sábado, 28 de junho de 2025

As sombras da IA

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 28 de junho de 2025

As sombras da IA

Nós, humanos, faremos o que as máquinas não aprenderem a fazer. Fernando Schüler para a revista Veja:

Vem causando frisson o estudo divulgado pelo MIT dando conta de uma “atrofia cognitiva” ligada ao uso da inteligência artificial (IA). O experimento comparou três grupos escrevendo redações. Um dos grupos usava o ChatGPT; outro pesquisava no Google; e o terceiro usava apenas a própria cabeça. Ao final de três rodadas, a turma que usou IA apresentou uma “atividade cerebral significativamente menor de memória, cognição e criatividade”, comparada às demais. A IA era conveniente no curto prazo, mas a um alto custo cognitivo. De um observador, li a frase: “O cérebro é como um músculo. Ou você usa, ou você perde”. O estudo é preliminar, mas o sinal é claro: abusar da IA quando se deveria estar treinando o cérebro para criar coisas e pensar criticamente pode ser desastroso. Me lembrei de quando peço aos alunos para ler Dostoiévski. Ler as 600 páginas de Crime e Castigo pode não ter utilidade. E quando peço um artigo a respeito, ou um retrato psíquico de Raskólnikov, isso pode ser obtido em alguns segundos no ChatGPT. Se alguém fizer isso, terá economizado um bom tempo de leitura. Mas terá perdido um universo de sutilezas e imaginação humana.

O estudo do MIT vai em linha com o declínio recente nos testes de QI. Até o final do século passado funcionava o “efeito Flynn”. A cada geração, havia algum avanço cognitivo. Até a reversão, nos anos 1990. Muita gente associa isso ao “efeito Google”, ao fato de “terceirizarmos” parte de nossa memória e esforço cognitivo. Parece lógico. Ainda me lembro quando estudava em Barcelona, meados dos 1990, e o professor nos explicava sobre o buscador AltaVista. Não existia Google ainda, mas na hora compreendi que ia ficando para trás o mundo de enciclopédias e bibliotecas no qual havia sido criado. Um mundo lento e trabalhoso, ainda que sedutor, trocado por um universo instantâneo. E incrivelmente mais fácil, ainda que carente de cheiros e mistérios. Trinta anos depois, a IA dobra a aposta. Nos entrega uma carga de facilidade de uma outra ordem: em vez de informação, traz junto a inteligência. Aquilo que até então era nosso traço distintivo, como espécie, e não é mais.

O estudo do MIT é realista. Nada a ver com a onda de catastrofismo que acompanha o nascimento da IA. E que acompanhou toda revolução tecnológica. Diria que seu campeão, por estes tempos, é Yuval Harari. Seu ponto: “Não provoque uma tecnologia que você não pode controlar”. Soa falso. Qual seria a tecnologia que, no seu início, não pareceria um tanto fora de controle? Não foi assim com os aviões, quando Santos Dumont ou os irmãos Wright faziam seus primeiros voos? Harari diz que a IA pode “lançar ataques nucleares, sintetizar um novo vírus mortal ou gerar uma onda de notícias falsas, humanos falsos, fazendo com que pessoas percam a confiança em qualquer coisa”. Talvez tudo isso de fato aconteça. O bom das previsões longas é que ninguém cobrará nada se coisa nenhuma acontecer. Por isso tenho preferido o cinema e a ficção científica. Um filme como M3GAN, por exemplo. Que tal uma boneca high-tech, criada para cuidar de uma menina, mas que em algum momento ganha vida própria e se torna uma espécie de Chucky versão wi-fi? A mais recente a que assisti foi a série Cassandra, do diretor alemão Benjamin Gutsche. Neste caso, o robô é a governanta da casa, há uma história sinistra no passado, ela acaba saindo do controle (como de hábito) e passa a infernizar a vida dos moradores. Seria como mísseis americanos lançados contra o Irã aderirem ao antissionismo, por conta própria, e explodirem em Tel Aviv. O catastrofismo em torno da IA é uma indústria.

Há riscos mais amenos. Bill Gates sugeriu que em coisa de dez anos profissões como médicos e professores serão tomadas pela IA. Não acho isso. Mas e se for? Se os robôs funcionarem melhor que os médicos e professores de verdade, valendo o mesmo para terapeutas e aeromoças, merecem os empregos. Cocheiros eram imprescindíveis, até inventarem os automóveis. Depois desapareceram. Aprenderam a dirigir ou vender bilhetes no cinema. O mesmo com datilógrafos e donos de videolocadoras, nos anos 1990. Ainda agora os chineses lançaram o primeiro hospital 100% comandado por IA, ainda experimental. Ele consegue atender em poucos dias o que hoje levaríamos dois anos para fazer. Por que isso não se generalizaria, logo ali adiante? É a condição do progresso. Nós, humanos, só continuaremos fazendo, ao menos em grande escala, o que as máquinas não aprenderem a fazer. Penso nisso quando peço um delivery, lá em casa, e vejo o rapaz chegando de moto com a comida. Alguém acha que ele não teria nada melhor para fazer do que andar de moto com uma pizza na garupa, nas madrugadas de São Paulo? O trabalho humano será cada vez mais um exercício de sofisticação e exotismo. Tipo andar de charrete ao redor do Central Park e pagar caro. No mais, a tecnologia sempre é assim: destrói empregos que se tornam arcaicos e cria novos. Ótimo. Sinal de que andamos para frente e não para trás, para desalento de muita gente.

Ninguém freará o avanço tecnológico. O ludismo vandalizou as máquinas malditas, em Manchester ou Yorkshire, no início do século XIX. E sumiu. Em março de 2023, uma penca de cientistas e empreendedores, incluindo Elon Musk e o próprio Harari, lançaram uma carta pedindo que “os laboratórios suspendam durante pelo menos seis meses o treino de IA”, até que se tivesse alguma clareza sobre riscos e regras de segurança. A carta caprichava no tom dramático, mas ninguém deu bola. Nem mesmo os signatários. A IA não funciona como a energia nuclear, que supõe investimento e regulação pesada. Sua expansão é caótica e descentralizada. E quem piscar o olho, como nos ensina o velho jogo do dilema do prisioneiro, vai para o inferno dos sem mercado. De minha parte, fico com os otimistas. Quando os automóveis foram inventados, na Inglaterra, o Parlamento aprovou os Red Flag Acts, que obrigavam alguém a andar na frente dos carros com uma bandeirinha vermelha, para evitar acidente. Durou trinta anos e desapareceu. É compreensível o drama em torno da IA. Mas o que vale a pena mesmo, na vida de cada um, é prestar atenção ao alerta do MIT. A tecnologia é ótima quando expande nosso repertório intelectual, traz informação e novos ângulos para observar o mundo. Mas é péssima se substitui o senso crítico. É triste observar provas e trabalhos inteiros, nas escolas, feitos com aplicativos de IA. Isso não apenas destrói o prazer do exercício criativo, mas impede que se treine o “músculo” da cognição humana. E isso é desastroso. E quem sabe seja esta a verdadeira Cassandra, a nos assombrar, silenciosamente. Em um mundo no qual avança a IA, não deveríamos deixar que nossa inteligência natural caminhe na direção inversa.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 27 de junho de 2025, edição nº 2950

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

segunda-feira, 23 de junho de 2025

"Somos todos visitantes", por Roberto Motta

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 22 de junho de 2025

Somos todos visitantes

Toda a glória terrena é efêmera porque és pó e ao pó voltarás. Nada é mais certo na vida do que os impostos e a morte. Algumas pessoas até conseguem isenção fiscal. Mas ninguém será isento de morrer. Roberto Motta para a Gazeta do Povo:

Chegamos ao hospital para visitar meu amigo. Foi nesse hospital que meu pai morreu depois de sofrer muito com um câncer de pâncreas. Foi aqui também que meu amigo Marcelo passou seus últimos dias antes de sua morte, depois que um cirurgião incompetente falhou na remoção de um tumor maligno no rim esquerdo. Hoje o amigo doente é Paulo César. Uma pneumonia dominou seus pulmões e a situação foi agravada por influenza. Paulo ficou vários dias entubado na UTI. Hoje, domingo, viemos visitá-lo.

Depois de dois dias de chuva o sol de outono brilha em um céu limpo e pálido. Dirigimos sem pressa pela Avenida Atlântica rumo ao hospital. Na pista do lado do mar, que aos domingos fica fechada aos carros, senhores de calção e camiseta tentam perder a barriga caminhando. Inutilmente, ao que parece.

Ontem fui dormir de madrugada, depois de horas trabalhando em uma palestra nova, que batizei de A Era da Incompreensão. Inspirado por um texto que achei por acaso na internet, montei uma sequência de slides que misturam literatura, filosofia, geopolítica e tecnologia para apresentar a minha perspectiva sobre o que é viver no mundo de hoje. Talvez essa seja a coisa mais importante que a idade nos traz: perspectiva. “Se fosse possível, você gostaria de saber o dia exato da sua morte?” perguntou meu amigo Luciano Pires. Eu respondi que não. Prefiro ser surpreendido. Se eu soubesse o dia exato em que vou morrer provavelmente não conseguiria mais viver. A paz só é possível se esquecemos que somos mortais.

Hospitais, inevitavelmente, me lembram morte. O cheiro de desinfetante é um lembrete de que, no melhor cenário, um dia entraremos em um hospital e não sairemos. Não tenho medo da morte, só não quero ficar inválido e dependendo dos outros. É claro que minto: tenho muito medo da morte. Ela me parece a forma definitiva de solidão. Para quem tem fé a morte não é mais que uma passagem, sei disso. Mas se minha mente e meu espírito pensam uma coisa, meu corpo sente outra. Esse corpo, com todas as suas forças, quer continuar vivendo. Essa vida é doce demais, como disse Charles Bukowski (algumas pessoas se espantam que eu goste de Bukowski; elas provavelmente nunca leram um poema dele).

Chegamos na UTI. Encontramos meu amigo melhor, sentado na cama lendo um livro sobre a independência americana. Na capa está a famosa pintura de Emanuel Leutze que mostra o general George Washington em pé, na proa de um barco que atravessa o rio Delaware. Washington está prestes a atacar as tropas britânicas. Essa será a primeira vitória na guerra pela independência das treze colônias que um dia formariam os Estados Unidos da América. Paulo César está pálido e cansado, mas se recuperando depois dos quatro dias entubado. Ele também cruzou o seu rio Delaware e foi vitorioso. Ele não vai morrer. Não agora. Não dessa vez. Mas ele vai morrer um dia porque todos nós morreremos um dia e haverá um tempo na face da Terra em quem ninguém mais lembrará nossos nomes, ninguém saberá que andamos por essas ruas e que amamos tanto.

Nos despedimos e vamos embora, minha mulher e eu. Ainda levamos os adesivos de visitante, fornecidos pelo hospital, pregados no peito. É um crachá de mortalidade, a lembrança de que, no fim de tudo, somos todos visitantes. Memento mori, “lembre-se que você é mortal” – era essa a frase que um escravo soprava no ouvido dos generais de Roma, depois que eles voltavam vitoriosos das guerras, para que não permitissem que a glória lhes subisse à cabeça. Será que alguém disse isso a George Washington? Toda a glória terrena é efêmera porque és pó e ao pó voltarás. Nada é mais certo na vida do que os impostos e a morte. Algumas pessoas até conseguem isenção fiscal. Mas ninguém será isento de morrer.

O celular faz um barulho: é uma mensagem de Paulo Cesar, emocionado, agradecendo a visita.

Na orla do Rio de Janeiro pessoas continuam passeando sem ter ideia de quanto tempo lhes resta. Eu penso: daqui a duzentos anos nem uma dessas pessoas estará viva. O sol se põe mais bonito que de costume, e pouco depois começa a soprar o vento leste.

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sexta-feira, 13 de junho de 2025

O que aconteceu com o cinema?

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 7 de junho de 2025

Por que o cinema vai tão mal?

Com o digital, as opções de filmagem e edição aumentaram significativamente. O risco é perder-se em tantas possibilidades. Josias Teófilo para a Crusoé:

Cada filme novo lançado, uma nova decepção. E isso inclui filmes ganhadores do Oscar (como Anora), da Palma de Ouro em Cannes e de outros prêmios internacionais, filmes aclamados pela crítica etc.

O que aconteceu com o cinema?

Podemos esboçar algumas razões.

A primeira é a evidente instrumentalização política dos meios de legitimação de um filme, desde os editais que financiam o audiovisual, passando pelos festivais e mostras, até a crítica especializada.

Um filme é julgado pelo seu suposto efeito social, e não pelo resultado estético. Essa visão contamina toda a cadeia produtiva do audiovisual.

Isso se liga a um outro problema: o carreirismo.

Financiar um filme é difícil e demorado, constantemente os produtores usam temas engajados para conseguir recursos, ou inserem questões “sociais” em projetos já existentes para torná-los mais patrocináveis. E frequentemente funciona.

Isso vira um ciclo vicioso: projetos desse tipo são financiados, são legitimados pelos festivais e pela crítica, e inspiram outros projetos semelhantes.

Para completar, o meio audiovisual tornou-se extremamente especializado e autorreferente.

Nele, acontece o problema descrito no livro A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn: o meio deixa de criar e passa reproduzir os próprios pressupostos, um fenômeno que acontece também na cultura.

Além disso, tem uma questão propriamente técnica, que é a seguinte: por praticidade, o meio audiovisual foi digitalizando-se, tanto na produção quando na exibição.

Com efeito, em tese é mais barato filmar em digital (se bem que na era digital os filmes não ficaram mais baratos, ao contrário).

Só que filmar em película demanda uma preparação maior: queimar 24 frames de filme por segundo não é brincadeira.

O diretor e os atores preparam a cena com grande dedicação.

A equipe de fotografia precisa de um grau de profissionalismo muito grande.

Filmar em película exige um preciosismo na preparação que não existe ao filmar em digital, em que é possível captar horas de imagem em 8k e depois editar (ou até cropar uma imagem maior).

Chegamos a outro fator: com o digital, as opções de filmagem e edição aumentaram significativamente.

Quem vai filmar tem uma gama de opções tremenda: pode filmar com Iphone (os novos filmam em 6k, com qualidade de cinema), com câmera digital de pequeno porte, com grandes câmeras digitais de cinema, com stead cam, com drone. É uma infinidade de opções.

O problema não é só perder-se no meio de tantas possibilidades, mas não ter o domínio completo dos equipamentos no sentido estético.

Por exemplo, os drones popularizaram-se enormemente, mas poucas produções usam bem esse recurso. O mesmo para stead cams, filmes feitos com celulares.

Até os anos 1970, não existiam stead cams, som direto, muito menos drones: era câmera na mão ou câmera num tripé, ou trilho.

É mais fácil saber usar bem poucos elementos. Os filmes tinham maior unidade. Eram mais sucintos e menos dispersos.

O mesmo se aplica a documentários: era preciso filmar ou pegar a mídia original de uma imagem de arquivo e reproduzi-la, hoje existe uma variedade imensa de imagens na internet, nos mais diversos formatos.

É preciso um trabalho monumental para dar unidade a tal diversidade.

Por fim, a crítica de cinema não tem tido relevância como no passado: as pessoas se informam mais por rede social que por jornais, e muitos dos jornais nem tem crítica de cinema.

O espectador não tem mais um referencial crítico, que serve para educar o olhar. Virou tudo questão de engajamento.

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domingo, 25 de maio de 2025

Biblioteca imaginária

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 19 de maio de 2025

Biblioteca imaginária

Nas prateleiras, temos livros que nunca vamos ler, que serão consultados, que vão ser lidos em parte e que vamos reler a vida toda. Josias Teófilo para a Crusoé:

A minha biblioteca foi crescendo e chegou a cerca de 3 mil livros. Quando algumas pessoas chegam em minha casa, acontece de surgir a pergunta: “Você já leu isso tudo?”.

É uma pergunta leiga, como diz Italo Sena. Costumo responder: “Numa biblioteca pessoal, temos livros que nunca vamos ler, livros que vão servir para serem consultados, livros que vão ser lidos em parte, livros que vão ser lidos inteiros de uma vez, e livros que vamos reler a vida toda”.

Neste último tipo está A arte da prudência, de Baltasar Gracián – já li tantas vezes o livro do padre jesuíta espanhol que perdi a conta.

E A Cidade Antiga de Fustel de Coulanges, para citar só dois.

Já o Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, só li duas vezes (uma em cada tradução), mas fui tão marcado que deixou a impressão em tudo que fiz depois.

Os livros da biblioteca que eu não li (e pode acontecer de nunca ler) têm sua função também.

Eles estão fisicamente à minha disposição e estar à disposição é uma função.

Mas o importante é: se eu os comprei, sei algo sobre eles, sei da categoria que eles se inserem, sei com que outros livros eles dialogam – em suma, sei o suficiente sobre eles, eles já fazem parte da minha biblioteca imaginária, o equivalente mental da biblioteca física.

Uma coisa que jamais se deve fazer é colocar o livro na estante sem antes dar uma boa lida nele: ver ao menos a capa traseira, as orelhas, o índice, e dar uma lida inicial no miolo. Se você não fizer isso ele pode se perder lá dentro, e vai se perder dentro da sua cabeça também.

Uma biblioteca inspira o pensamento de que para escrever um livro é preciso ter uma contribuição significativa para dar – uma vez que existem tantos outros livros no mundo. A questão é que os livros inspiram outros livros.

Na verdade, noto que muitos outros livros deveriam estar sendo escritos no Brasil de hoje.

E não só sobre fatos políticos, como o impeachment de Dilma, os movimentos de rua e a nova direita, mas também sobre o estado da cultura brasileira – o gênero ensaio, tão profícuo na história da literatura, poderia estar sendo bem mais explorado.

Faltam também livros biográficos, não necessariamente sobre pessoas famosas.

Biografias de pessoas anônimas, se bem escritas, podem provocar grande interesse – na realidade, toda a história da literatura mostra que as pessoas normais têm um mundo de complexidade dentro de si, e um autor talentoso consegue captar isso.

Livros não precisam ser exaustivos, nem longos – podem ser pequenos e de leitura rápida, como são tantas obras no mercado europeu.

Acho um ótimo exemplo os livros de Svetlana Alexevich, escritora ucraniana ganhadora do Nobel de Literatura, que ficou famosa pelo livro Vozes de Chernobyl – o livro inspirou a excelente série da HBO.

Svetlana não concebeu nada do que está ali – só pegou depoimentos e os editou. Os depoimentos não foram feitos por pessoas com inteligências excepcionais, ou conhecidas, mas pessoas comuns, que contam suas histórias trágicas.

Aliás, livro e série provaram o mesmo efeito em mim: tive uma pequena depressão logo após lê-los.

Senti-me transportado para aquele ambiente aterrorizante – acho que esse livro nunca mais vai sair da minha biblioteca imaginária.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Como surgiu minha paixão por cinema (e premiações)

Artigo compartilhado do site MONDOMODA, de 27 de fevereiro de 2025

Como surgiu minha paixão por cinema (e premiações)
Por Jorge Marcelo Oliveira

Lembro-me de ter assistido a um filme de terror pela televisão quando eu era bem pequeno. A trama era: um casal viajava de carroça e sofrem um acidente. A mulher se machuca. O casal é ajudado por uma mulher, que mora numa casa próxima. Depois de abriga-lo, ela se interessa pelo homem. Começa a recolher fios de cabelos da doente para fazer uma bonequinha de vodu. Conforme enfia espetos, a doente vai piorando. Não me lembro de como aquilo terminou, mas fiquei pensando naquela estória por um bom tempo.

Porém, nada se comparou com a primeira vez que pisei numa sala de cinema.

Não tenho certeza se foi Piracicaba (onde nasci) ou Americana (onde morei dos seis aos 15 anos), mas o filme era “Fuga da Montanha Encantada” (Escape to Witch Mountain, EUA). Como era uma produção de 1975, provavelmente foi exibida no Brasil no ano seguinte.

Eu deveria ter uns oito ou nove anos. Foi um impacto. O tamanho da sala… Da sala de cinema… Da quantidade de cadeiras… E as primeiras imagens que foram surgindo na tela! Foi uma emoção sem tamanho.

Além dos brinquedos, TV e música, nasceu minha paixão por cinema.

Oscar

A primeira cerimônia Oscar que assisti foi em março de 1980. Ano das vitórias de ‘Kramer vs Kramer’ (filme), Dustin Hoffman (ator) e Meryl Streep (atriz coadjuvante). Eu tinha 13 anos. Não tenho certeza, mas acredito que não tenha assistido qualquer um dos indicados. Tudo estreava com até um ano de atraso no Brasil.

Piorava o fato de quem eu morava em Americana, que contava apenas com uma única sala de cinema. Visitava Campinas nos finais de semana e nem sempre minha mãe tinha boa vontade de me acompanhar aos cinemas do centro da cidade, como os Cines Windsor, Regente, Jequitibá ou Ouro Verde.

Mesmo sem conhecer os filmes concorrentes, gostei da dinâmica da premiação. Gostei da ideia de um ator, atriz, etc, ser reconhecido por talento (pelo menos era assim que acreditei durante décadas).

Conforme o tempo foi passando, meu interesse também aumentou. Lembro-me de que, nas vésperas do Oscar, eu me programava para assistir tudo o que era indicado.

Quarta-feira era o dia mais barato. Cheguei a assistir até três filmes no mesmo dia. Percorria igual um maluco as ruas Regente Feijó (Cines Windsor e Regente), General Osório (Jequitibá) e Conceição (Ouro Verde) para não perder nenhum trailer. Quando surgiram as duas salas do Cine Serrador, no Iguatemi Campinas, as coisas ficaram um pouco mais complicadas.

Eu dependia de ônibus. Assim, antes de sair de casa, eu fazia um roteiro com os horários para não me atrasar em nenhuma sessão.

Conforme fui amadurecendo, comecei a me interessar pelas cinematografias do Brasil e de outros países. Assim, cineclubes entraram no roteiro.

Escrever sobre o assunto

Comprava revistas e livros sobre cinema – a saudosa Cinenim se tornou obrigatória. Esta revista foi um marco. Começou a encartar fascículos mensais sobre a História do Oscar. Finalizados, levara a uma gráfica para encaderna-los. Ainda hoje, é o mais completo livro sobre o assunto publicado no país. O jornalista, pesquisador e crítico de cinema carioca fez um trabalho incrível para escrever tal obra. Ele faleceu em agosto de 2006.

Certamente é o livro que mais li em toda a vida. Decorei cada premiado entre 1927 a 1992 – ano da segunda edição do livro. Pessoas próximas costumavam me testar sobre isso. Claro que com o tempo, fui me esquecendo de algumas coisas. Normal.

Também comecei a montar um arquivo organizado em ordem alfabética sobre atores, atrizes e diretores. No início da década de 2000, eu contava com dez caixas de papelão com folhas de sulfite tamanho A4. Eu me dedicava com afinco ao assunto. Um dia, coloquei tudo no meu carro e levei para doar para a Biblioteca Municipal de Campinas. Pedi para falar com o diretor. Fui mal atendido. Ele nem quis ver o que trouxe. Recusou. Segundo ele, não existia interesse naquilo. Tentei outro local. Também foi recusado. Sem saber o que fazer, meu arquivo que dediquei por 30 anos foi para o lixo.

Outra coisa que comecei a fazer foi escrever resenhas em cadernos. Inicialmente, eram diários pessoais. Porém, num determinado momento, parei de relatar meu dia-a-dia. Mudei o foco. Nas últimas páginas eram dedicadas a uma lista com datas, nomes dos filmes e diretores. Em dezembro, preparava minhas listas dos melhores. Estes cadernos ainda estão guardados.

A partir de 2017, com a criação do MONDO MODA, publico minhas resenhas. Eventualmente gravo para o You Tube e outras redes sociais.

Perda do romantismo

A partir de 1996, assinei o primeiro pacote de TV a cabo. Assim, tive acesso as cerimonias de entrega do Grammy, Globo de Ouro, Emmy, SAG, Tony, VH1 Fashion Awards, Billboard, etc. Com a evolução da internet e o surgimento das plataformas de Streaming, meu acesso aos filmes – e séries – aumentou.

Nas temporadas de premiações, assisto praticamente todos os filmes concorrentes em variadas categorias.

Depois de décadas acompanhando cerimônias de premiação e acesso ao vasto universo de informações, as coisas foram mudando. Quando conheci os sites internacionais especializados no mercado do entretenimento, que explicam de forma detalhada as matemáticas usadas pelos estúdios, campanhas, organizações, academias, associações e sindicatos envolvidos com a indústria do cinema.

Conforme fui entendendo os mecanismos do sistema fui perdendo o romantismo, a ingenuidade e a crença de que, ‘ganha quem realmente merece’. Não é nada disso. É um jogo de cartas marcadas!

Hoje (há alguns anos para ser mais exato), assisto premiações sabendo o que vai acontecer. Sei quem serão os vencedores em praticamente todas as categorias. Adoro me surpreender quando algo foge da regra. São os únicos momentos nos quais aquele menino ingênuo e apaixonado por cinema – que ainda habita em algum lugar no meu subconsciente – ganha vida e vibra! Infelizmente estes momentos são raros.

Eu gosto de assistir filmes no cinema, mas confesso que, faz muitos anos que este hábito tornou-se um processo.

Pessoas não sabem se comportar no coletivo. Numa sala escura de cinema, elas falam, cacarejam, relincham, grunhem, gemem, gritam, deixam o celular ligado… Comem iguais porcos. Elas se comportam da mesma forma que fazem dentro de casa.

Já discuti e briguei demais com este tipo de gente. Não quero mais. Sabe aquela ridícula pergunta: “O que você prefere? Brigar por sua opinião ou ter paz?” É lógico que quero paz!

Hoje, quando realmente desejo assistir a um filme numa sala de cinema, escolho um horário no qual sei que a sessão estará praticamente vazia. Nem sempre isso é possível, lógico.

Se puder assistir ao filme em casa, não penso duas vezes. Não tenho mais esta fantasia que filme é para assistir numa sala escura de cinema.

Outro ponto a considerar: o preço do ingresso e o valor do estacionamento. Dependendo do dia, o valor é surreal. Eu me recuso a pagar R$ 100 para assistir a um filme numa sala de cinema, no qual tenha que dividir espaço com algum imbecil.

Pensa: pagar caro para assistir um filme, para estacionar meu carro e ainda correr o risco de me irritar com pessoas sem educação? É muito masoquismo! E não é minha praia!

Quem gosta de cinema assiste em qualquer veículo. Até pelo celular, se for preciso!

Texto e imagem reproduzidos do site: mondomoda com br

Drummond e sua paixão pelo cinema

FOTO: Unsplash

Artigo compartilhado do site CARLOS DRUMMOND

Drummond e sua paixão pelo cinema

Não seria preciso que eu estivesse mergulhado, já faz tempo, na leitura de velhos jornais e revistas, publicações às vezes quase centenárias, para me dar conta de que o cinema foi uma das paixões maiores de Carlos Drummond de Andrade. Escrito aos dezessete anos, seu primeiro texto na grande imprensa – se assim se pode chamar o Jornal de Minas, que circulou em Belo Horizonte entre 1918 e 1922 – foi sobre um filme americano, Diana, a Caçadora. Na outra ponta da vida, um de seus últimos poemas, incluído no livro póstumo Farewell, seria uma louvação àquela que, em seu panteão particular, ocupou o altar mais elevado, a atriz sueca Greta Garbo (1905-1990). Entre um texto e outro, ao longo de 67 anos, Carlos Drummond de Andrade escreveu profusamente, em prosa e verso, sobre a chamada sétima arte.

Pensando bem, nada mais natural do que o apego vitalício do escritor mineiro às imagens em movimento. Como lembra Márcio da Rocha Galdino num livrinho (apenas 80 páginas) há muito esgotado – é de 1991 – e bem merecedor de divulgação mais ampla, O Cinéfilo Anarquista, que acabo de reler, o cinema e esse espectador especial nasceram, cresceram e amadureceram juntos.

De fato: nascido em 1902, Carlos Drummond de Andrade chegou ao mundo poucos anos depois da revolucionária invenção dos irmãos Lumière, em 1895. Da meninice à juventude plena, ele viu uma curiosidade tecnológica virar indústria e, por fim, nos anos 1920, assumir-se também como arte.

Em sua Itabira natal, onde viveu até os dezesseis anos, o menino Carlito esteve entre os embasbacados frequentadores do primeiro “cinematógrafo” da cidade, aberto em 1911 pelo farmacêutico Eurico Camilo. Dirá mais tarde, já cinquentão: “Só quem assistiu à infância do cinema no Brasil pode avaliar o que era essa magia dominical das fitas francesas e italianas, sonho da semana inteira”.

Em Belo Horizonte, cenário da porção mais decisiva de sua mocidade, até mudar-se para o Rio de Janeiro, em 1934, ir ao cinema era muito mais do que ver um filme – era, para muita gente, uma oportunidade de observação e convívio que a recatada família mineira não costumava facilitar. Para os moços e as moças, todos vestidos no capricho, era ocasião preciosa para furtivamente se observarem. Com enorme cautela, seja dito: revi por estes dias uma entrevista em que Drummond conta que as meninas não iam ao cinema sem a escolta de mãe ou pai, não raro os dois, para não falar na figura sempre alerta de algum irmão, cuja bengala, muito mais que adorno elegante, ali estava para fustigar rapazes inconvenientes.

Cinema, em Belo Horizonte, era algo tão importante que certa vez, tendo o proprietário do Odeon dobrado o preço dos ingressos, a moçada não teve dúvida em depredar a sala – e mais: dali saiu uma turba enfurecida, da qual Drummond fazia parte, para incendiar uns bondes, que, como o J. Pinto Fernandes do poema “Quadrilha”, não tinham entrado na história.

Em minha pesquisas drummondianas, tenho encontrado uma fartura de ilustrações da paixão do poeta pelo cinema. Entre elas, os bastidores da sua estreia na imprensa belo-horizontina, de que falei acima. Em 1920, a família Drummond de Andrade, recém-mudada de Itabira, morava num hotel na praça da estação ferroviária da capital. Ele mesmo irá contar, na sua última crônica, “Ciao”, publicada no Jornal do Brasil em 29 de setembro de 1984:

“Há 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar térreo do prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira página de um jornal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redação. O homem olhou-o, cético, e perguntou:

― Sobre o que pretende escrever?

― Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo e de qualquer outro possível.”

Interesses muitos e variados – e qual deles ocorreu primeiro ao aspirante a jornalista, antes mesmo da literatura?

Um pouco por sorte, consegui chegar a um exemplar do Jornal de Minas de 15 de abril de 1920, publicação da qual não há vestígios nem mesmo na rica hemeroteca da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Lá está, na primeira página, a matéria do frangote Carlos Drummond sobre Diana, a Caçadora, cuja exibição, no Cinema Pathé, causou frisson e candentes protestos na capital mineira.

Peço a você licença para voltar ao assunto na próxima ocasião, pois há detalhes saborosos dessa história, da qual, por ora, o parágrafo acima ficará sendo aperitivo – ou, como nas salas de cinema, um trailer...

Texto e imagem reproduzidos do site: www carlosdrummond com br

quarta-feira, 30 de abril de 2025

A filosofia e o progresso do conhecimento

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 29 de abril de 2025

A filosofia e o progresso do conhecimento

Texto do filósofo norte-americano John Searle, traduzido e publicado no site português Crítica, mantido por Desidério Murcho:

1. O problema central da filosofia

Vou falar acerca da situação actual em filosofia e, em relação a isso, acerca do meu próprio desenvolvimento como filósofo. Já fazia filosofia há décadas, literalmente, antes de se tornar para mim visível como o meu próprio trabalho se situava na actividade da filosofia e na vida intelectual em geral.

O facto intelectual central acerca da era presente é que o conhecimento progride. Sabemos simplesmente muito mais do que os nossos avós, e os nossos netos saberão muito mais do que nós. Nas cerimónias de queima das fitas diz-se que o conhecimento progride exponencialmente, mas não se pensa no que é um expoente. O conhecimento não progride exponencialmente, mas progride de facto colossalmente, e é um facto extraordinário que saibamos tanto. Este desenvolvimento, o progresso brutal do conhecimento, mudou a natureza da filosofia em alguns aspectos que quero mencionar. Primeiramente, durante três séculos depois de Descartes, as questões dominantes em filosofia eram epistémicas: Como podemos saber seja o que for com certeza? Como podemos responder ao cepticismo? Essas questões não podem ter para nós o mesmo significado que tiveram há três séculos ou mesmo há cem anos, e a razão é que estamos agora seguros acerca de muito do nosso conhecimento. É muito difícil, por exemplo, enviar homens à Lua, trazê-los de volta e depois perguntar “Sabemos realmente que o mundo exterior existe?” ou “Sabemos realmente que a Terra é redonda?” Portanto, o tipo de cepticismo que ocupou os filósofos por tanto tempo não pode ter para nós o mesmo significado. Ainda há questões cépticas tradicionais, mas são um pouco como os paradoxos de Zenão acerca do espaço e do tempo: para ir daqui até à porta tenho de percorrer metade da distância, e para percorrer a metade da distância tenho de percorrer metade da metade da distância, e, bom, sabemos aonde isto vai dar. Contudo, ninguém no fim do paradoxo de Zenão pensa “Ora bem, de facto não posso caminhar até à porta”, e é um pouco assim que estamos com respeito aos paradoxos cépticos. Os paradoxos tradicionais colocam questões como “Como sei que não estou a ser enganado por um génio maligno, a ter uma alucinação, ou que não sou um cérebro numa cuba?”, e assim por diante. Mas, ao fim e ao cabo, não duvidamos realmente que temos conhecimento seguro, e isso é um contraste com o século XVII. No século XVII, o conhecimento era genuinamente problemático. Muitas pessoas instruídas naquela era acreditavam na existência de unicórnios, e outras superstições eram extremamente comuns. Não temos este problema hoje. Temos de facto grandes lacunas no nosso conhecimento, algumas dos quais discutirei neste livro, mas actualmente há um corpo enorme de conhecimento que podemos simplesmente dar como garantido. Ademais, temos a tecnologia que torna esse conhecimento instantaneamente disponível. Se queremos saber o número de anéis de carbono na serotonina, basta fazer uma pesquisa no Google. É impressionante a quantidade de informação crua que temos à nossa disposição.

Um segundo efeito do progresso do conhecimento é ter alterado a natureza dos nossos problemas em filosofia. O problema central da filosofia não é colocar o conhecimento numa base segura, mas sim tornar o nosso conhecimento total consistente e coerente. E aqui está o quebra-cabeças: temos um conhecimento seguro de como o mundo funciona, num nível básico. O mundo consiste inteiramente de entidades às quais pensamos ser conveniente, se não inteiramente adequado, chamar “partículas”, como átomos e partículas subatómicas, e estas existem em campos de forças e estão organizadas em sistemas. Essa é a realidade básica. Mas se isso é o universo — se o universo consiste em partículas físicas estúpidas e destituídas de sentido organizadas em sistemas ainda mais amplos, nos quais as relações causais entre as partículas conectam os sistemas — se essa é a realidade última, onde entra a humanidade? Enquanto seres humanos, concebemos-nos como seres conscientes, sensíveis, linguísticos, políticos, éticos e estéticos. Também consideramos que temos livre-arbítrio e racionalidade. Essa é a realidade humana. A questão central na filosofia e aquela que analisarei nestas palestras é esta: Como se integra a realidade humana na realidade básica? E a questão não é apenas “Como podemos tornar a nossa realidade humana consistente com a realidade básica da física e da química?”; idealmente, devemos mostrar que a realidade humana é um desenvolvimento natural, uma consequência natural, da realidade mais básica das partículas físicas. Quero que se veja que, dado que temos electrões, é provável que acabemos por ter eleições, dado que temos protões, é provável que tenhamos presidentes. Para mim, não basta mostrar que podemos ficar com ambas as realidades, a humana e a básica. Temos também de mostrar que a realidade humana é uma consequência natural dessa realidade básica.

2. Realismo: um pressuposto de fundo e não outra teoria

O pressuposto fundamental subjacente a este trabalho, e na verdade, penso, a qualquer abordagem sensata dos problemas filosóficos contemporâneos, é que temos de começar com dois pressupostos teóricos fundamentais: a física atómica e a biologia evolucionista darwinista. Esta abordagem dos problemas filosóficos preserva muitos dos problemas tradicionais acerca da natureza da realidade, da natureza e dimensão do conhecimento humano, da objectividade em ética, e diversas questões filosóficas consagradas. A mudança principal é que encaramos agora estas questões de um ponto de vista naturalista. A palavra “naturalismo” tem sido apropriada de modo equivocado por muitas pessoas que querem negar factos óbvios acerca da natureza. É um facto natural óbvio que temos consciência e intencionalidade. Tipicamente, contudo, quando os filósofos falam acerca de consciência ou intencionalidade “naturalizada”, querem negar a existência destes fenómenos enquanto fenómenos naturais intrinsecamente subjectivos. Fazem-no porque herdaram uma série de confusões filosóficas, que irei expor depois. A filosofia neste livro é resolutamente naturalista, reconhecendo que a consciência, a intencionalidade, a racionalidade, a ética, a estética, e outras coisas mais fazem parte da natureza. Quero enfatizar a ideia de que tudo o que realmente existe faz parte da natureza. Se Kant tinha razão acerca o imperativo categórico, então o imperativo categórico faz parte da natureza.

Já fazia filosofia literalmente há vinte ou trinta anos antes de me dar conta de que era isso que estava a fazer. A minha teoria dos actos de fala foi concebida para mostrar como, quando faço ruídos com a minha boca, estes ruídos podem ser actos de fala com significado; as minhas perspectivas sobre a consciência e a intencionalidade analisam-nas como fenómenos biológicos comuns, como a digestão ou a fotossíntese, e assim por diante com outros problemas filosóficos. Portanto, essa é a nossa questão: como se relaciona a realidade humana com a realidade mais básica?

O leitor interpretará mal o projecto se pensar que se trata de reconciliar a ciência com o senso comum ou qualquer coisa desse tipo. “Ciência” não é o nome de um domínio ontológico. É o nome de um conjunto de métodos para captar os factos. O facto de os átomos de hidrogénio terem um electrão e o facto de eu ter nariz são ambos epistemicamente objectivos, e ontologicamente fazem ambos parte da mesma realidade. É preciso técnicas especiais para descobrir o facto de os átomos de hidrogénio terem um electrão, mas isso é uma consequência fortuita das nossas limitações e não identifica um reino ontológico separado. O meu objectivo não é, sublinhe-se, reconciliar “ciência” e “senso comum”. Essa parecer-me-ia uma missão disparatada. Os resultados científicos, uma vez aceites, são senso comum.

Disse que os nossos pressupostos básicos são a teoria atómica da matéria e a teoria evolucionista da biologia, mas há um pressuposto ainda mais fundamental que é tão fundamental que nem sequer é propriamente concebido como uma teoria, dado ser a condição prévia para haver teorias. Por vezes chamamos-lhe realismo, ou realismo metafísico. A ideia é esta: existe um mundo real, uma realidade completamente independente das nossas representações. Muitas das nossas representações, embora nem todas, são verdadeiras ou falsas dependendo de se adequarem ou não aos aspectos dessa realidade. O realismo, entendido deste modo, não é outra teoria, mas sim a condição prévia para haver teorias, posto que teorias como a teoria atómica da matéria ou a teoria evolucionista da biologia só são inteligíveis sob o pressuposto de que há uma realidade que existe independentemente da teoria de qualquer pessoa. O realismo tal como o entendo não é uma teoria acerca do que existe, mas sim a condição prévia para haver estas teorias. O pressuposto de que existe esta realidade é uma condição de possibilidade para haver teorias acerca de qualquer coisa. Portanto, quando chegamos a teorias acerca do dinheiro, que exigem representações como parte da própria existência do dinheiro, só pode haver essa realidade dependente da mente se houver uma realidade que lhe seja independente. O realismo está pressuposto na minha perspectiva não por ser mais uma teoria verdadeira, mas porque é uma condição prévia para haver quaisquer outras teorias de todo em todo, verdadeiras ou falsas.

3. Dois erros tradicionais

Pode-se pensar “Bom, mãos ao trabalho para resolver os problemas!”, mas estes não são assim tão fáceis de resolver. E uma razão é sermos herdeiros de duas tradições equivocadas, e tornarei claro por que razão estas tradições são equivocadas. A primeira é a de Deus, da alma e da imortalidade, e essa tradição diz que nós, com as nossas mentes e consciências, não fazemos parte do mundo físico; fazemos parte do mundo espiritual. E a alma, a mente, não faz parte da biologia — não poderia de modo algum fazer parte da biologia. Esta tradição é comummente denominada “dualismo” e, na sua versão mais famosa, graças a Descartes, “dualismo cartesiano”.

Ora, por estranho que pareça, o dualismo opõe-se a outra má tradição que faz exactamente o mesmo erro. Trata-se da tradição do “materialismo científico”, que afirma que a consciência não faz parte do mundo físico comum. Ora, o que diziam os dualistas? Que a consciência não faz parte do mundo físico comum. O materialista científico faz exactamente o mesmo erro de supor que a consciência não pode ser um aspecto biológico, comum, do mundo em que vivemos, que inclui a digestão, a fotossíntese, a secreção da bílis, a mitose, a meiose, e todos os outros fenómenos biológicos conhecidos. Esse será o meu objectivo principal na palestra de hoje e em parte da Palestra 2. Quero que o leitor veja que o nosso esforço para conseguir uma concepção unificada da realidade exige, antes de mais nada, que assimilemos a consciência a essa realidade. Portanto, essa será a questão que analisarei hoje, e essa questão insere-se nos três últimos séculos da história da filosofia.

4. Objectividade e subjectividade

Há um par de distinções conceptuais que tenho de fazer antes de podermos avançar. Em primeiro lugar, tenho de clarificar a distinção entre a objectividade e a subjectividade. Esta distinção é de uma importância central na nossa cultura intelectual, mas a distinção em si é sistematicamente ambígua entre um sentido epistémico, onde “epistémico” significa estar relacionado ao conhecimento, e um sentido ontológico, onde “ontológico” significa estar relacionado à existência. Seja-me permitido ilustrar as distinções. O sentido epistémico da distinção objectivo/subjectivo é uma distinção entre tipos de afirmações. Se digo que Francisco Goya era espanhol, essa afirmação é epistemicamente objectiva — podemos descobrir de facto se é verdadeira ou não. Mas se digo que Francisco Goya era um pintor melhor que Diego Velasquez, essa afirmação é uma questão de opinião subjectiva. Estes dois exemplos ilustram a distinção entre os sentidos epistémicos de objectividade e subjectividade: a distinção é entre tipos de afirmações. Contudo, subjacente a essa distinção está uma distinção entre modos de existência, uma distinção ontológica. As montanhas, as moléculas e as placas tectónicas têm uma existência que, ontologicamente, é inteiramente objectiva; a existência destas coisas é independente de experiência de qualquer pessoa. Mas as dores, as cócegas e as comichões só existem na medida em que são objecto de experiência; são ontologicamente subjectivos, e não ontologicamente objectivos. Por que razão estas distinções são tão importantes? Descobriremos no decorrer destas palestras que muitas vezes damos explicações de fenómenos onde a explicação é epistemicamente objectiva, muito embora os fenómenos em si sejam ontologicamente subjectivos. Apenas para dar alguns exemplos, o pedaço de papel que tenho na minha carteira é dinheiro na União Europeia, mas, evidentemente, o facto que o torna dinheiro não é um facto da física; é um facto acerca das nossas atitudes, e portanto o facto tem um elemento de subjectividade ontológica. Contudo, é um facto epistemicamente objectivo que esta é uma nota de cinquenta euros. Isto é historicamente importante porque quando falarmos acerca da consciência, que é o tópico principal da palestra de hoje, estaremos a falar acerca de um domínio que é ontologicamente subjectivo, mas acerca do qual podemos ter uma teoria epistemicamente objectiva. Quando pela primeira vez me interessei pela consciência, pensei: “Os cientistas têm de descobrir como o cérebro faz isso; têm de descobrir como o cérebro causa a consciência”. E fui falar com cientistas na Universidade da Califórnia em São Francisco, que tem uma componente de investigação neurobiológica bastante ampla, e disse-lhes algo como isto: “Estou a pagar-lhes para quê? Ponham por favor mãos ao trabalho e resolvam o problema da consciência! Como cria o cérebro a consciência?” E uma resposta comum que obtive foi “Segundo a sua própria perspectiva, a consciência é subjectiva e a ciência é objectiva, portanto não pode haver uma ciência da consciência”. Ora, espero que o leitor seja capaz de ver que isso é uma falácia da ambiguidade. A ciência é de facto epistemicamente objectiva, no sentido em que o cientista tenta dar uma explicação da realidade cuja verdade ou falsidade não dependa das suas atitudes pessoais, mas a subjectividade ontológica de um domínio não torna impossível ter uma teoria científica epistemicamente objectiva desse domínio. A consciência é ontologicamente subjectiva; só existe enquanto é objecto de experiência, mas uma ciência da consciência pode ser uma ciência como qualquer outra, muito embora a objectividade epistémica da ciência tenha de ser consistente com a subjectividade do domínio.

5. Independente do observador e relativo ao observador

Farei mais uma distinção antes de prosseguirmos. Uma parte importante da realidade que iremos analisar inclui fenómenos sociais como o dinheiro, a propriedade, o governo e o casamento. Ora, todos esses fenómenos são aquilo que são em parte porque as pessoas pensam que são aquilo que são, e neste sentido diferem de coisas como montanhas, moléculas e placas tectónicas. Portanto, precisamos de uma distinção entre aqueles fenómenos que são independentes do observador (ou, digamos, independentes de atitudes), e isso inclui montanhas, moléculas e placas tectónicas, e aqueles que são relativos ao observador, e isso inclui o dinheiro, a propriedade, o governo, o casamento, as universidades, os coquetéis e as férias de verão. E a esta altura já será nítido que os fenómenos relativos ao observador contêm elementos de subjectividade ontológica; por exemplo, o dinheiro só é dinheiro porque pensamos que é dinheiro. Portanto, temos um elemento de subjectividade ontológica em todos os fenómenos relativos ao observador; mas, em muitos casos, podemos fornecer uma explicação epistemicamente objectiva destes fenómenos, ainda que sejam pelo menos em parte ontologicamente subjectivos. E, uma vez mais, isto será importante porque quando falarmos acerca de fenómenos como o dinheiro e a propriedade — quando falarmos acerca da civilização humana — estaremos a falar acerca de fenómenos que são relativos ao observador. Mesmo quando falarmos acerca dos fenómenos da ética e da estética, os fenómenos serão relativos ao observador, e o nosso objectivo será tentar chegar a uma explicação epistemicamente objectiva destes fenómenos relativos ao observador. Nem vale a pena falar da confusão que se gera quando não se compreende estes aspectos.

Os fenómenos relativos ao observador, enquanto tais, são criados por estados mentais humanos, mas os estados mentais que os criam, tipicamente conscientes, mas por vezes inconscientes, são eles próprios relativos ao observador. Por exemplo, este pedaço de papel é uma factura de vinte dólares apenas em relação às atitudes conscientes das pessoas. Portanto, o seu estatuto como factura de vinte dólares é relativo ao observador, mas as atitudes conscientes que criam o fenómeno relativo ao observador não são em si relativas ao observador.

6. Consciência

Dito isto, examinemos o problema da consciência. Este é supostamente um problema filosófico desesperadamente difícil, o denominado problema da mente-corpo. É um problema com uma longa história na civilização europeia. Argumentarei que se clarificarmos as distinções que tenho estado a fazer, tem uma solução bastante simples.

Em primeiro lugar, temos de definir os nossos termos. Diz-se que “consciência” é difícil de definir. Penso que é fácil definir se estivermos a falar de uma definição de senso comum que identifica o alvo da investigação. Temos de distinguir a definição de senso comum, que identifica aquilo acerca do qual estamos a falar, da definição científica, que surge depois da investigação. Por exemplo, a água — qual é a definição de “água”? Bom, é um líquido transparente, incolor e sem sabor que cai do céu na forma de chuva e corre nos rios e riachos. Essa é a definição de senso comum. Posteriormente, descobrimos que a água é H2O. E essa é a definição científica. Com “consciência” estamos ainda na fase do “líquido transparente, incolor e sem sabor”; ainda não temos uma definição científica. Mas é muito fácil dar uma definição de “consciência” em termos de senso comum. A consciência consiste em todos os nossos estados em que sentimos, temos senciência ou estamos cientes; estes estados começam pela manhã quando acordamos de um sono sem sonhos, e continuam durante todo o dia até irmos dormir novamente, ou quando ficamos inconscientes de outra maneira qualquer. Nesta perspectiva, os sonhos são uma forma de consciência. Então é isso: experiências em que sentimos, temos senciência ou estamos cientes tendem a acompanhar o estar acordado, embora os sonhos sejam também uma forma de consciência.

Contudo, também temos de saber quais são as características essenciais da consciência. Aquilo que acabei de dar é a definição geral de consciência. O que iremos mostrar é que a construção da linguagem, da sociedade e da civilização humana se baseia na consciência. A consciência que usamos para criar fenómenos relativos ao observador — como o dinheiro, a propriedade, o governo e o casamento — não é em si relativa ao observador. É um fenómeno independente do observador. Ora, aqui está o paradoxo aparente: com poucas excepções, todos os fenómenos relativos ao observador são criados pela consciência. O dinheiro, a propriedade, as universidades, o casamento, o governo, os coquetéis, as férias de verão, os impostos — todos são criados pela consciência. Mas a consciência que os cria é independente do observador, ou intrínseca; não é relativa ao observador. Como funciona isso? Responderei a esta questão posteriormente.

Quais são as características essenciais da consciência? Irei elencar algumas.

6.1. Realidade e irredutibilidade

A primeira é uma característica frequentemente negada: a irredutibilidade da consciência. A consciência é irredutível; não nos podemos livrar dela. Há muitos filósofos que querem livrar-se da consciência; pensam que se acreditamos na consciência, estamos de volta a Descartes: temos de acreditar em Deus, na alma e na imortalidade. Quero afirmar que a consciência é um fenómeno biológico comum. Contudo, e isto é crucial, não nos podemos livrar da consciência mostrando que é uma ilusão, à semelhança do que podemos fazer com outras explicações científicas de ilusões. Mostramos que o pôr-do-sol é uma ilusão criada pela rotação da Terra em torno do eixo, e mostramos que os arcos-íris são ilusões criadas pela refracção da luz no vapor da água. Por que razão não podemos mostrar que a consciência é igualmente uma ilusão? E a resposta é que a distinção ilusão/realidade baseia-se na distinção entre como as coisas parecem conscientemente — conscientemente parece que há um arco no céu, ou que o Sol está a pôr-se atrás da montanha — e como elas são realmente. São realmente algo diferente daquilo que conscientemente parece que são. Contudo, com a própria existência da consciência não podemos fazer a distinção entre as coisas tal como conscientemente parece que são e as coisas tal como realmente são — porque se conscientemente nos parece que estamos conscientes, então estamos conscientes. Tenho respeito pelo neurobiólogos, mas se vierem dizer-me “Fizemos um estudo bastante cuidadoso do seu cérebro e você não está consciente. Descobrimos que a sua cabeça está completamente cheia de palha; você não pode em qualquer circunstância estar consciente” não pensarei “Bom, estas pessoas são muito inteligentes e talvez eu não esteja consciente”. Não pensarei isso; não pensarei “Temos de nos render aos especialistas”. No que diz respeito à própria existência da consciência, se conscientemente parece-me que estou consciente, então estou consciente. Não podemos traçar a distinção ilusão/realidade para a existência da própria consciência à semelhança do que podemos para fazer para o pôr-do-sol e os arcos-íris, e até para as cores e a solidez. É claro, no entanto, que podemos estar equivocados acerca dos detalhes da consciência. Duas pessoas pensavam, por exemplo, que estavam apaixonadas, mas afinal estavam bêbedas, ela parecia extremamente bonita àquela luz, e estava a tocar aquela música espanhola que eles gostam de tocar. Aquelas duas pessoas não estavam realmente apaixonadas, mas pensaram conscientemente que o estavam. Mas se o leitor pensa conscientemente que está consciente, então está consciente. Isto é um facto básico: a consciência é uma característica básica da nossa biologia, e não podemos livrar-nos dela mostrando que se trata de uma ilusão. Note-se que estamos ainda a falar de fenómenos biológicos comuns. Não há qualquer dualismo, qualquer alma, qualquer imortalidade; estamos apenas a falar de uma função do cérebro. O cérebro funciona para produzir e sustentar a consciência.

6.2. O que é sentir: qualitatividade

A segunda característica da consciência é que para cada estado consciente há algo que é o sentir-se naquele estado. Há aquilo a que chamo um carácter qualitativo de cada estado consciente. Todos os estados conscientes têm um sentir que é específico daquele estado consciente. Pense na diferença entre as experiências de beber água, escutar música e preencher a declaração de IRS. Esses são três estados conscientes distintos com três aspectos qualitativos diferentes. O aspecto qualitativo também é uma característica do processo de pensamento consciente. Podemos pensar que não há qualquer qualidade especial quando se pensa que sete mais cinco é doze. Mas é claro que há um certo aspecto qualitativo, e podemos ver isso se tentarmos pensar a mesma coisa em francês ou espanhol. No meu caso, o que sinto é bastante diferente de “sete mais cinco é doze”, muito embora as experiências tenham o mesmo conteúdo semântico.

6.3. Subjectividade ontológica

Deste modo, temos duas características da consciência: é irredutível e qualitativa. A qualitatividade implica a subjectividade ontológica. Porque na consciência há um tipo especial de aspecto qualitativo, a consciência é ontologicamente subjectiva. Os estados conscientes só existem como eventos ocorrendo num ser consciente, algo que faz parte de um ser humano ou de um animal. Portanto, com a consciência, obtém-se uma ontologia subjectiva, e isso segue-se do seu aspecto qualitativo.

6.4. O domínio consciente unificado

Uma quarta característica é uma coisa impressionante acerca da consciência (e isto será mais importante quando chegarmos à criação da realidade social — do dinheiro, da propriedade e do governo): todas as nossas experiências conscientes se organizam num domínio consciente unificado. Assim, não oiço apenas o som da minha voz, nem me limito a ter a experiência do sabor da água, nem olho apenas para as pessoas na plateia; além disso, tenho todas estas experiências como parte de um domínio consciente unificado. Todas as experiências qualitativas, como saborear a água ou ver a cor vermelha, fazem parte de uma imensa experiência qualitativa — o domínio consciente unificado.

Esta característica, talvez mais do que qualquer outra, confere à consciência o seu enorme poder. Posso incorporar, em qualquer experiência consciente, um vasto número de experiências específicas, e de todas tenho experiência como componentes da experiência ampla que constitui aquele estado consciente alargado ao longo do tempo. No momento presente, tenho consciência não apenas do meu esforço intelectual ao tentar compor estas frases, mas também das pessoas que vejo no auditório, do som da voz à medida que falo, das paredes e da mobília na sala, do gostinho ténue do café que tenho estado a beber, dos outros problemas importantes que tenho de resolver nesta palestra, etc., etc.… Tudo isto faz parte de um único domínio consciente unificado. Dos grandes filósofos, penso que só Kant estava completamente ciente da importância da unidade da consciência. A isto chamou “a unidade transcendental da apercepção”.

Esta característica da consciência será trivializada se dissermos que é uma questão de informação, que simplesmente temos informação acerca de todo um domínio consciente. Essa é uma trivialização da unidade da consciência num sentido que espero tornar claro quanto falar acerca das confusões que existem na noção de informação.

6.5. A consciência funciona causalmente

Há outras características importantes da consciência, e uma que será muito importante para o percurso desta investigação — e esta é uma quinta característica — é que a consciência funciona causalmente. É verdade que há muitos filósofos que dizem: bom, a consciência não poderia funcionar causalmente — como poderia o pensamento pôr a matéria em movimento? Quer ver como isso funciona? Decido levantar o meu braço — e, pasme-se!, o maldito levanta-se! Isto é certamente espantoso para os cartesianos, já se vê, mas não é realmente espantoso. Irei explicar como isto funciona a seu tempo, mas o importante é que não há qualquer dúvida de que a consciência funciona causalmente. Isto obcecou Descartes — como poderia a consciência funcionar causalmente? E os ocasionalistas disseram que não poderia funcionar causalmente. Na explicação deles, eu decido levantar o meu braço e Deus levanta-o.

E aqui está um facto incrível. Não dizemos que o facto de braço se erguer é como a chuva na Califórnia, em que às vezes chove e outras vezes não; não dizemos que o braço às vezes se ergue e outras vezes fica quieto. Não. O braço ergue-se quando quero que se erga. Quando quero levantar o braço, ele levanta-se, e isso é um facto impressionante, que devemos levar a sério. Os ocasionalistas, a propósito, tinham esse nome porque pensavam que não havia qualquer relação causal entre o mental e o físico; o evento mental de tentar levantar o braço era a ocasião, e não a causa, de o meu braço se erguer, e isso porque foi Deus na verdade que o causou, e a ocasião ocorreu, mas não foi a causa.

6.6. Intencionalidade

A consciência tem uma sexta característica: a intencionalidade. A nossa consciência direcciona-se tipicamente para objectos e estados de coisas no mundo. E no inglês adoptámos a palavra alemã Intentionalität, intencionalidade. Isto é lamentável em inglês, dado que faz parecer que tem uma conexão especial com intend (pretender), no sentido em que pretendo ir ao cinema. Por isso, quero abrandar e definir a intencionalidade. A intencionalidade é simplesmente aquela característica da mente em virtude da qual os estados mentais são acerca de objectos ou estados de coisas no mundo, ou direccionam-se para eles. A nossa consciência não é toda intencional neste sentido — por vezes temos sentimentos de ansiedade quando nenhuma razão há para nos sentirmos ansiosos; apenas nos sentimos ansiosos. Mas ter sede, ver algo do outro lado da sala ou ouvir um som têm todos esta intencionalidade intrínseca; todos integram um direccionamento. Irei falar detalhadamente acerca da natureza da intencionalidade nas palestras seguintes, mas é importante ver que de um ponto de vista darwinista, do ponto de vista da nossa sobrevivência, a intencionalidade da consciência é essencial, dado que nos permite ter consciência de objectos e estados de coisas por meio da nossa consciência. A intencionalidade consciente é um dispositivo cognitivo extraordinariamente poderoso por meio do qual nos tornamos cientes do nosso meio ambiente e o controlamos.

Essas são meia-dúzia de características principais da consciência, mas há muitas outras que quero mencionar, simplesmente para que o leitor esteja ciente delas. A consciência é um facto impressionante, e é muito fácil imaginar um universo em que não existe; mas, felizmente para nós, existe.

6.7. Consciência activa e passiva

A próxima característica que quero descrever é a distinção entre consciência activa e a passiva. Há uma distinção entre fazer algo voluntária e intencionalmente, e algo limitar-se a ocorrer. É a experiência de ter consciência do agir livremente que nos dá a convicção de que temos livre-arbítrio. Não sei se temos livre-arbítrio. Falarei sobre isto no decorrer destas palestras. Mas é a consciência activa que nos dá a convicção do livre-arbítrio. A consciência passiva é típica da percepção. Portanto, se seguro esta chávena e olho para ela, vê-la não é uma questão de livre-arbítrio; está determinado pela física e pela biologia da situação. Note-se o facto importante de que falamos acerca da liberdade de acção, mas ninguém fala acerca da liberdade de percepção. Não há qualquer problema da liberdade de percepção de um modo comparável ao problema da liberdade de acção. E isto deve-se à distinção entre a consciência activa de fazer algo e a consciência passiva de ter experiência perceptiva de algo.

6.8. Estado de espírito

Outra característica importante da consciência é que todas as nossas experiências conscientes ocorrem num ou noutro estado de espírito. Não tem de ser um estado de espírito que tenha nome, como estar eufórico ou deprimido, mas há um sabor peculiar nas experiências conscientes. Vê-se isto quando se passa por uma mudança drástica. Por exemplo, o leitor chega a casa e descobre que tem uma carta das Finanças, e eles querem investigar a sua declaração de rendimentos porque pensam que o leitor tem vários milhares de dólares. Isto irá mudar o seu estado de espírito. Certa vez cheguei a casa e abri um envelope banal e estava prestes a deitá-lo fora, mas lá dentro estava um cheque de nove mil setecentos e sessenta e três dólares. Diziam que ganhei o cheque porque alguém esteve a usar o meu trabalho sem a minha permissão e aquilo era o pagamento dos direitos de autor. Eu não sabia fosse o que fosse sobre isso — o envelope veio de um escritório de advogados de Los Angeles — mas posso dizer-vos que aquilo mudou o meu estado de espírito. O meu estado de espírito melhorou imenso.

6.9. Prazer e desprazer

É verdade que o estado de espírito está relacionado a um aspecto de prazer ou desprazer da consciência, mas não é o mesmo. Para qualquer evento consciente, há questões como “Gostaste?” ou “Foi divertido?” ou “Foi desagradável, deprimente, excitante, emocionante, extasiante, deplorável, aborrecido ou entediante?” E isto significa simplesmente que, para qualquer experiência, há uma dimensão da experiência onde coisas como “Foi um prazer ou um desprazer?” entra em jogo; trata-se de categorias relevantes para qualquer experiência consciente.

6.10. Centro e periferia

Também me parece que em relação à consciência temos de fazer uma distinção entre o centro e a periferia, e esta distinção é muitas vezes expressa no vocabulário da atenção: “A que estás a dar a atenção agora, e a que não estás a dar a atenção?” E na verdade temos uma quantidade considerável de investigação neurobiológica acerca da atenção, acerca do que é mudar aquilo a que se dá atenção. Portanto, neste momento não estou a dar atenção às luzes superiores; estão muito na periferia da minha consciência. E na verdade é quase irresistível usar a metáfora do projector: podemos deslocar a incidência da nossa consciência como quisermos; podemos fazer o farol da nossa consciência iluminar qualquer coisa que porventura nos interesse. Aquilo em que queremos concentrar-nos fica no centro da nossa consciência, e não na periferia.

6.11. Contextualidade

Há outra característica que é mais difícil descrever, à qual chamarei a contextualidade da consciência. Isto significa que qualquer experiência consciente é acompanhada de um sentido de coisas como “Onde está a ocorrer?” ou “Onde estou?” Acordamos no meio da noite e pensamos “Que diabos, onde estou?” Na última noite perguntei-me “Onde está o meu cão? Onde está Tarski? Não está aqui? Devo estar num lugar muito estranho.” Isto é o que acontece quando viajamos. Porém, numa consciência normal, sabemos coisas como “Que época do ano é esta?”, ou “Já tomei o pequeno-almoço?”, ou “Em que mês estamos?” ou, na universidade, “Em que semestre estamos?” E há o facto deprimente de que quando se fica velho se tem uma espécie de vertigem, uma espécie de tontura, quando não se é capaz de lembrar coisas como “Onde estamos?”, “Em que mês estamos?”, “Que dia da semana é hoje?” Um sentido da contextualidade da consciência parece-me uma característica da consciência normal.

6.12. O eu

Há outra característica que nos traz muitas dificuldade filosóficas, mas penso que não podemos evitar enfrentá-las; é que qualquer consciência não patológica inclui um sentido do eu.

Neste momento, no meu fluxo de consciência presente, não se trata apenas de experiências conscientes a flutuar no vazio, como disse Hume; sou eu que tenho estas experiências conscientes. Ainda que me esqueça o meu nome ou de onde vim, todas as minhas experiências conscientes ocorrem a um único eu. Ora, quando falamos da mente, somos obrigados a falar de Descartes. E quando falamos do eu, somos obrigados a falar acerca de Hume, pois Hume disse que que não havia qualquer eu. Segundo Hume, os filósofos dizem-nos que há um eu, mas como encontramos esta entidade misteriosa? Suponha-se que franzo a testa, concentro toda a minha atenção e penso “O que é o eu?” Soa melhor em alemão: “Was ist das Ich?” E depois, diz Hume, quando olho bem de perto, o que descubro é que há uma sensação de pressão na minha testa — será isso o eu? Não, isso não pode ser o eu. Bom, onde está o eu? Hume diz que não há qualquer eu. Isso não é satisfatório, e voltarei a essa questão em palestras posteriores.

7. Três erros graves na história da filosofia

Até agora dei-vos uma dúzia de características da experiência consciente. Poderia continuar a lista, mas penso que temos material suficiente para fazer uso do conceito de consciência nas nossas investigações subsequentes. Agora quero voltar-me para uma série de erros graves na história da filosofia. Será para nós muito difícil ultrapassar estes erros, mas seja-me permitido mencionar alguns deles. Aqui estão os erros mais terríveis. O primeiro já mencionei, e esse é a grande batalha acerca da mente e do corpo. Penso que se trata de um erro grave, e ambos os lados estão igualmente equivocados. Um dos lados é o lado de Deus, da alma e da imortalidade, e o outro é o lado do materialismo científico. Ambos cometem exactamente o mesmo erro: dizem que a consciência não faz parte do mundo físico comum. Quero afirmar que é exactamente isto que a consciência é, tal como tenho estado a descrevê-la.

A maioria dos meus alunos ficam maravilhados ao descobrir o quão extraordinária é a teoria de Descartes. Ficam surpreendidos ao descobrir que Descartes pensou que os animais não poderiam ter consciência. Mas consegue-se ver por que razão Descartes tem de dizer que um animal não tem consciência: porque o animal é apenas um corpo vivo. Se fôssemos apenas corpos, não teríamos consciência. O que nos torna conscientes é que Deus anexa uma alma ao corpo. Deus sabe onde a anexa, mas a alma não faz parte do mundo físico. E esta tradição, a tradição do dualismo, a tradição que afirma que a mente não faz parte do mundo comum, físico e biológico — que a consciência não é um processo comum como a digestão — tem tido em efeito muito negativo na nossa vida intelectual.

O pior aspecto deste erro é supor que porque a consciência é real e irredutível, não pode ser um aspecto físico comum do mundo. Este erro pode ser refutado com um exemplo simples. Quando conscientemente ergo o meu braço, um dos factores do evento é a experiência de agir, o esforço consciente. Outro factor do mesmíssimo evento é a secreção de acetilcolina na fenda sináptica dos neurónios motores. E há muitos outros processos neurobiológicos semelhantes. O que é importante enfatizar é que não há dois eventos separados, a tentativa consciente e a neurobiologia, embora sejam níveis diferentes de descrição de um e o mesmo evento: não se pode obter um sem o outro. Seja-me permitido insistir que este evento único é simultaneamente uma tentativa consciente e um complexo de processos neurobiológicos.

O segundo erro, contudo, devemos a Hume, e é o erro acerca da causalidade. Segundo esse erro, a causalidade não é uma relação real no mundo real. No mundo real, há apenas uma sequência regular de eventos; a alguns chamamos causas e a outros efeitos, dado que ocorrem juntos regularmente. Há uma “conjunção constante” de casos semelhantes. Mas Hume afirma que o mundo não se articula com a cola da conexão necessária. Penso que se articula exactamente com a cola da conexão necessária e que Hume está enganado.

Um terceiro erro, e este é realmente grave, diz que nunca vemos o mundo real. Aquilo que vemos é o efeito do mundo real no nosso sistema nervoso. Quando Quine deu estas palestras, penso que falou não acerca da percepção consciente, mas sim de “estímulos”. Na sua teoria, há estímulos, e eu respondo a estes estímulos. Penso que essa é uma abordagem incorrecta. O único interesse dos estímulos é produzir percepções conscientes do mundo real. Vejo a minha mão, por exemplo. Ao contrário de mim, há toda uma tradição que diz “Não, não poderias ver a tua mão; o máximo que poderás alguma vez ver são as tuas ideias, ideias na mente”. Estes objectos de percepção imediata têm nomes diferentes — Descartes e Locke chamaram-lhes “ideia”, Hume chamou-lhes “impressões”, Kant chamou-lhes “representações”, e muitos filósofos recentes chamaram-lhes “dados dos sentidos”. Mas em qualquer destes casos não podemos ver o mundo real; tudo o que podemos ver são as nossas próprias impressões, ideias ou dados dos sentidos. Quero afirmar que isso é um erro grave. Mas caso se pense que ninguém defendeu esta perspectiva, seja-me permitido explicar de quem estou a falar — Locke, Berkeley, Hume, Descartes, Leibniz, Spinoza, Kant, Hegel e Mill. Simplesmente quase toda a gente, todos os grandes filósofos, acreditavam que não podemos ter acesso perceptivo directo ao mundo real. Na Palestra 4, sobre a percepção, argumentarei que isso é exactamente o que temos. Vejo a chávena na minha mão — não vejo uma imagem da chávena ou uma representação da chávena, e não estou a responder ao estímulo da chávena; vejo de facto a chávena. E seja-nos permitido usar esta expressão horrorosa: vejo a chávena em si, a chávena “an sich”. Gostaria de reescrever Kant, de modo a que ele dissesse na primeira página da Crítica da Razão Pura: “Tipicamente, numa situação perceptiva, vemos as coisas em si e vêmo-las como realmente são”. Neste momento vejo uma chávena de café em si, e vejo-a quase vazia.

John Searle

Da Realidade Física à Realidade Humana (Lisboa: Gradiva, 2020), Cap. 1.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com

terça-feira, 15 de abril de 2025

Legendários, uma mistura de cristianismo com coaching masculino

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 14 de abril de 2025

Legendários, uma mistura de cristianismo com coaching masculino.

A reação de muitos homens a desdobramentos da mudança do papel social e sexual das mulheres está só começando. Luiz Felipe Pondé para a FSP:

Certa feita ouvi de um colega, um homem trans, que eu, como "homem natural", carregava sobre mim o peso da opressão que "nós" causamos ao longo da história, enquanto ele nunca havia exercido opressão alguma, como mulher que nascera. Por isso, não tinha culpa nenhuma, mas sofrera a opressão causada pelos "meus semelhantes". A ideia era de superioridade moral. Sorri diante do comentário e mudei de assunto, mas antes esclareci que nunca senti culpa nenhuma por opressão nenhuma a mim imputada e aos "meus semelhantes". A ideia de que os homens são uma raça nefasta tem estatuto de conceito nas ciências humanas.

Imagino o que um comentário semelhante a esse pode causar num moleque adolescente numa sala de aula. Bem não vai fazer. Mas a maioria dos responsáveis pelos jovens perderam totalmente a noção do que andam fazendo. "Como educar meninos para deixarem de ser doentes? Por que eles são tão ruins? Agressivos? Por que tanto ódio?" Com a série "Adolescência", da Netflix, virou moda descer ainda mais o cacete nos meninos sob o disfarce de que querem "ajudar os meninos a evoluírem". A síndrome do "horror aos meninos" inundou o discurso dos inteligentinhos. Mas o "hype" dessa minissérie logo passa, tenho certeza.

A ordem do dia é, de todas as formas possíveis, transformar os meninos numa patologia a ser sanada. Sempre é chocante como ficamos incapazes de olhar o mundo sem os olhos míopes das ideologias. O que as missionárias feministas esperam é que as novas gerações de meninos sejam "educados" a ter vergonha de sua própria condição. A vergonha de si mesmo e de seus semelhantes é o primeiro passo para a redenção masculina. A histeria virou discurso político e psicológico.

Se Vladimir Lênin, em 1917, instaurou a luta de classes no seio do campesinato russo, alimentando o ódio da imensa maioria dos camponeses miseráveis contra os poucos bem-sucedidos, instaurando um massacre destes por aqueles, hoje a luta de classes está instalada entre meninos e meninas nas salas de aulas, nas escolas e nas famílias. E, como acontece em toda luta de classe, seu alimento é o ódio justificado.

Está em curso um processo em que os homens são forçados a pensar na sua masculinidade, seja lá o que isso for, e as missionárias feministas lideram essa "revolução". Se não existe nenhuma clareza sobre o que é "ser mulher", por que haveria, então, sobre a masculinidade?

Mas o rolo compressor do "horror aos meninos" não vai parar. Pais amedrontados, que temem ter filhos homens, professores, jornalistas, psicólogos, cientistas sociais, intelectuais, artistas, agentes culturais, todos se juntam na construção desse fenômeno cultural que é o "horror aos meninos", que só podem ser redimidos se aceitarem que são doentes, maus e, por isso mesmo, se submeterem à autoridade das missionárias.

A reação de muitos homens aos desdobramentos da transformação do papel social e sexual das mulheres está só começando. Se nesse momento as reações são basicamente infantis e ressentidas —lembremos que o ressentimento é a paixão política básica das reações sociais—, a tendência é que esse processo se torne mais complexo, associando elementos culturais, sociais, psicológicos e políticos mais densos e que nem por isso deixe de ser elementar como movimento vital.

O movimento "Legendários" é um fenômeno dessa ordem de maior densidade cultural. Operando no seio do evangelicalismo, nascido até onde sei na Guatemala, esse movimento mescla uma base forte de cristianismo vivencial com laivos importantes de "coaching" masculino. O legendário número um é Cristo, claro.

O mote é "devolver os heróis para as famílias", isto é, homens que "desfrutam" da subida à montanha —típica metáfora espiritual— com outros homens têm uma vivência um tanto mística, ouvem a voz de Deus, se ajoelham e choram diante dele. A partir daí, viram homens que caminham com Deus. E mais, e isso é essencial: descobrem que os homens devem andar juntos, um apoiando o outro, pois assim "o inimigo" —as diversas formas do Diabo— não os atingirá.

Trata-se de uma iniciativa ancorada na tradição de peregrinação comum a várias religiões, transformação espiritual e superação das fraquezas. Como toda peregrinação, experimenta-se o desafio de seus próprios limites e demônios —jornada do herói— e, assim, esse homem fica mais forte junto aos seus semelhantes. A ideia do monge guerreiro —não são monges, claro, são protestantes— é um clássico medieval das cruzadas. Nenhum traço de machismo ou misoginia evidentes. Mas, sim, de homens que cuidam das suas mulheres e filhos. A ver.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

sexta-feira, 11 de abril de 2025

“Sex ‘N’ Drama”: um estudo sobre a sexualidade


 

Publicação compartilhada do site O BOÊMIO, de 2023

“Sex ‘N’ Drama”: um estudo sobre a sexualidade

Por Biláh Bernardes e Rogério Salgado *

Estudar a sexualidade, em todas as idades, inclusive na infância, foi o grande passo inovador de Sigmund Freud. Sua teoria da sexualidade infantil lhe custou muitos dissabores com seus colegas médicos. Nessa época, o assunto era visto como algo transgressor. Freud, apesar disto, introduz uma nova maneira de pensar a sexualidade, deslocando o eixo divino (de bem e de mal) e cultural para o inconsciente e para a moralidade. A moral sexual via as práticas sexuais (sexo sem procriação) como pecaminosas e as transgressivas (prostituição, aborto, travestismo e amizades românticas) geravam punição. Ao abrir caminho para que o desejo e o prazer se desvinculassem da procriação (religião e cultura) Freud possibilitou às mulheres se manifestarem e construírem sua autonomia sexual, mesmo a longo prazo, pois somente nos anos 1960 algumas tendências na moda e a invenção da pílula anticoncepcional, sucesso absoluto entre as jovens da década, tornaram evidente a liberdade sexual. E foi a liberdade sexual o traço de mudança de comportamento que melhor caracterizou o Flower Power (o Poder das Flores).

Das tesouras do estilista francês André Courrèges, em 1964, surgiu a minissaia. Ele subiu o comprimento das saias de sua coleção de verão cerca de 15 centímetros acima dos joelhos e a jovem inglesa Mary Quant a transformou em sucesso absoluto entre as jovens desta década. Durante vinte anos, dos anos 1960 aos 80, houve mais celebração do sexo do que em qualquer outro período da história; havia a pílula e a AIDS ainda não havia mostrado sua cara. Mas o auge dessa liberdade surge no maior festival de rock de todos os tempos: Woodstock. Ocorrido em agosto de 1969, nos EUA, esse encontro marcou uma geração de jovens ligados aos ideais do movimento hippie e ao rock’n’roll. Woodstock foi um evento embasado pelos preceitos contraculturais que pregavam, entre outras coisas, a paz e o amor com sexo livre.

Todo esse preâmbulo objetiva falar de um dos pontos altos em lançamentos neste ano de 2023, que foi o livro “Sex ‘N’ Drama”, ideia inicial do escritor e poeta Lecy Sousa, abraçada pelo poeta, filósofo e editor Rodrigo Starling e pelo Selo Editorial Starling. O livro vem com assinatura de seis grandes escritores que são: Adriano Borçari, Helder Clério, Lecy Sousa, Leonardo de Magalhaens, Marcos Fabrício e Marlon Nunes Silva.

Leonardo de Magalhaens abre com o depoimento “Desejos do corpo, vícios da alma”, texto este mais literário do que psicológico, justamente pelo autor se dedicar mais à literatura, o que o fez um escritor experiente. Aqui, ele se transmuta numa personagem feminina que narra, na primeira pessoa, suas experiências na vida, no sexo, na forma de amar, incluindo sua primeira experiência aos dez anos. Por causa de um assédio, se envolve com o gerente da Auto Peças em que trabalhava, um relacionamento que dava prazer sexual e desprazer por estar com parceiro ciumento, agressivo, pegajoso. Surge outro cara, levando-a a conhecer o que seria uma disputa de dois homens por uma mulher. Se vê na solidão de não ter ainda amigos, estando longe da família. Conhece a Val e trava um longo conhecimento da dualidade masculina com a bissexualidade feminina, que gostava de ambos os sexos. Descobre no amigo Gi, que na verdade era Toni e que se sente mulher, a identidade de gênero diferente da biológica. Questiona, mas não julga, o porquê de homem desejar não ser homem e por aí afora. Aqui, o questionamento pode ser ou não do autor, mas é na fala da personagem que, na verdade, ele, autor, expõe o que seria o retrato da grande maioria das pessoas humanas deste mundo de verdades, mentiras e até hipocrisias. A personagem conta suas aventuras, prostituições, antes de alcançar as dúvidas que lhe afligem. E questiona: “Mas como explicar aqueles e aquelas que não se encaixam, não se reconhecem no próprio sexo? Como entender uma menina que não se vê como menina e quer que a vejam como menino?”. Tantos questionamentos! Mas não foram perguntas em busca de respostas; foram em busca de pensar sobre. Pensar e encontrar, não respostas nas coisas, mas respostas internas. Tanto pensar a leva a uma dedução lógica sobre os vícios. Por isso decide buscar a universidade, ajudar as pessoas como enfermeira que conheceu os vícios e as mazelas da vida. Culmina morando só, por opção, aos 50 anos, quando chega a uma conclusão clímax da narrativa de que, entre os vícios, os piores são os da alma.

O segundo autor, Marcos Fabrício, nos mostra um aprofundamento sobre o tema, com muita maturidade e lucidez, tendo consciência de que em pleno século 21, o tema continua tabu para muitos. Já de início questiona a conquista como ato colonizador que pode transformar o homem em algoz de toda esta história. E nos mostra que a sexualidade, esse exercício de vida, avança para além do elemento biológico, não se restringindo somente aos órgãos genitais e às questões de gênero e sexo, mas está até numa troca de olhares. E alerta: “Nestes tempos de celebrar a diversidade com seus diferentes biotipos, orientações sexuais, identidades de gênero, dentre tantas outras características, é necessário ter a coragem de entender os impactos reais deste substantivo de quatro letras, mapear todas as lições positivas que ele traz e quais impactos causa em nossa vida”. Nos fala que é dentro de casa que devemos mudar a cultura de ser tabu falar de sexo, apesar do conservadorismo arcaico ter nos castrado desse assunto. O resultado dessa omissão é deixar nossos filhos não informados sobre, por exemplo, infecções sexualmente transmissíveis e o não entendimento das diferenças de identidade de gênero e orientação sexual, gerando futuramente preconceitos, que findam na violência. Ao nos abrir os olhos para esse problema de sermos avestruzes com nossas cabeças nos buracos do não querer ver e nem saber, Fabrício deixa claramente explícito que: “Precisamos urgentemente liderar o processo de transformação, criando uma nova cultura de aceitação das diferenças”.

Helder Clério, psicólogo, vai fundo na análise da sexualidade como “força vulcânica” não só nas relações individuais, mas em movimentos históricos de guerra e de acordos; observa o tabu que o assunto ainda é nos dias atuais, lembrando que até o século 19 (na verdade, até a década de 50 do século 20 ainda era assim) os homossexuais eram chamados de invertidos, num termo bem pejorativo. E mostra que existem várias formas de prazer, cada uma com suas diferenças: “A sexualidade é, portanto, uma força que pode encontrar destinos muito variados, o que explica a imensa diversidade que há no que diz respeito às formas de encontrar satisfação nesse âmbito”. E é uma força muito poderosa, tanto que tenta-se regular esta força em todas as culturas. Lembra que nas décadas de 40 e 50 do século passado, o biólogo estadunidense Alfred Kinsey numa pesquisa sobre sexualidade, concluiu que havia enorme diferença entre o que se dizia e o que se fazia. Clério busca Wilhelm Reich e Freud para analisar a relação entre sexualidade e política. A repressão sexual pode sim levar ao ódio, à revanche e até à adoração a um mito, como por exemplo, Hitler ou Jair Bolsonaro que por ser “imbrochável” angariou uma multidão de adoradores. Citando o filme “Um sonho de liberdade”, de 1994, dirigido por Frank Darabont, o autor lembra o personagem Brooks, condenado e que, ao ser posto em liberdade, tudo faz para não obtê-la e ao obtê-la, não a suporta e suicida-se. Estabelece uma analogia entre a abordagem do filme e mostra que a maior liberdade da sexualidade, adquirida com a revolução social, assusta e muito. Analisa as mudanças das mulheres em relação aos homens, da década de 1950 aos dias atuais em citação ao livro de Xico Sá. Revela que os machões (aqueles grosseiros, machistas) dançaram, pois as mulheres atuais não esperam apenas casa e comida e filhos pra criar. Muito além disso, Amélias não existem mais. Hoje elas querem apenas ser livres como deveriam ser sempre, mas a não aceitação desta liberdade gera violência contra elas no dia a dia. Na história, da Grécia e Roma antigas, Clério expõe o normal da prática do homossexualismo, que passou a ser pecado após o cristianismo se manifestar na civilização ocidental. E nos lembra que Freud ao se dedicar a pensar na natureza das proibições, no capítulo homossexual, afirma que todos são bissexuais, desde o nascimento, podendo manifestar carinho a seres de ambos os sexos, o que na vida adulta causa estranheza. Disserta ainda sobre o tabu da virgindade e a insegurança masculina quando a parceira tem mais experiência e conclui que “há algo na sexualidade que a linguagem não é capaz de traduzir”.

Marlon Nunes Silva propõe um ensaio psicanalítico. Afirma que a sexualidade envolve uma infinidade de valores e economias desde o nascimento. Admite o uso de Ayurveda, desde que em momentos distintos do tratamento psicanalítico. E é com a visão desta filosofia indiana que Marlon fecha seu amplo estudo que transita pelos principais teóricos que se aprofundaram no estudo da sexualidade. Marlon inicia expondo a teoria da sexualidade infantil de Freud e a castração e aprofunda esses conceitos. Transita pelo narcisismo coletivo e cita a obra de Theodor Adorno, um dos principais teóricos da escola de Frankfurt, que embora não tenha desenvolvido o conceito de narcisismo coletivo, sua abordagem dá margem a estabelecer paralelos com esse narcisismo. Segue citando Melaine Klein, “uma visão feminina da psicanálise e da sexualidade”, Donald Winnicott, psicanalista britânico, que dá destaque à figura materna, ou de quem cuida. Winnicott cria o conceito de “Objeto Transicional”, uma representação simbólica da mãe, algo que ajuda a criança a lidar com a ansiedade e a separação. Esse estudo trouxe importantes contribuições para a compreensão da sexualidade infantil e sua segurança emocional, além de demonstrar a importância do brincar e da criatividade para desenvolver uma sexualidade saudável. Abordando Lacan e a sexualidade, nos revela cinco conceitos-chave desse psicanalista francês. Cita “O corpo Hiper-Real em Crash e a Festa Tecnológica: Sedução, Simulação & Fragmentação”, obra de Marlon Nunes Silva, coautor deste livro. Em Bachelard (1884-1962), cita o livro “A Poética do Espaço” e destaca o conceito de “recolhimento interior”. Cita Zygmunt Bauman e o livro “Amor Líquido”, publicado em 2003, que analisa a cultura do consumo, a busca por gratificação instantânea e a ênfase na individualidade, contributos para uma liquidez nas relações.  Também nos apresenta a análise do filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard que explorou os temas da pornografia e obscenidade e a perda de sua capacidade de chocar devido à exposição excessiva pela mídia, ao abordar questões relacionadas à sexualidade no contexto de sua análise cultural e midiática. Encerra com a visão oriental da sexualidade, já comentada aqui no início dessa abordagem — a metodologia Ayurveda. Mostra ser a Ayurveda uma filosofia de cura que guia o indivíduo para que ele retorne ao seu equilíbrio energético e restabeleça a harmonia do seu corpo.

Com o título “O corpo e o drama em torno do seu instinto, faça sol ou faça lua”, Lecy Sousa lembra uma famosa milionária midiática brasileira que, ao ser entrevistada, ofereceu ao seu entrevistador, também milionário, um vibrador. Ela, símbolo sexual, casou-se com outro milionário midiático que oferecia strip-teases na TV. A sociedade se choca com a cena do vibrador, mas considera os strip-tease diversão. Esta lembrança introduz a análise do comportamento da sociedade brasileira distante de assuntos relacionados à afetividade, sem diálogo com as crianças, cujos pais ainda mantêm esse comportamento de vergonha para abordar assuntos de sexualidade. Cita o adolescente que busca, sozinho, outros meios para aprender sobre sexo e foi em bancas de revistas que encontrou as chamadas “revistinhas de sacanagem”. Quem não se lembra das do Carlos Zéfiro, com desenhos perfeitos que mais pareciam fotografias? Zéfiro é o pseudônimo do funcionário público brasileiro Alcides Aguiar Caminha, que entre 1950 e 1970 sustentou sua família com esse trabalho paralelo. O personagem desse conto evolui das revistinhas às sessões de um cinema que havia em Contagem cujo porteiro não pedia comprovante de idade. E nessa vivência, o  personagem passa a desconfiar bastante dos seres humanos: por que ninguém gosta de falar de sexo? Será sexo algo tão pecaminoso que melhor é praticá-lo às escondidas? Saber mais sobre a própria sexualidade tornaria a sociedade mais indigna de ascensão espiritual? Acabaria com o lucrativo negócio da pornografia, explorado por todas as nações em todos os tempos? E ele acumulava indagações sobre si mesmo e sobre o comportamento bipolar de pessoas à sua volta.

Perante a sociedade, altas doses de hipocrisia. Aqui, um dos autores desta matéria (Rogério Salgado) confessa pela primeira vez, um fato de sua infância: ele foi criado sem conhecer nada sobre sexualidade, devido ao tabu que sua família impunha, mas ouvia conversas sobre as prostitutas, mulheres sujas que só serviam para o sexo por serem no bom termo: “putas”. Quando tinha oito anos, pela primeira vez, seu irmão mais velho resolveu lhe contar que as crianças não vinham no bico de cegonhas; ele odiou seu pai por ter feito sua mãe, para ele uma santa, de “puta”.

O personagem do livro partiu para experiências mais radicais, devido ao medo do fogo do inferno e foi buscar prazer escondido no mato. No assunto gravidez, nos diz que os métodos contraceptivos eram abordados com muita reserva, por causa da castração religiosa que sempre condenou essa atitude pecaminosa, mundana e afastada da boa vontade divina. A partir daí, aborda o poeta Carlos Drummond de Andrade, cujo livro de poemas eróticos “O Amor Natural” só foi publicado cinco anos após seu falecimento, assim mesmo chocando a tradicional família mineira. Mas voltando ao personagem dessa narrativa, ele ao chegar à fase adulta, teve aquela “obrigatória” visita às chamadas zonas de meretrício (onde a maioria dos homens perdem sua virgindade). Não que a vida do nosso personagem se resumisse a uma busca frenética e sem regras por explicações sobre sexo. Apenas uma parcela pequena da sociedade brasileira tinha acesso a sexólogos. Portanto, o jeito foi buscar referências onde os fatores “vergonha” e “pecado” não tivessem tanto poder. E descobriu assim, que nem o casamento, nem a solteirice solucionavam o quebra-cabeças da sexualidade de quem quer que seja e chega à conclusão que, sobre as experiências sexuais de nosso personagem, caberia um livro exclusivo para isso e esse não seria o propósito deste livro o qual aqui comentamos. Cita bonecos e bonecas sendo produzidos para satisfazer a homens e mulheres ávidos por sexo sem consequências. Mais uma vez, o autor Rogério Salgado lembra de uma amiga sua, dona de um Sex Shop no Barreiro, região da capital mineira, que lhe confidenciou que uma vez por semana, mulheres evangélicas vão à sua loja após o expediente, comprar consolos para sua satisfação pessoal e chicotes para se penitenciarem após o ato, por ter ofendido a Deus.

De novo sobre o livro, afirma que toda complexidade que gira em torno de um simples ato sexual teria menor impacto se a vulgarização e o desprezo pelo corpo não conduzissem à bestialidade da prática sexual. E por fim nos serve de guia turístico quando nos diz que, se decidirmos descer a Rua Rio de Janeiro, com destino à lendária Rua Guaicurus, em Belo Horizonte, notaremos que o marketing das casas de luzes vermelhas estão cada vez mais agressivos. Os promoters sempre às portas gritam a plenos pulmões: “— Vai lá! Sobe lá e faz eles felizes”.

Fechar com chave de ouro é uma expressão muito antiga que não perdeu seu significado, nem deixou de ser utilizada. O editor Rodrigo Starling fechou o livro “Sex ‘N’ Drama” com chave de ouro. O texto de Adriano Borçari em seu início, não antecipa seu clímax. Tem uma construção leve para refletir sobre o peso da liberdade e do poder para as gerações atuais. Descreve a observação de diferentes grupos nas ruas. O que mais impressiona o autor é que o homem permaneça em si mesmo, apesar de toda a agitação, explosões, estímulos a todos os sentidos na metrópole. E o homem, voltado para si, percebe-se pesado, carrega cansaço agudo e constante que domina corpo, mente e alma. Agora que o homem se tornou livre para ser o senhor de suas próprias ações e conquistas, o tom impresso por tal liberdade infinda e a extensa gama de possibilidades que se apresenta diante dele fazem esta liberdade carregada de opressão. Em relação ao verbo dever dos antepassados o verbo poder oprime. O homem livre passa a ser explorador e explorado, algoz e vítima de si mesmo.

Elementos que apelam à motivação, à criatividade, à iniciativa própria e à realização de projetos, são muito mais efetivos para a exploração que o chicote e as ordens experienciadas pelos antigos. Fica exaurido, mergulha cada vez mais na densidade do eu e se perfaz cada vez mais egoísta, narcisista. Tudo se converte em produto e o que é produto é consumido. O homem narciso, ensimesmado e, sobretudo coisificado, entende todos os seres que o cercam como coisa. A mulher coisificada deixa de ser reconhecida em sua subjetividade para se tornar objeto consumível. O sexo então passa a ser desempenho. O outro passa a ser sexualizado como objeto de excitação. Não se ama quem foi demovido de sua alteridade, só se pode consumi-lo. Todos perdem a humanidade.

Cuidar da aparência é “um movimento de sobrevivência social” e o extenuante cansaço produzido pela necessidade de comparar e ser comparado, escolher e ser escolhido leva o homem moderno à depressão do desempenho. A depressão nesta época se caracteriza pelos excessos do abrir e escancarar que roubam do homem a capacidade de concluir. Desaprendemos de morrer, pois o sujeito narcisista-depressivo não é capaz de concluir. Mas “O Eros cura a depressão”, finaliza o autor que constrói um desfecho com o relato de uma história com reflexões de criança em brincadeira de pai x mãe, história que ilustra brilhantemente a teoria até então trabalhada. O livro começa e termina com literatura.

“Sex ‘N’ Drama” é um livro que agradará leigos e teóricos. Valeu sua leitura, mais de uma vez!

Autores:

 • Adriano Borçari é mineiro, filho, irmão, marido e pai, nem sempre nessa ordem.

 • Helder Clério, natural de Lagoa da Prata (MG), é psicólogo (graduado em Psicologia pela PUC/Minas) e especialista em saúde mental (Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais / Instituto Raul Soares). Trabalha no Consultório de Psicologia Unitas e na rede pública de saúde de Lagoa da Prata. Publicou os livros de poesia “Delírios Periféricos de um Oeste” (2016) e “Diamantes & Dinamites” (2022).

 • Lecy Sousa, psicanalista, é contagense, nascido em Almenara (MG). Licenciado em Letras, participou da fundação da Academia Contagense de Letras. Participou dos projetos “Pão & Poesia”, criado pelo poeta Diovani Mendonça e do “Belô Poético” criado pelos poetas Rogério Salgado e Virgilene Araújo. Atualmente atualiza o canal no youtube “Lecy Sousa”. Publicou livros de poesia: “Primeirapessoaplural” (2008), “Rascunhos” (2015), “Poesia fora da curva” (2017), “Bora lá, Baudelaire” (2022) e “Trilogia do poema bruto” (2022). Em 2021 publicou o e-book “Fragmentos Humanos — Uma autoajuda para você descobrir o sentido da vida e morrer em paz” (em coautoria com o psicanalista Marlon Nunes Silva). Participou também das coletâneas “Liberdade — Antologia de literatura livre”, “Cena Poética 8 / Poesia e Prosa” e do livro “Entreverbo” (2022).

 • Leonardo de Magalhaens (Leonardo Magalhães Silva) é bacharel em Letras pela FALE/UFMG, com ênfase em Literatura Brasileira. Tem escrito e divulgado poesia desde 2002. Atualiza blogs com prosa e poesia, com crítica literária e comentários sobre filosofia e política. Pelo Selo Editorial Starling publicou “Spleen de BH: Ásperas Flores”, volume 3 da Coleção Flores do Caos, homenagem aos 200 anos de Charles Baudelaire. Atuou na Academia Betinense de Letras (2003-2005) e na Oficina de Produção Artística (2006-2010), com eventos e saraus, além de bastidores de shows musicais. Servidor público, desde 2008 atua na área de biblioteca escolar e secretaria escolar, com eventos de incentivo à leitura e à escrita. É casado e é pai de um menino e uma menina.

 • Marcos Fabrício Lopes da Silva nasceu em Brasília (DF). Doutor e mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Jornalista formado no Curso de Comunicação Social pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Poeta e ensaísta. Professor autônomo e pesquisador independente. Realiza-se em voos-livros, amores essenciais e saraus marcantes. Flamenguista na linha de Ben Jor cultiva lírios, colírios e delírios.

 • Marlon Nunes Silva é bacharel licenciado em Geografia e Letras, mestre em Estudos de Linguagem (CEFET/MG), psicanalista (Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise). Autor dos livros “O corpo em Crash e a festa tecnológica: Sedução, Simulação & Fragmentação”, “A tecnologia nossa de cada dia — Entre deuses e demônios”, “Fragmentos Humanos — Uma autoajuda para você descobrir o sentido da vida e morrer em paz” (em coautoria com o psicanalista Lecy Sousa) e “A solidariedade vai até onde vai o interesse”. Autor de artigos publicados em anais de congressos nacionais e internacionais, em revistas ou outras plataformas. Editor da revista “Cosmos” e integrante do Grupo de Estudos Decoloniais da Universidade Federal de Uberlândia, membro da Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise e da Ordem Nacional dos Psicanalistas.

“Sex ‘N’ Drama” tem capa da artdesigner Gisele Starling, caricatura dos autores feita por Wellington Brito e prefácio do filósofo e editor Rodrigo Starling.

E para encerrarmos, lembramos de um programa na TV Cultura exibido há uns cinco anos atrás, no qual rapazes adolescentes entre 14 e 16 anos de idade, diziam que as garotas que eles ficavam, só serviam para ficar, porque eram fáceis, mas as que eles não conseguiam passar as mãos nos peitos, essas eles com certeza namorariam para casar. Isso em pleno século 21. Ou como nos disse Belchior: “Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.

* Biláh Bernardes é poeta, autora de “FotoGrafias de DesCasamento” (Anome Livros, 2008), “AI-5” (Baroni Edições, 2016), em coautoria com Helenice Rocha, Irineu Baroni, Petrônio Souza Gonçalves e Rogério Salgado, “S. A. Monte de Minhas Lembranças” (2018), “Desvelamento” (Sangre Editorial, 2019) e “Sentimento Dividido” (Selo Editorial Starling). Rogério Salgado é poeta, com 48 anos de carreira e autor de diversos livros, sendo o último “Antes que a lua enfarte” (Orgânica Editorial) a ser lançado em janeiro de 2024.

Texto e imagens reproduzidos do site: jornaloboemio wordpress com