a ação de policiais corruptos. Com a morte de Lulu, em
2004, ele vislumbra uma saída do crime. “Eu cheguei a efetivamente sair do
tráfico quando o Lulu morreu. Eu disse ‘bom, não tenho mais porque continuar
nessa vida, já paguei minha dívida’. E saí. Eu tinha um carro que ia usar para
trabalhar como taxista, esse era o meu plano, ia deixar toda essa vida pra
trás”, afirma. Mas no Brasil as coisas não são tão simples assim. De acordo com
ele, setores da polícia não viram com bons olhos sua saída: Nem era garantia de
estabilidade na Rocinha e propinas vultuosas para os agentes corruptos. “Minha
mãe foi ameaçada pela polícia. Foram até a casa dela. ‘Ou você volta [para o
tráfico] ou vai acabar mal pra ela’, eles me disseram. Não tive opção, precisei
reassumir as coisas”, conta. “Minha vida daria um filme”.
De dentro de sua cela abafada o ex-traficante ficou sabendo
com atraso e sem muita surpresa da intervenção federal no Rio de Janeiro. “Não
acho que vá dar em nada. Os problemas do Rio não se resolvem com Exército ou
polícia”, diz. De acordo com ele, tropas federais já ocuparam parcialmente a
Rocinha por duas vezes durante sua gestão na favela, sem nenhum resultado
concreto. “Você acha que não tem corrupção no Exército? Eu me lembro que alguns
militares falavam pros nossos soldados: ‘poxa, não fica com fuzil na rua não,
esconde isso porque depois a gente leva bronca do sargento”, diverte-se. Para
Nem a intervenção é “mais do mesmo”, apenas outra ação com “finalidade eleitoreira”.
Ao falar sobre a violência do Rio, Nem fica em silêncio por
um momento. Em seguida, dispara: “Você acha que os políticos não sabem como
resolver o problema da violência?”. Em instantes responde à própria pergunta.
“O problema é que eles sabem que não serão reeleitos se fizerem isso. Sabem que
isso exige um investimento em educação e políticas sociais que não têm retorno
na urna, no curto prazo, mas que é algo para o médio prazo, para daqui a dez ou
15 anos. A preocupação maior é o mandato, não é resolver nada”, desabafa. Para
Nem, políticos de olho no voto apostam no velho discurso de enfrentamento, “de
botar polícia na rua e endurecer penas”. “Mas está mais que provado que nada
disso dá resultado. Nada disso funcionou até agora”.
“Você acha que os políticos não sabem como resolver o
problema da violência?”
Então qual seria a solução? A posição de Nem da Rocinha é
pouco ortodoxa para alguém cujo negócio dependia justamente de um comércio
ilegal: “Além de investir em educação, se você quer acabar com o tráfico você
precisa legalizar as drogas. Quer tirar todo o poder do traficante? É só
legalizar”, afirma, com uma ressalva. “Não adianta só legalizar. É preciso
falar sobre isso nas escolas. Ensinar desde cedo o que é a droga. Não adianta
falar apenas ‘droga é ruim’, ‘ não usa’. O jovem tem curiosidade com isso”,
diz. Nem cita ainda as receitas que o Estado pode obter com a venda ou cobrança
de impostos de um comércio legal de drogas como mais uma justificativa para a
legalização.
Bode expiatório, helicoca e PCC
Ainda com a lembrança da partida de xadrez fresca na cabeça,
Nem filosofa. “Quando eu estava na Rocinha as pessoas me viam como uma espécie
de rei”, afirma. “Mas eu nunca me comportei como rei, sempre me considerei mais
um peão mesmo, nunca quis saber de ostentar, andava na Rocinha de chinelo e
camiseta do Flamengo, minha preocupação era ajudar as pessoas”, diz Nem. Ele
pensa um pouco e completa: “Vira e mexe usava uma corrente, um relógio, mas
nada caro”.
A metáfora do xadrez, com reis e peões, também permeia sua
visão sobre a máquina do tráfico de drogas. Nem da Rocinha se considera, em
certa medida, injustiçado. Apesar de admitir que “não é santo”, para ele as
autoridades “com o apoio da grande mídia” usam o traficante “da favela, negro e
pobre” como bode expiatório, quando na verdade ele seria apenas parte de uma
engrenagem mais complexa. “E o helicoca? Quem foi preso? E o filho da
desembargadora?”, questiona, referindo-se a dois episódios recentes ocorridos
no país envolvendo traficantes brancos e de classe média. O primeiro foi a
apreensão, em 2013, do helicóptero da família do senador Zezé Perrella (MDB),
que é próximo de Aécio Neves (PSDB), no Espírito Santo com quase meia tonelada
de cocaína. O segundo diz respeito à libertação (em tempo recorde) no final de
2017 de Breno Fernando Solon Borges, de 38 anos, filho de uma desembargadora
que foi preso com 130 quilos de maconha e várias munições de uso restrito das
forças armadas.
Aliás, Nem da Rocinha conhece bem o papel dos políticos no
tráfico. Ele admite já ter conversado com alguns no Rio de Janeiro, mas se
recusa a dar os nomes. Diz também que já foi procurado várias vezes para firmar
um acordo de colaboração com as autoridades em troca de redução de pena. Sobre
uma possível delação premiada, ele é enfático: “Pretendo manter o mínimo da
dignidade que ainda me resta. Nunca faria uma coisa dessas. Aqui não é como
Brasília onde o sujeito delata até a mãe”.
Nem da Rocinha: “Não
me arrependo de ter sido traficante. O que você faria no meu lugar?”
Apesar de preso há mais de seis anos, Nem acompanha a crise
política na qual o Brasil mergulhou. “Confesso que em 2013, quando começaram
aqueles protestos por transporte mais barato, serviços de qualidade, eu fiquei
otimista”, diz Nem. “Eu tinha vontade de estar na rua também, sabe? Marchando
com toda aquela gente”. Mas a empolgação do ex-traficante agora deu lugar a um
pessimismo com relação ao cenário político. “É triste ver que todos esses caras
serão reeleitos. Aquilo tudo foi por nada. Essas elites da política que se
perpetuam no poder... Rodrigo Maia, Renan Calheiros, todo esse pessoal vai
continuar no poder”, diz.
Sobre o atual presidente Michel Temer, do MDB, ele é
taxativo: “Golpista né? Rasgaram a Constituição. ‘Tem que manter isso aí’
[referência à gravação sobre a suposta compra do silêncio de Eduardo Cunha]...
É uma piada. O cara deveria estar preso, imagina quanto dinheiro não rolou pra
comprar o apoio dos deputados e senadores que apoiaram o impeachment...”. Nem
também critica os que apoiavam a Lava Jato e hoje criticam a operação: “Quando
iam só atrás do PT todo mundo gostava. Agora que chegou aos outros partidos um
monte de gente começa a falar ‘pera lá!”.
Mesmo pessimista, Nem da Rocinha não acredita na vitória do
candidato Jair Bolsonaro, deputado federal saudoso dos tempos da ditadura
militar que lidera algumas pesquisas de opinião. “Eu não acho que o brasileiro
vai fazer igual o pessoal fez nos Estados Unidos, e eleger um cara como o
Trump”, diz. O ex-traficante afirma não votar há mais de década, mas se
pudesse, seu voto seria do ex-presidente Lula. “Ele fez muito por quem mais
precisava, pelos mais pobres. Eu pude acompanhar na Rocinha. Gente que trabalhava
pra mim vinha pedir pra sair do tráfico e ir trabalhar nas obras do PAC
[Processo de Aceleração do Crescimento]”, relembra Nem.
“Do jeito que as coisas são, quando você publicar a matéria
vão dizer que o Nem tá fechado com o ETA [grupo separatista basco que atua na
Espanha]!”
A prisão não fez com que seu nome ficasse de fora do
noticiário. Em fevereiro as autoridades fluminenses informaram que ele teria se
filiado à facção paulista Primeiro Comando da Capital, dando origem a um novo
grupo chamado Terceiro Comando Puro 1533, no qual os números indicam a posição
das letras PCC no alfabeto. “Dizem que fui batizado pelo PCC. Como? Onde? Fico
22 horas dentro da cela. Até minhas conversas com meu advogado são gravadas em
vídeo. Como é que eu posso ter sido batizado?”, indaga. “Do jeito que as coisas
são, quando você publicar a matéria vão dizer que o Nem tá fechado com o ETA
[grupo terrorista basco que atuava na Espanha]!”, brinca.
Apesar de negar filiação ao PCC, Nem afirma que o modelo de
negócios do grupo paulista é mais eficiente “e menos violento” do que o das
facções fluminenses. Ele menciona a tese já famosa no meio acadêmico, de que o
grupo criminoso foi responsável pela queda dos homicídios no Estado ao tomar
para si o papel da Justiça nas periferias com os tribunais do crime. “Sem o PCC
São Paulo ia virar um inferno. Quem você acha que acabou com a violência lá?
Foi o Estado por acaso?”, questiona. Nem não acredita, no entanto, que a facção
consiga ter sucesso em uma possível empreitada no Rio. “Lá é outra coisa. São
muitos interesses diferentes, às vezes é tão bagunçada a situação lá que não dá
nem pra chamar de crime organizado”.
Outra notícia envolvendo Nem da Rocinha ganhou as manchetes
em setembro de 2017, quando a comunidade fluminense foi invadida por criminosos
armados após sua namorada, Danúbia Rangel, ter sido supostamente expulsa do
morro por Rogério 157. Autoridades disseram que a ordem partiu de Porto Velho.
“Tudo que acontece na Rocinha dizem que fui eu. Quando teve esse problema na Rocinha
eu estava há mais de dez dias sem receber uma visita. Como eu ia dar ordem pra
invasão?”, questiona. Sobre Danúbia, que foi presa em outubro de 2017, Nem
lamenta o que considera uma “vaidade” excessiva da companheira, famosa por
aparecer nas redes sociais se divertindo em festas e até andando de
helicóptero.
“Queria ler a biografia do Stalin, mas não foi autorizada
pela direção”
Além do xadrez e do futebol, disputado no pátio do presídio
(Nem tem contato com outros 12 presos durante o banho de sol), o ex-traficante
também aproveita o tempo no cárcere para se dedicar a leituras: “Os últimos
livros que eu li foram O príncipe, do Maquiavel, a biografia da Catarina a
Grande, uns do John Grisham [autor de romances de tribunal] e livros
jurídicos”. Ele lamenta, no entanto, a censura a alguns títulos. “Queria ler a
biografia do Stalin, mas não foi autorizada pela direção”, diz. Na
penitenciária de Porto Velho revistas e jornais enviados pelos familiares
precisam passar pelo crivo de um departamento de triagem. Antes do início da
visita do EL PAÍS, os guardas do presídio entregaram para a reportagem uma
edição da revista IstoÉ sobre a intervenção federal no Rio, levada por algum parente para o preso mas que
não teve a entrada liberada.
O livro que conta sua história, O Dono do Morro: Um homem e
a batalha pelo Rio (Companhia das Letras), do jornalista inglês Misha Glenny,
também não foi autorizado para Nem. “Eu devo ser o único biografado que não
pode ler a própria biografia”, comenta. Uma vez por mês os presos têm direito a
assistir filmes. “Mas a censura é 12 anos”, brinca Nem. “A gente queria ver
aquela comédia Se beber não case, mas não foi autorizada. É só de Formiguinhas
pra baixo”.
“O que você faria no meu lugar?”
Nem da Rocinha foge do estereotipo do criminoso que se
arrepende de seus malfeitos após a prisão. “Se eu me arrependo? Claro que não.
Que pai não faria o que eu fiz pra salvar a vida da própria filha?”, questiona,
referindo-se aos fatos que o levaram a deixar o emprego de supervisor de
equipes da empresa de TV a cabo NET e entrar para o mundo do tráfico. O ano era
1999, e um caroço do tamanho de um ovo começou a crescer no pescoço de sua
filha Eduarda, de 9 meses de idade. Em alguns meses pai e mãe precisaram deixar
os empregos para peregrinar por hospitais, consultórios e centros de
diagnóstico.
O problema na saúde da pequena mergulhou a família pobre
moradora de um cortiço da Rocinha em uma espiral de dívidas médicas que
chegaram a 20.000 reais. Para arcar com os custos Antônio precisou pedir um
empréstimo para a única empresa disposta a dar dinheiro para um desempregado
morador de favela: o tráfico de drogas. Para quitar a dívida, ele colocou sua
expertise gerencial a serviço de Luciano Barbosa da Silva, vulgo Lulu, o chefe
do tráfico da Rocinha e uma das principais lideranças da facção criminosa
Comando Vermelho (CV). "O que você faria no meu lugar?".
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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