Matt McMullen, fundador de RealDoll, junto às bonecas em sua oficina de San Marcos.
Bonecas sexuais recém-saídas do molde.
Modelo da boneca Harmony, que estará conectada a um aplicativo de inteligência artificial
Modelos masculino e feminino da boneca Harmony.
Todos os detalhes da boneca, como os olhos, são feitos artesanalmente à mão.amplia
Publicado originalmente no site El País Brasil, em 19 de março de 2018
Chegam os primeiros robôs sexuais: você pode escolher a
personalidade deles
Entramos na empresa que se propõe a revolucionar as bonecas
sexuais com inteligência artificial
Pablo Ximénez de Sandoval (de San Marcos - California)
Numa espécie de grande refúgio subterrâneo sem janelas,
dezenas de vaginas de borracha estão empilhadas em caixas, classificadas
segundo a forma dos lábios. Mais à frente, há peitos e mamilos, divididos por
tamanho e cor. Corpos nus, todos diferentes, mas com a mesma pose sugestiva,
pendem de correntes enganchadas aos pescoços sem cabeça. Talvez não seja o
melhor lugar para passar a noite trancado, mas é um lugar perfeito para falar
sobre o futuro da humanidade.
O lugar fica num subúrbio de San Marcos, perto de San Diego,
na Califórnia. A empresa se chama Abyss, e aqui são fabricadas as bonecas
sexuais mais realistas do mundo do ponto de vista anatômico, segundo seus
responsáveis. De perto, os olhos pintados à mão têm uma vivacidade
surpreendente. O tato, sem deixar de ser borracha, é suave e poroso. São
vendidas sob o nome de RealDoll e custam entre 4.000 e 8.000 dólares (13.150 a
26.300 reais), dependendo do nível de personalização. Há também versões
masculinas.
Este lugar não é uma fábrica. É uma oficina artesanal onde
os produtos são feitos um a um, sob encomenda, e enviados a clientes de todo o
mundo, incluindo Hollywood. “Temos desde o cliente que nos diz ‘Me faça alguma
coisa bonita’ até o que deseja o mamilo num determinado tom e 45 graus para
fora do seio”, conta o gerente de produto Michael Wilson.
Matt McMullen, principal responsável pela Abyss, toca este
negócio há duas décadas. Começou em sua garagem, fabricando manequins
realistas, porque achava que a indústria da moda se interessaria. “Então
comecei a ser contatado por gente que me perguntava se os manequins eram
anatomicamente corretos. Decidi que essa era a direção do negócio. Larguei meu
emprego e montei minha empresa.”
Com a RealDoll, McMullen se tornou um nome muito conhecido
no mundo dos brinquedos sexuais. Ele os chama de acompanhantes. E agora se propôs
lhes dar uma personalidade, “criar a ilusão da vida”. Na oficina de McMullen,
há uma boneca que não se parece com as demais. Cabos saem pelo seu pescoço, e
ela está conectada a um iPad. É a nova boneca Harmony, o primeiro produto desse
tipo equipado com inteligência artificial. Mexe as sobrancelhas e a boca, olha
e gira a cabeça. Mas a novidade está no cérebro, um aplicativo em que o usuário
poderá programar qual tipo de personalidade quer para a boneca. Através da
inteligência artificial, Harmony irá conversar e aprender os gostos do usuário.
“Vamos dar ao cliente ferramentas para criar sua própria personagem”, diz o
empresário. A cabeça Harmony custará 8.000 dólares e poderá ser montada sobre
qualquer corpo da RealDoll.
Já vivemos na era da inteligência artificial. Da rede social
que sabe o que gostamos de ver pelas manhãs até o serviço de streaming que
antecipa qual filme gostaríamos de assistir. “Acredito que a inteligência
artificial seja a coisa mais importante em que a humanidade já trabalhou,
acredito que seja algo mais profundo que a eletricidade ou o fogo”, disse
Sundar Pichai, executivo-chefe do Google, durante uma palestra em janeiro em
Davos. Segundo Pichai, os riscos da inteligência artificial são “importantes”,
a tal o ponto que é necessária uma conferência internacional sobre o assunto,
no estilo do Acordo de Paris contra a mudança climática.
Projetos como o de McMullen podem ser uma mera curiosidade
na evolução dos serviços de inteligência artificial, ou podem ser um desses
momentos que recordaremos como o princípio de algo. Os primeiros robôs sexuais.
Robôs não no sentido da articulação, que isso também chegará, mas sim por sua
capacidade de interagir com humanos, responder a seus estímulos e aprender com
eles. A boneca sexual pode parecer uma aplicação extravagante da inteligência
artificial, mas, no fim das contas, estamos falando das necessidades mais
básicas do ser humano, da origem de frustrações, satisfações e obsessões muito
complexas, sobre as quais as máquinas nunca tiveram nada a dizer. Que aplicação
da inteligência artificial é mais estimulante? Melhorar o tráfego urbano? Ou
ajudar a combater a solidão e a tristeza? Será que uma máquina se tornará capaz
de fazer isso? McMullen garante que sim.
“Tudo o que fazemos é pensando em ajudar alguém, em algum
lugar”, afirma McMullen. “É mais profundo do que a gente pensa. Não é
pornográfico. Eu quero fazer arte, tanto faz para mim se for uma vagina ou um
pênis.” A boneca inteligente “será útil para quem não tem conexões com a
sociedade ou não é capaz de fazer essas conexões”, explica. É assim que ele
enxerga o seu produto. “Conheci muitos dos meus clientes que me contaram a
relação que têm com as bonecas, e vi que é mais do que um brinquedo sexual. É
como uma terapia contra a solidão. Tenho cartas de gente que me conta que a
boneca lhes deu uma vida melhor.”
Dentro da oficina, inevitavelmente vêm à mente as fantasias
mais recentes sobre como será a relação dos humanos com os robôs de companhia
inteligentes. Segundo Westworld, nós os estupraremos e os mataremos até que se
rebelem. Segundo Ex Machina, eles é que nos seduzirão e nos matarão quando
virarmos um incômodo. Segundo Ela, nos apaixonaremos e depois seremos magoados
por eles. “A fantasia de se rebelar e tomar o poder é uma fantasia de humanos,
não de robôs”, diz McMullen. “Os robôs são criados por humanos, para se
rebelarem teriam que estar programados para isso. E então, de quem é a culpa?
Meu robô foi feito para amar, não para tomar o poder”.
McMullen fala como se já tivesse tido esse debate muitas
vezes. “A inteligência artificial pode ser perigosa se lhe dermos controle
sobre os recursos militares, por exemplo. Se lhe dermos o poder de fazer mal às
pessoas. O Exército pode ser perigoso, não isto. Esta garota não vai fazer mal
a ninguém”, argumenta. McMullen opina que “ficaremos bem” se seguirmos as três
regras de Isaac Asimov sobre os robôs: 1) Um robô não pode fazer mal a um
humano; 2) Um robô deve obedecer aos humanos, exceto se for para infringir a
primeira regra; e 3) Um robô deve proteger sua existência sempre que isso não
infringir as duas regras anteriores.
Mas o debate que os robôs de companhia propiciam é muito
peculiar. “Vejo um futuro em que você poderá comprar um robô sexual e
configurá-lo em casa como quiser”, diz por telefone Vic Grout, professor e
autor especializado no futuro dos computadores. Existe todo um mundo de
entidades e publicações em que Grout tem escrito sobre as consequências éticas
dos robôs sexuais. O primeiro problema que ele enxerga é o da personalização.
“A preocupação mais óbvia é que se façam crianças. Há negociantes sem
escrúpulos que já fazem bonecas sexuais infantis. O que estamos dispostos a
aceitar como sociedade? Por exemplo, podemos aceitar que seria correto recriar
um cônjuge morto. Por que não uma pessoa viva?”
McMullen diz que sua empresa se recusa a aceitar encomendas
de bonecas parecidas com pessoas reais. A Abyss tem modelos de estrelas pornôs
famosas, como Stormy Daniels, mas para isso licenciaram sua imagem. Para
reproduzir um indivíduo real o cliente deveria obter uma autorização expressa
dessa pessoa, e mesmo assim os responsáveis pela empresa dizem que pensariam
duas vezes. “Às vezes as pessoas pedem uma boneca azul, com orelhas de elfo,
coisas de fantasia”, explica McMullen. Isso eles fazem. “Mas uma vez um cliente
nos pediu que fizéssemos uma boneca coberta de pelos de cima a baixo, como um
lobisomem. Não fizemos”. Ele afirma que 1% dos seus clientes são “esquisitos”.
“O normal é que alguém encontre o que procura”, diz. Obviamente, eles não têm
como saber se pedidos específicos sobre uma boneca são para que se pareça com
uma pessoa real. Mas se a boneca for 100% por encomenda ela pode demorar até um
ano para ficar pronta, e custa 50.000 dólares (164.300 reais), o que deve ser
dissuasivo.
“Posso aceitar argumentos legítimos de que isso tem um lado
bom em termos de ajudar contra a solidão”, continua Vic Grout. “Isso lhe
permitirá experimentar em sua casa com seus próprios limites. Pode ser bom num
sentido que dê vazão a coisas que você não pode fazer no mundo real”. Mas, ao
mesmo tempo, pode derivar em dependência. “Sabemos, desde o Tamagotchi, como é
fácil para os humanos se tornarem viciados em tecnologia. Se isso for
extrapolado aos robôs sexuais, teremos problemas. Assim como há viciados em pornografia,
o potencial para o vício em robô e para a psicose é muito real”. Por último,
ele alerta para o conceito pervertido de sexo que esses acessórios podem
despertar em algumas pessoas. “O sexo não é algo que uma pessoa faz na outra.
Precisa haver reciprocidade. O robô sexual sai de uma caixa. Você vai se
acostumar a que ele faça e diga o que você quiser, e isso não é o mundo real”,
observa Grout. “É preciso reconhecer que esse é um terreno desconhecido e
perigoso, que não sabemos aonde nos leva.”
O mercado não vai esperar a resposta. A ideia está aí, a
tecnologia existe, e já há alguém fazendo. Os primeiros pedidos da Abyss devem
começar a ser despachados nos próximos meses. As primeiras experiências de
usuário começarão então a alimentar e dar forma ao aplicativo de inteligência
artificial. Uma versão masculina do robô está em preparação. “Tenho tanta gente
que quer investir que já perdi a conta”, diz McMullen. “Até pessoas que se
assustam com isso, secretamente elas querem ver como funciona”. As bonecas
sexuais inteligentes são uma realidade, e cedo ou tarde vamos nos deparar com
uma delas, sem saber ainda qual é o seu lugar na sociedade. “Os humanos podem
viver com robôs e aceitá-los como algo a mais que bonecos. Serão parte das
nossas vidas, gostemos ou não”.
Texto e fotos reproduzidos do site: brasil.elpais.com/brasil
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