sexta-feira, 3 de maio de 2024

As tecnologias digitais estão criando uma epidemia de problemas mentais ...

Por que nossa civilização 'é mais frágil do que pensávamos'

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 2 de maio de 2024

Por que nossa civilização 'é mais frágil do que pensávamos'

O filósofo da tecnologia Tom Chatfield escreve, na BBC, artigo sobre a vida e o pensamento do filósofo norte-americano Daniel Dennett, falecido em 19 de abril passado:

O filósofo americano Daniel Dennett morreu no último dia 19 de abril, com 82 anos de idade. Ele era uma das mentes mais brilhantes e proféticas do último meio século.

Ao longo da vida, ele se atreveu a enfrentar algumas das maiores questões sobre a mente e a consciência humana. Dennett publicou mais de uma dezena de livros e deixou contribuições importantes em campos que variam da ciência cognitiva e da filosofia da mente até a teoria da evolução. Ele era um ardente defensor da racionalidade e do ceticismo.

Em dezembro de 2023, conversei com ele por horas sobre o seu livro de memórias, I've Been Thinking ("Andei pensando", em tradução livre), e também sobre sua vida e seu trabalho.

Ele ainda estava envolvido apaixonadamente nas questões da verdade, cognição e possibilidades da tecnologia que o fascinaram pela primeira vez quando era estudante de doutorado na Universidade de Oxford, no Reino Unido, nos anos 1960. E ainda tinha disposição para embates em defesa do pensamento rigoroso.

Nossa conversa se concentrou especificamente nos graves riscos representados pela inteligência artificial.

 Seu alerta não era sobre uma superinteligência que iria assumir o controle de tudo. Sua preocupação era com outra ameaça, que ele acreditava que poderia ser uma questão existencial para a civilização, enraizada nas vulnerabilidades da natureza humana.

"Se transformarmos essa tecnologia maravilhosa que temos para o conhecimento em uma arma de desinformação, estaremos em profundos problemas", disse ele. Por quê?

"Porque nós não saberemos o que sabemos, não saberemos em quem confiar e não saberemos se estamos bem ou mal informados. Podemos ficar paranoicos e hipercéticos, ou simplesmente apáticos e paralisados. São dois caminhos muito perigosos. E estão à nossa volta."

Filosofia em forma de ficção científica

Para compreender os argumentos de Dennett sobre a IA e o que fez dele um pensador tão profundo e original, é preciso examinar um dos seus estudos acadêmicos mais incomuns.

Em 1978, ele publicou Where Am I? ("Onde estou?", em tradução livre), um conto de ficção científica que apresentava seu próprio cérebro em uma cuba.

"Vários anos atrás", começa a história, "recebi a visita de autoridades do Pentágono que me pediram para ser voluntário em uma missão secreta e altamente perigosa."

No conto, devido a um acidente durante um projeto secreto de pesquisa, uma broca com uma ogiva atômica ficou presa a 1,6 km no subsolo, embaixo da cidade de Tulsa, no Estado americano de Oklahoma. E o Pentágono precisava dele para ajudar a recuperá-la. Ou, mais precisamente, do seu corpo.

Para evitar que o aparelho emitisse radiação prejudicial aos neurônios (lembrando que a plausibilidade não é necessariamente uma característica da ficção científica filosófica), o seu cérebro seria retirado cirurgicamente e conectado ao corpo por transceptores de rádio. Ele poderia então controlá-lo remotamente, sem se expor a riscos.

Dennett imaginou um cenário no qual o seu corpo e o seu cérebro estavam separados, dando origem a um enigma: 'onde' ele está?

A questão por trás da maravilhosa fantasia de Dennett era a seguinte: considerando que o procedimento tivesse sucesso e o seu cérebro continuasse a controlar seu corpo e receber informações pelos seus órgãos sensoriais, onde estaria Daniel Dennett?

Na história, ele imagina seu corpo andando pela sala onde seu cérebro flutua dentro de uma cuba reforçada. Ele se senta em seguida e fica olhando para o cérebro.

A cena foi recriada na televisão em 1988, em um documentário do diretor holandês Piet Hoenderdos. Nele, Dennett interpretou a si próprio – com gosto, diga-se.

Certamente, este é um dos poucos estudos acadêmicos que mereceram este tipo de adaptação.

"Bem, aqui estou, sentado em uma cadeira dobrável, admirando meu próprio cérebro através de um pedaço de vidro", disse Dennett, estupefato. "Mas espere... eu não deveria estar pensando 'aqui estou eu, suspenso em um fluido borbulhante, sendo observado pelos meus próprios olhos'?"

Este último pensamento é ainda mais difícil de se defender do que o primeiro. A ideia decorrente é que é impossível saber com certeza onde "eu" estou – ou mesmo o que significa a palavra "aqui" – puramente com base na experiência pessoal.

"Como eu sabia o que queria dizer por 'aqui' quando pensei 'aqui'?", prossegue ele. "Eu poderia achar que me referia a um lugar, mas, na realidade, era outro?"

Não importa o que ele possa acreditar sobre sua própria localização ou estado mental. Essas convicções não oferecem nenhuma garantia específica de que sejam precisas.

A visão externa dos eventos, não a interna, é a que interessa – a situação real, não como eles se parecem para a pessoa sentada na cadeira (ou flutuando na cuba, conforme o caso).

Contrariando séculos de tradições filosóficas, Dennett propôs que não temos conhecimento específico sobre o funcionamento da nossa própria mente. A sensação de que o nosso "eu" é uma entidade coerente e unificada é apenas uma ilusão, maravilhosamente evoluída.

Como ele escreve em I've Been Thinking, "existe pouca coisa que posso saber ao certo pela introspecção isolada na minha própria mente". Mas existe muito a ser aprendido "estudando cientificamente a mente dos demais" – desde que esse estudo pressuponha um rigoroso ceticismo, até sobre a mais plausível das intuições.

A verdade não irá libertar você das restrições cognitivas, já que isso é impossível. Mas, se você for cuidadoso, ela pode ensinar a você sobre os tipos de liberdade que vale a pena desejar.

Em princípio, a IA pode criar fac-símiles digitais das pessoas

Isso nos traz de volta a uma tecnologia estranhamente capaz de inverter o cenário central de Where Am I?: a IA generativa.

Sua capacidade de invocar simulacros humanos convincentes a partir de trilhões de bytes de dados possibilita revirar séculos de hipóteses sobre a verdade, a identidade e nossas experiências compartilhadas de realidade.

Em apenas 30 segundos de vídeo com qualidade moderada, por exemplo, serviços de IA disponíveis gratuitamente já podem criar uma versão artificial de qualquer pessoa – ou alguém totalmente fictício – e fazer com que eles digam absolutamente qualquer coisa.

Líderes como o primeiro-ministro indiano Narendra Modi já usaram ferramentas de IA para criar versões de si próprios falando fluentemente em dialetos regionais, para angariar votos. Técnicas similares estão sendo desenvolvidas também na Indonésia e no Paquistão.

Em julho de 2023, vídeos deepfake de mulheres líderes da oposição em Bangladesh, supostamente mostradas em piscinas usando biquínis, foram rapidamente desmascarados, mas chegaram a receber muitos compartilhamentos.

E muito mais está por vir. O ano de 2024 é o maior ano eleitoral da história (metade da população mundial irá exercer seu direito de voto). E nunca foi tão fácil manipular as informações para influenciar as decisões das pessoas – ou subverter nossas intuições e inclinações diárias.

De fato, temos todas as razões para imaginar que, com dados suficientes, logo poderá ser possível criar uma cópia convincente de uma pessoa – uma entidade que poderá passar por um político (ou por você, ou por mim) de forma aceitável, não só em uma apresentação pré-gravada, mas também nas conversas do dia a dia.

O conto e a realidade atual

Profeticamente, Dennett imaginou este cenário décadas atrás.

No conto de ficção científica e no documentário de Hoenderdos, os cientistas criam um novo Dennett: ao lado do cérebro original na cuba, sua mente é duplicada como um "gêmeo digital" e eles competem para manter o controle do seu corpo.

Neste cenário, a questão se uma pessoa realmente está em algum lugar – ou se falou, ou fez alguma coisa, ou mesmo se ela existe – fica ainda mais inquietante.

Para observar o quanto a realidade já está próxima da ficção, vamos considerar o caso do bot de Luciano Floridi, uma imitação criada por IA de outro importante filósofo da tecnologia.

Ele foi "projetado para responder perguntas e escrever textos imitando a forma de pensar e o estilo de escrever de Floridi".

O bot é uma ferramenta pedagógica fascinante e um estudo de caso sobre como, na era da IA, nossas ideias e identidades podem começar a ter vida própria.

Para Dennett, havia algo de problemático com a nossa obsessão pela IA com aparência humana.

Para ele, embora os fac-símiles completos da mente humana possam não ser algo iminente, a forma como estamos usando IA para imitar seres humanos já nos coloca em uma trajetória perigosa.

Ele chamava essas IAs de "pessoas falsificadas" – e me disse que desenvolver essas entidades em massa constitui "malícia da pior espécie": uma forma de "vandalismo social" que deveria ser proibida por lei. Por quê?

Porque, se representações digitais convincentes de seres humanos puderem ser criadas ao bel-prazer, todo o trabalho de determinar coletivamente as afirmações, experiências e ações de outras pessoas estará em risco, sem mencionar a infraestrutura social essencial de contratos, obrigações e consequências.

Daí a necessidade da proibição legal, o que ele detalhou em um artigo publicado em maio de 2023 na revista The Atlantic.

"Não será algo perfeito", ele disse, "mas irá ajudar se pudermos criminalizar a produção de pessoas falsificadas."

"Podemos ter sérias penalidades por falsificar pessoas, da mesma forma que temos para falsificar dinheiro... podemos transformar em uma marca de vergonha, não de orgulho, quando você tornar a sua IA mais humana."

Existe aqui uma ironia no fato de que Dennett passou décadas argumentando contra aqueles que tentavam criar alguma categoria elusiva de "humanidade" que apenas as nossas mentes poderiam ter.

Materialista convicto, ele defendeu repetidamente ideias como a do seu estudo da teoria da evolução de 1995, Darwin's Dangerous Idea ("A ideia perigosa de Darwin", em tradução livre): "Todas as conquistas da cultura humana – linguagem, arte, religião, ética e a própria ciência – são artefatos... do mesmo processo fundamental que desenvolveu as bactérias, os mamíferos e o Homo sapiens. Não existe Criação Especial da linguagem, nem a arte e a religião têm inspiração literalmente divina."

Ele defendia que o surgimento da humanidade a partir de matéria que não pensa é algo maravilhoso, mas não milagroso.

Até as mentes notáveis como as nossas, por fim, são o produto de um conjunto de módulos incompreensíveis, compostos de componentes mais brutos, conectados em sequências contínuas às primeiras formas de vida.

Consequentemente, em princípio, não existe nada que evite que os algoritmos da inteligência artificial atinjam ou excedam suas próprias capacidades; ou que os seres humanos ampliem e remodelem suas mentes com meios artificiais.

De fato, alguns dos primeiros e mais importantes trabalhos de Dennett pretendiam defender a potência e o potencial da computação contra aqueles que argumentavam que o simples cálculo nunca geraria fenômenos como a consciência, como o filósofo americano John Searle.

Para Dennett, não havia nada de "simples" em relação ao cálculo ou aos processos algorítmicos. Sempre foi apenas questão de escala e complexidade.

Neste sentido, as conquistas da IA moderna – das suas proezas linguísticas e domínio de jogos como xadrez e Go até a sua capacidade de aprovação em exames legais e médicos – justificam continuamente a insistência de Dennett de que pode surgir competência de nível humano a partir de processos totalmente incompreensíveis (sem mencionar que, no nosso caso, isso já aconteceu).

Durante a nossa conversa, ele também se empenhou em destacar o abismo existente entre a arquitetura computacional atual e as complexidades analógicas humanas.

A obsessão para saber se a IA irá atingir a "inteligência geral", com toda a flexibilidade cognitiva dos seres humanos, é perigosa, que dirá se ela irá chegar a algo ainda maior.

Ele observava que, muito antes que acontecesse algo desta magnitude, nós precisaríamos enfrentar o surgimento de agentes autônomos "extremamente manipuladores", que irão representar uma ameaça muito maior do que as hipotéticas superinteligências ("esqueça isso!"). Por quê?

Porque, da mesma forma que as redes sociais provaram ser um ambiente propício para a evolução de conteúdo capaz de explorar as vulnerabilidades humanas, a mesma dinâmica favorece tanto o conteúdo gerado por IA, quanto as IAs capazes de desenvolver uma atraente combinação de persuasão, sedução, choque e bajulação.

Dos glamourosos e perfeitos influenciadores artificiais até a pornografia deepfake, das companhias infinitamente empáticas até as fraudes amorosas, as paixões e os desejos humanos são um campo fértil para refinar a manipulação.

Podemos (ainda) não ser cérebros em cubas. Mas aquilo que nós vemos, acreditamos, fazemos parte e realizamos é cada vez mais interligado a incontáveis sistemas de informação – muitos deles, mais propensos a oferecer persuasão e plausibilidade do que a verdade.

Nada disso deve negar o poder e o potencial de tecnologias como a IA, nem as inúmeras formas em que ela pode ampliar as capacidades e o autoconhecimento da humanidade. Mas é fácil defender, como Dennett fazia, que as IAs provavelmente irão "evoluir até se reproduzirem".

"E as que se reproduzirem melhor serão os mais inteligentes manipuladores dos interlocutores humanos como nós. As entediantes, iremos deixar de lado, e as que mantiverem nossa atenção, iremos difundir. Tudo isso irá acontecer sem nenhuma intenção. Será a seleção natural do software."

Verdade vs. mentira

A linguagem humana pode ser manipulada por IA

Não é necessário um plano de mestre elaborado por uma máquina ou por seres humanos para que se desenvolvam cenários maléficos.

No livro Das Bactérias a Bach e Vice-Versa: A Evolução das Mentes (Edições 70, 2021), Dennett defende que "quando a infraestrutura cultural estiver projetada e instalada [ou seja, evoluída nas mentes humanas]... a possibilidade de memes parasíticos explorando essa ifraestrutura é mais ou menos garantida."

Em termos evolutivos, nossas mentes não são aparelhos sintonizados para diferenciar a verdade da mentira. Nós somos criaturas parciais, apaixonadas e tribais – animais sociais ligados por laços de amor e lealdade que definem nossa humanidade e nos tornam dolorosamente vulneráveis.

O que podemos fazer a respeito?

Felizmente, outra característica que define o pensamento humano é a nossa capacidade de refletir precisamente sobre essas limitações, para corrigir, de forma crescente e coletiva, os pontos cegos da percepção social.

"O que você quer", declarou Dennett, "é que o seu pensamento seja determinado pela verdade sobre tudo o que existe."

"Você quer ser levado pelas boas evidências existentes sobre o que é o mundo. Mas você também quer ter espaço de manobra para reconsiderar, reconsiderar e reconsiderar ainda mais: suas perspectivas, seus projetos, seus objetivos. Você quer ser um sistema de intenções de ordem superior, que reflita sobre os meios, fins e propósitos."

Este é o método científico no microcosmo, com um toque de livre pensamento humanista.

A "liberdade" de agir com base em informações manipuladamente imprecisas não é liberdade. Já as ações determinadas pelas "boas evidências existentes" são emancipadoras: elas são abertas às complexidades da realidade e não traídas por mentiras.

Para ampliar o experimento de Where Am I?, imagine o que aconteceria se o seu cérebro fosse colocado em uma cuba e, sem o seu conhecimento ou permissão, fosse conectado a uma versão simulada da realidade.

Naquele campo virtual, você ainda poderá ter certas liberdades. Mas, no contexto do mundo externo, você seria encurralado e ludibriado – excluído de qualquer forma significativa de compreensão e ação.

Pode parecer puramente uma questão de ficção especulativa, mas uma versão desse cenário se desenrola sempre que alguém acredita que uma afirmação falsa é a verdade literal – ou que uma entidade artificial é um ser humano.

Das teorias da conspiração até a propaganda totalitária, das evidências fabricadas até falsos seres humanos, a rejeição da realidade é um negócio florescente. E não há nada de inevitável sobre a persistência da tolerância, do ceticismo ou do debate racional em um mundo inundado por este tipo de situação.

Para Dennett, a nossa civilização "é mais frágil do que pensávamos" – e, justamente por isso, mais preciosa.

Apesar de todos os conflitos, injustiças e rancores, vivemos em uma era em que grande parte dos seres humanos podem "confiar uns nos outros, ter projetos de longo prazo, viajar livremente, formar família e viver com muito pouco medo".

"Isso é simplesmente maravilhoso. E devemos preservar isso. Essa estrutura, de verdade, a todo custo."

Este é o grande risco dos grandes modelos de linguagem de IA e das pessoas falsificadas: "que eles destruam a confiança que levamos milhares de anos para construir."

Apesar de tudo isso – e da sua reputação de inflexível razoabilidade – Dennett deixou claro que não tinha interesse em transcender as limitações da natureza humana.

Para ele, o amor e a lealdade não eram uma bagagem biológica que seria melhor superarmos. Pelo contrário, eles são forças motivadoras do tipo mais profundo: fontes de propósito e de bondade, desde que possam ser libertadas do ódio e do egoísmo.

"Buscar o essencial é uma orientação perfeita. Mas o essencial pode ser compreendido de forma muito ampla. O essencial pode incluir seus filhos, uma ideia, tocar violão, os Chicago Bears [time de futebol americano]."

"O essencial pode ser qualquer coisa que você queira que seja. É aquilo que é mais importante para você. É o que você procura para ter proteção. E isso é óbvio. Se alguém quiser extorquir você, eles não precisam ameaçar você. Eles precisam apenas ameaçar aquilo que você ama."

A biologia é onde tudo começa e termina: o surpreendente padrão de evolução do nosso surgimento ao lado de todas as outras formas de vida; as infinitas complexidades que somos capazes de conceber pela cultura, linguagem e computação; e nossa existência comum como criaturas de carne e osso.

"Meus dois filhos são adotados", contou Dennett ao final da nossa conversa. "Mas eu os amo com a mesma intensidade de qualquer pai biológico."

"Eu me lembro de um momento na infância da nossa mais velha, quando ela era uma garotinha, talvez com dois anos de idade ou menos, em que percebi uma possível ameaça no parquinho ou algo assim e aquilo subitamente me impressionou. 'Oh, vejam só, acho que eu mataria para proteger esta criança.'"

"E aquilo quase me assustou. Mas também me emocionou, porque era o reconhecimento de uma intensa e profunda ligação emocional. E este é o sentido da vida."

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Tom Chatfield é escritor e filósofo de tecnologia britânico. Seu livro mais recente, Wise Animals ("Animais inteligentes", em tradução livre), explora a evolução conjunta da humanidade e da tecnologia.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com 

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Por que o ateu mais conhecido... agora se diz “culturalmente cristão”

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de  27 de abril de 2024

Por que o ateu mais conhecido do mundo agora se diz “culturalmente cristão”

Em uma entrevista à rádio britânica LBC no começo de abril, o zoólogo Richard Dawkins afirmou que se sente "culturalmente cristão". Gabriel de Arruda Castro para a Gazeta do Povo:

A notícia da morte do autor Daniel Dennett, em 19 de abril, teve pouca repercussão. Mas, menos de duas décadas atrás, ele era uma das figuras mais controversas do debate público nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Em 2006, Dennett lançou o livro que seria traduzido para o português como “Quebrando O Encanto — A Religião Como Fenômeno Natural”. Ao lado de Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens, ele ficaria conhecido como dos “quatro cavaleiros do ateísmo”. O grupo ganhou espaço nos meios de comunicação em um mundo que, depois do 11 de setembro, acordava para os efeitos potencialmente nocivos do fanatismo religioso. O argumento do quarteto era radical: quanto antes o mundo se livrasse das religiões (todas elas), melhor.

Os tempos agora são outros.

Por coincidência, dias antes da morte de Dennett, o membro mais conhecido do grupo havia dado uma declaração que indicava uma mudança de postura.

Em uma entrevista à rádio britânica LBC no começo de abril, o zoólogo Richard Dawkins afirmou que se sente "culturalmente cristão". “Acredito que, culturalmente, somos um país cristão, e eu me considero culturalmente cristão. Eu amo hinos e as canções de Natal. Sinto-me em casa no etos cristão”, ele disse.

É uma mudança significativa na postura de Dawkins, que, no passado, igualou todas as religiões a um "delírio".

Mas ele não foi o único a seguir esse caminho.

Islamismo e ideologia radical cresceram no vácuo do Cristianismo

Cada uma a seu modo, outras figuras públicas parecem ter passado a prestar mais atenção às consequências do esvaziamento da religião tradicional no Ocidente. Conforme a influência do Cristianismo deixa de ser dominante, ela cede espaço ao radicalismo progressista ou ao islamismo, que tendem a ser muito menos tolerante com as liberdades individuais tão caras aos ateus.

No ano passado, a aclamada escritora Ayaan Hirsi Ali anunciou que havia se convertido ao Cristianismo. Assim como Dawkins, ela chegou à conclusão de que nem todas as religiões são iguais. Criada em uma família muçulmana, ela havia perdido a fé décadas antes. "Todo o tipo de liberdade aparentemente secular — de mercado, de consciência e de imprensa — tem suas raízes no Cristianismo", ela escreveu, ao explicar a jornada que a levou à fé cristã.

Dawkins, por exemplo, arranjou uma briga com movimentos de esquerda ao dizer, como biólogo geneticista, que as diferenças entre os sexos são objetivas e imutáveis. Além disso, sua afirmação sobre o “Cristianismo cultural” foi uma reação à divulgação de versos islâmicos no painel da estação de trem King's Cross, em Londres, durante o Ramadã.

O geneticista concluiu que, das alternativas disponíveis, o Cristianismo parece ser a que mais respeita o bom senso e os direitos individuais. Em graus diversos, outros ateus fizeram uma trajetória similar. A lista inclui o escritor britânico Tom Holland, que se tornou católico, o autor canadense Jordan Peterson, que caminha entre a crença e a descrença, e o apresentador de TV americano Bill Maher, que continua tão ateu quanto antes mas passou a criticar os excessos de grupos progressistas.

Fenômeno é tema de novo livro

O autor britânico Justin Brierley passou os últimos anos entrevistando ex-ateus que passaram a crer. Formado em Filosofia na Universidade de Oxford, ele lançou recentemente um livro e uma série de podcasts sobre o tema.

Brierley conversou com a Gazeta do Povo.

 Segundo ele, a trajetória de Dawkins é semelhante à de outros descrentes. “Estou vendo isso com cada vez mais frequência entre ateus, mesmo alguns que eram muito anticristãos (como Dawkins) no passado. Acho que eles estão cada vez mais percebendo que os valores em que acreditam são produto de sua herança judaico-cristã", afirma ele.

Na opinião de Brierley, as consequências do esvaziamento religioso de países como a Inglaterra se tornaram mais evidentes nos últimos anos, o que fez muitos ateus repensarem as consequências de uma visão radical contra a religião. “Conforme outros sistemas de valores começam a ameaçar essa herança, (por exemplo, a ideologia woke ou regimes autoritários de esquerda), eles começaram a perceber que o Cristianismo tem sido bom para nossa cultura”, diz Brierley.

Ele também notou um aumento no número conversões religiosas (e não apenas culturais) de ateus ao Cristianismo. Ele diz que o motivo mais frequente é o contato com cristãos que o ajudaram a desfazer preconceitos sobre a igreja.

"Eles têm contato com cristãos atenciosos e gentis que ajudam a superar seus preconceitos sobre o Cristianismo e a igreja. Isso rompe a barreira e permite que eles comecem a levar o Cristianismo a sério", diz ele. Na sequência, diz, os motivos mais comuns para a conversão do ateísmo ao Cristianismo são uma experiência emocional que os levou à fé em Deus, ou argumentos intelectuais como os indícios que apontam para o design do universo.

Este último, por exemplo, foi o que levou o célebre filósofo Antony Flew do ateísmo à crença em Deus (embora Flew nunca tenha se tornado um cristão). Autor do influente "A Presunção do Ateísmo", de 1976, ele atribuiu ao avanço da cosmologia e da biologia a sua guinada existencial. A notícia veio a público em 2004. Três anos depois, Flew publicou um livro que, em português, ganhou o título de "Deus Existe — As Provas Incontestáveis De Um Filósofo Que Não Acreditava Em Nada".

Comunidade é elemento importante na conversão

Um artigo científico publicado em 2019 pelo Journal of Religion & Society também investigou o que leva ateus a se converterem ao Cristianismo.

O estudo analisou 111 relatos de conversão publicados em fóruns na internet em busca de elementos comuns. A maioria dos ex-ateus (53%) mencionou ter percebido a importância da participação em atividades tipicamente religiosas, como ir à igreja e orar. Metade também citou descobertas intelectuais na ciência ou na filosofia. Além disso, 45% relataram uma experiência sobrenatural (as respostas não eram excludentes, e por isso a soma ultrapassa os 100%).

A Gazeta do Povo falou com um dos autores do estudo. Matthew Facciani — que é doutor em Sociologia e pesquisador no MIT, diz que esse tipo de guinada geralmente envolve mais de um motivo, e frequentemente tem início com um laço social.

"Muitos dos aspectos que encontramos em ateus que se converteram ao Cristianismo eram comuns em outros estudos sobre conversão religiosa. Por exemplo: muitos indivíduos que eram ateus mencionaram um laço social importante que os levou ao Cristianismo. A necessidade de pertencer e encontrar comunidade é poderosa e muitas vezes norteia o que acreditamos", afirma Facciani.

Nova onda religiosa a caminho?

Há poucas dúvidas de que, de forma geral, os países ocidentais passam por um período de queda na religiosidade. Por outro lado, se é verdade que a religião tradicional continua em declínio, o número de ateus não cresceu na mesma proporção. E há até mesmo sinais de que o Cristianismo tem voltado a crescer em lugares improváveis.

Na Finlândia, um país com grande número de ateus, o número de jovens religiosos parece estar aumentando. Uma pesquisa da Igreja Evangélica Luterana da Finlândia mostrou um aumento da religiosidade entre jovens do sexo masculino. Entre 2011 e 2019, o número de jovens de 15 a 19 anos que diz crer em Deus passou de 19% para 43%. A parcela dos que vão à igreja todo mês passou de 5% para 12%.

Justin Brierley diz que a igreja que ele frequenta na Inglaterra também tem crescido. "Várias pesquisas também parecem mostrar altos níveis de abertura à fé entre os jovens. Vejo os sinais de que a 'maré da fé' está começando a mudar, à medida que muitos intelectuais seculares exortam seu público a levar o Cristianismo a sério novamente", diz.

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segunda-feira, 29 de abril de 2024

No lusco-fusco cansativo do mundo...

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 28 de abril de 2024

No lusco-fusco cansativo do mundo, a teologia pode ser uma forma de repouso.

Não por acaso que na tradição monástica cristã –para alguns, podendo ser resumida como "opção beneditina"– o estudo é uma das formas de se viver com Deus. Luiz Felipe Pondé via FSP:

Afinal, quem é Deus? Moisés, na famosa passagem da sarça ardente no Sinal —livro do "Êxodo"–, em que Deus o manda libertar os hebreus da escravidão no Egito e levá-los até o monte Sinai para receberem os mandamentos divinos, pergunta num dado momento: "E se me perguntarem quem me mandou, o que eu respondo? Qual o seu nome? Quem é você?". Evidente que faço aqui uma versão simplificada do texto bíblico.

Essa passagem é conhecida na tradição cristã como teologia do Êxodo, a teologia em que Deus se dá a conhecer a Moisés, revela "um pouco" quem Ele é, e se vincula à ideia de libertação da escravidão.

A versão grega da Bíblia hebraica, conhecida como Septuaginta ("LXX", em latim), teria sido uma versão grega de livros do Antigo Testamento ou Bíblia hebraica feita por cerca de setenta —daí LXX, setenta em latim– judeus gregos, nos três últimos séculos da era antes de Cristo.

Nesta versão, Deus teria respondido à pergunta de Moisés algo como "Eu sou quem eu sou". Dessa ideia surgirá a concepção de que Deus seria aquele que é, ou seja, aquele que carrega seu ser em si mesmo.

À diferença do restante dos seres existentes, Deus seria o único que é "causa sui", ou seja, que é causa de si mesmo. Os demais seres são causados por Ele. Deus seria —conversando um pouco com Aristóteles, que nada sabia da Bíblia hebraica– o incausado que tudo causa, o incondicionado que tudo condiciona, o imóvel que tudo move.

O paralelo entre esse deus do Aristóteles e o Deus israelita é recusado, por exemplo, pelo filósofo judeu do século 20 A.I. Heschel que, na sua monumental obra "The Prophets", sem tradução no Brasil, nega que o Deus de Abraão, dos patriarcas e de Moisés seja considerado imóvel, uma vez que é puro páthos, ou paixão. Tampouco incondicionado, na medida que reage apaixonadamente às ações dos homens.

De qualquer forma, essa diferença ontológica entre Deus e os outros seres criados por Ele —que, portanto, recebem o ser das mãos Dele, de graça, pela eternidade— , ideia esta decorrente da resposta de Deus a Moisés –que Ele é quem é–, fará escola no cristianismo e produzirá das mais sofisticadas discussões teológicas acerca do ser de Deus e do nosso ser frágil e dependente Dele.

Já na versão hebraica, Deus teria dito "Eu serei o que serei", já que a formulação do presente do verbo ser não existe, propriamente, em hebraico. Eu diria "Eu brasileiro" e não "Eu sou brasileiro".

Pensando a partir dai, teríamos a absoluta liberdade de Deus que seria, portanto, impredicável e ilimitado —Deus multiplica o futuro pelo futuro nesta formulação, portanto, Ele é absolutamente livre. Deus está fora da linguagem e da representação.

Esse caráter de Deus será também discutido no cristianismo naquilo que ficou conhecido como teologia negativa ou apofática —o que não pode ser enunciado na linguagem—, na esteira do tratado teológico mais curto do cristianismo, conhecido como "Teologia Negativa" de Pseudo-Dionísio, o Aeropagita, que viveu entre os séculos 5 e 6 da era cristã.

Deus é superior à linguagem porque esta só representa o que é despedaçado como ela, e, portanto, aquilo que pode ser "alocado" nas palavras, que são, por sua vez, "pedaços" do todo.

A teologia é um dos exercícios intelectuais mais sofisticados que existe. Principalmente quando não está a serviço nem da direita evangélica que brinca com a supressão do Estado laico no Brasil, nem, tampouco, com as versões à esquerda, que querem nos fazer crer que o PT seja a representação pura da santidade política democrática.

Deus nos deixa mais inteligentes, ao contrário do que pensa o ingênuo ateísmo militante. No judaísmo, a ideia de que Deus seja inteligente, e de que buscar sê-lo seja uma espécie de mandamento, é comum. Pensar é uma forma de se aproximar de Deus.

No lusco-fusco cansativo do mundo em que vivemos, esse exercício intelectual pode ser uma forma de repouso. Não por acaso que na tradição monástica cristã –para alguns, podendo ser resumida como "opção beneditina"– o estudo é uma das formas de se viver com Deus.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

terça-feira, 23 de abril de 2024

Brasil e seu falsos heróis, a saga que nunca acaba

Post compartilhado do Facebook/A Toca do Lobo, de 22 de abril de 2024

Brasil e seu falsos heróis, a saga que nunca acaba.

Quando você pensa que não há nada mais deprimente e estúpido do que ser militante e fã de político, eis que o Bostil lança agora uma nova categoria:

O militante e fã de ex BBB.

PQP, é muita carência e ignorância para um povo só.

Quão vazia e insignificante tem de ser a sua vida para você tornar um pessoa medíocre, vazia, o seu herói ou sua heroína?

A mídia cria o personagem que ela quer e o povo abraça. Não tem jeito, somos a nação mais estúpida do planeta.

Mas aguardem!

Vem aí, muito em breve, mais um possível futuro deputado ou senador.

Detalhe no visual Dr. Rey, afinal, pra "bom médico", estetoscópio é acessório de moda.

Mas calma que ainda não acabou.

Aqui sempre há mais espaço para a total e completa ignorância, já que agora tem também militante fã de "ex esposa" de BBB.

Sim, companheiras (os) de BBBs, pessoas que até ontem não haviam produzido nada relevante, hoje, mesmo fiéis às origens, somam MILHÕES de seguidores e tornam-se também influenciadoras poderosas sem ter o que falar ou o que fazer.

Que vergonha deste país.

E eu, imbecil que sou, insisto em produzir algo relevante ou, ao menos, honesto.

Texto e imagem reproduzidos de post do Facebook/A Toca do Lobo

Clique para acessar, em Link da postagem original com comentários, compartilha do Facebook/A Toca do Lobo:

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Ler comentários na internet é inútil em tempos de delinquência moral

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 21 de abril de 2024

Ler comentários na internet é inútil em tempos de delinquência moral

Lutas políticas, nas redes sociais, são um terreno fértil para o uso pragmático do discurso, que esvazia o valor da linguagem. Luiz Felipe Pondé para a FSP:

Não leio comentários acerca do que escrevo ou falo. Interesse zero. Tampouco tenho interesse em "debates". Debates são um fetiche quando tomados como forma para se "avançar" no entendimento de questões complexas e que mobilizam muitos interesses e paixões das partes em contenda.

Mas, às vezes, leio, por curiosidade mórbida talvez, comentários feitos a textos de colegas colunistas ou artigos em geral e constato que são, em sua imensa maioria, uma enorme perda de tempo.

Claro que há exceções nesse balaio de inconsistências —usemos um termo chique hoje— que são os comentários, mas em geral não justifica o tempo perdido.

O caso da guerra entre Israel e Hamas é um exemplo que beira a caricatura. Articulistas, jornalistas e colunistas são no Brasil, em sua total maioria, contra Israel, mas nos comentários um monte de gente acusa os veículos de "estarem a serviço do sionismo". O que fazer diante de tal absurdo?

Aliás, vale salientar que argumentos como este são herdeiros diretos da peça antissemita russa czarista "Os Protocolos dos Sábios de Sião" —os judeus mandam no mundo com seu dinheiro.

Essa epidemia de inconsistências que as redes geram —muitas vezes, como no caso dos comentários, apresentados como democratização da informação e opinião— é uma das manifestações de uma situação estrutural mais profunda, que é a relação delinquente que a humanidade sempre teve com a fala, a linguagem e a emissão de opiniões.

Não aprendemos a falar "para" o conhecimento consistente de nada. Aprendemos a falar, na melhor das hipóteses, "para" garantir a sobrevivência, a defesa e convencer as fêmeas a aceitar o sexo de forma suave.

E, por sua vez, sendo o sexo frágil, as fêmeas aprenderam a falar "para" garantir o melhor dos mundos possível para elas e sua prole, muito antes de Leibniz (1646-1716) ter concebido sua filosofia do melhor dos mundos possível criado por Deus na sua teodiceia.

No restante dos casos, a linguagem está a serviço do delírio, da mentira, da fofoca, da manipulação das mentes e dos corações. Portanto, é mais fácil ser inconsistente no uso da linguagem do que seu contrário.

Por isso, o trabalho do jornalismo decente, não preguiçoso, e do intelectual decente não enviesado ideologicamente, é tão difícil e raro.

A única forma de combater as fake news seria derrubar as redes sociais, ideia absurda, claro —e nem assim, porque a mentira é proporcional ao simples aumento da circulação da palavra, porque amamos a mentira em si, sem nenhuma razão especial, como dizia o escritor francês Georges Bernanos (1888-1948).

Mas podemos ir mais além do que as lamúrias e os clichês de ocasião no que se refere ao problema das fake news. Suspeito que o lamento ao redor das fake news e as lágrimas de crocodilo a elas associadas aumenta a cada momento simplesmente porque quem domina as redes é a direita.

Fosse o contrário, não sei, não. Os bolcheviques praticaram fake news —como todo mundo— largamente. Talvez uma das mais famosas tenha sido quando espalharam que o czar Nicolau 2° era um agente alemão na Primeira Guerra Mundial —Nicolau 2° era muito idiota para tal.

A prática do pragmatismo revolucionário no uso da moral e da linguagem foi comum entre comunistas. Lenin, Trótski e Stálin o usaram a larga. Marx veria as fake news como úteis para o pragmatismo revolucionário da linguagem, se usado para o lado "certo".

Toda luta política acirrada é um terreno fértil para esse uso pragmático revolucionário da linguagem. O importante é acuar a palavra do outro, esvaziá-la de valor, gerar mais engajamento de uma determinada narrativa. Isso não vai mudar.

Se as leis conseguirem infligir duras perdas financeiras às grandes plataformas da internet, pode-se atingir algum resultado tímido, lembrando que quem criará e aplicará as leis serão os mesmos sapiens que adoram a mentira a favor do que creem.

A delinquência moral é estrutural em nossa espécie. O que nos confunde são os salamaleques, recurso clássico de quem detém o monopólio legítimo da violência no uso da linguagem.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

domingo, 21 de abril de 2024

Obras entram em Domínio Público

Legenda/crédito: Banner postado para simples ilustração, em publicação blog 'Demanda WEB'.

Publicação compartilhada do site ESTUDAR FORA, de 22 de setembro de 2022

As obras que entraram em domínio público em 2022: lista inclui 2 prêmios Nobel e até o Ursinho Pooh

Por Mariane Roccelo 

Todos os anos, obras internacionalmente famosas entram em domínio público dentro e fora do Brasil. Por aqui e em todos os países signatários da chamada Convenção de Berna — evento onde foi estabelecido o reconhecimento do direito autoral — a obra se torna pública, livre e gratuita após setenta anos o falecimento do autor ou do último co-autor em casos de produções coletivas.

Para algumas obras audiovisuais, músicas gravadas, livros e textos publicados, as datas para entrarem em domínio público pode variar para menos de 70 anos da morte do autor. No Brasil, por exemplo, uma obra audiovisual se tornam públicas após 70 anos de sua primeira divulgação. Confira a seguir alguns dos principais livros, filmes e composições que se tornaram públicas no início deste ano.

Em 2022, obra de diversos artistas renomados completam 70 anos da primeira publicação. Entre os nomes que aparecem na lista de 2022, estão Ernest Hemingway, Franz Kafka, Agatha Christie, William Faulkner e Bertolt Brecht. Aparecem também 2 vencedores do prêmio Nobel de literatura, Sinclair Lewis e André Gide, e a primeira edição do famoso livro Ursinho Pooh, escrito por Alan Alexander Milne.

Obras de Sinclair Lewis

2021 marcou os 70 anos da morte do escritor e dramaturgo norte-americano Sinclair Lewis. Nascido em Minessota, Estados Unidos, Lewis era formado em literatura pela Universidade Yale e escreveu livros de sucesso da primeira metade do século XX, como “Não vai acontecer aqui” e “Babbitt”.

O autor recebeu alguns dos prêmios mais importantes da literatura, entre eles o Nobel de 1930 e um Pulitzer de Melhor Obra de Ficção em 1925 com o livro “Doutor Arrowsmith”. Nas obras, o escritor faz críticas inteligentes sobre materialismo e sistema econômico norte-americano.  O site da Universidade de Yale mantém uma página em homenagem ao autor (disponível aqui).

Obras de André Gide

Outro autor que completou 70 anos da morte em 2021 foi o escritor francês André Gide, vencedor do Nobel de Literatura em 1947. Entre os livros mais famosos de Gide, estão “O Imoralista”, “Os moedeiros falsos” e “Corydon”. Filho de um professor de Direito da Universidade de Paris, ele também era um ativista defensor dos direitos de homossexuais e gay assumido no início do século passado – período em que a comunidade LGBTQIA+ era ainda mais perseguida.

No livro “Corydon”, ele reuniu um conjunto de ensaios em que discute a naturalidade e forte presença de homossexuais em diversas civilizações ao longo da história da humanidade.

Milne com o filho Christopher e o urso de pelúcia que deu origem ao famosos Ursinho Pooh.

Um dos ursinhos mais famosos dos desenhos animados, o Ursinho Pooh foi criado pelo escritor britânico Alan Alexander Milne, que lançou a primeira edição do livro em 1926. Ambientada na Floresta de Ashdown, em Sussex, Inglaterra, as histórias contam a relação do menino Christopher Robin com seus amigos, o urso Pooh, o tigre chamado Tigrão, o leitão chamado Leitão, o coelho chamado Coelho, o burro chamado Ió, a coruja chamada Corujão e o canguru filhote chamado Guru.

Antes de entrar para domínio público, os direitos sobre a obra eram da Disney. O personagem principal Pooh e alguns dos amigos animais são baseados em bonecos de pelúcia que pertenciam ao filho de Milne, Christopher Robin Milne.

Ernest Hemingway – O sol também se levanta

A capa da edição brasileira de “O Sol Também se Levanta, da Editora Bertrand. À direita, Hemingway de farda em Milão, em 1918.

A obra “O sol também se levanta” (no original: The Sun Also Rises), do escritor norte-americano Ernest Hemingway (O Velho e o Mar, Por Quem os Sinos Dobram), é um dos livros mais famosos que entram em domínio público neste ano. Ambientada em París no período pós-primeira Guerra Mundial, o livro conta a história de Jacob Barnes e um grupo de expatriados ingleses e estadunidenses.

Franz Kafka – O Castelo

A capa da edição brasileira de “O Castelo” da Editora Cia. das Letras. À direita, retrato de Kafka tirado por Sigismund Jacobi.

A novela “O Castelo” (no original: Das Schloss), do escritor Austro-húngaro Franz Kafka foi lançada em 1926. A obra é um dos escritos inacabados de Kafka, que morreu antes de poder finalizá-la. O livro conta a história do personagem “K” que, ao chegar em uma vila, enfrenta dificuldades para acessar às autoridades locais que governam a população a partir de um castelo particular.

O livro têm um enredo bastante comum aos leitores de Kafka, e debate a relação entre sociedade civil, burocracia e Estado. Durante a formação, o escritor cursou direito na Karl-Ferdinands-Universität, atual Karls-Universität, em Praga, após abandonar o curso de química na mesma instituição.

Agatha Christie – O assassinato de Roger Ackroyd

A capa da edição brasileira de “O assassinato de Roger Ackroyd” da Editora Globo Livros. À direita, retrato de Agatha Christie em 1910.

Uma das obras mais famosas da escritora inglesa Agatha Christie, “O assassinato de Roger Ackroyd” (Do original, The Murder of Roger Ackroyd), conta a história do assassinato do milionário Roger Ackroyd, esfaqueado com uma adaga tunisiano. O crime é o terceiro de uma série de assassinatos que acontecem na vila King’s Abbott, que passam a ser investigados pela protagonista, Caroline Sheppard.

A obra foi inicialmente publicada em 1926 e considerada a melhor novela escrita da história em 2013, pela Associação British Crime Writers. O livro é considerado um cânone entre do gênero romance policial e uma das obras que fez com que Christie recebece o apelido de “Rainha do Crime”.

William Faulkner – Soldiers’ Pay

O livro de estreia do escritor americano William Faulkner entra em domínio público em 2022. Publicado pela editora Boni & Liveright em 1926, até hoje não foi possível confirmar se a história foi, de fato, escrita por Faulkner. Os registros confirmam apenas que foi a primeira obra publicada pelo autor.

O livro conta a história de um aviador gravemente ferido durante a Primeira Guerra Mundial, que volta para a casa em uma pequena cidade da Georgia, Estados Unidos, e tem que enfrentar as mudanças na vida pessoal e limitações físicas do pós-guerra. Até o momento, a obra não tem edição publicada no Brasil.

Bertolt Brecht

A peça “Man Equals Man”, do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht é uma das obras que pertencem à primeira fase da carreira do escritor. Inspirada nos desenvolvimentos sociais e políticos da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), a obra fala sobre a transformação forçada de Galy Gay em um modelo ideal de soldado e como é possível modelar e transformar a personalidade de uma pessoa.

Filmes

Friedrich Wilhelm Murnau – Fausto

Fausto é uma das obras mais famosas do cineasta Friedrich Wilhelm Murnau, um dos nomes mais importantes do movimento expressionista alemão. O filme é baseado no filme homônimo escrito por Goethe, e conta a história da lenda alemã sobre o alquimista e cientista Dr. Johannes Georg Faust, que, desiludido com o mundo, faz um pacto com um demônio. O filme está disponível na íntegra e com legendas em português no Youtube.

“A Letra Escarlate” (do original The Scarlet Letter)

Outro filme que entra em domínio público é baseado no livro “A Letra Escarlate” (do original The Scarlet Letter), do escritor Nathaniel Hawthorne, e dirigido pelo cineasta suéco Victor Sjöström. A história conta a tragédia de Hester Prynne, uma jovem que tem uma filha sem estar casada, que vive na cidade de Salem, Estados Unidos, em 1850.

O filme homônimo é considerado a melhor adaptação do livro de Hawthorne e foi produzido pela produtora MGM em 1926, pertencendo atualmente ao arquivo da UCLA. O filme está disponível na íntegra no Youtube.

George Fitzmaurice – O Filho do Sheik

O filme mudo “O Filho do Sheik” (do original The Son of the Sheik), dirigido pelo cineasta francês George Fitzmaurice, é baseado no romance homônimo da escritora britaânica Edith Maude Hull. O filme é estrelado pelo italiano Rudolph Valentino, apelidado de “Latin Lover”, um grande ator do cinema mudo que morreu no mesmo ano em que a obra foi lançada. O filme também está disponível na íntegra no Youtube.

Música

Obras do compositor austríaco Arnold Schoenberg

Considerado um dos compositores mais influentes do século XX, Arnold Schoenberg pertenceu à corrente do expressionismo alemão. Por ser judeu, o músico foi alvo do Partido Nazista durante a Segunda Guerra Mundial e teve as obras proibidas no país naquele período. Para fugir dos nazistas, Schoenberg se mudou para os Estados Unidos e se tornou cidadão americano em 1941.

Texto reproduzidos do site: www estudarfora org br

sábado, 30 de março de 2024

Internet e democracia: "um momento sombrio" segundo Manuel Castells

Entrevista compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de  29 de março de 2024

Internet e democracia: "um momento sombrio" segundo Manuel Castells.

O sociólogo espanhol, pioneiro em estudar os efeitos da internet, teme pelos estragos do mau uso da tecnologia. Entrevista à Veja:

Lá na pré-história da internet, em 1996, o sociólogo espanhol Manuel Castells intuiu o ponto ao qual chegaríamos. Com o lançamento do livro A Sociedade em Rede, um clássico instantâneo, ele desenhou a disseminação da internet e boa parte dos problemas (e também os benefícios) que nasceriam de tanta prevalência. Autor de outros vinte trabalhos em torno do tema, ele é um dos mais celebrados especialistas do impacto das modernas tecnologias em tempo de comunicação acelerada e informações falsas. Professor da Universidade Aberta da Catalunha e da Universidade do Sul da Califórnia, Castells acaba de publicar Testimonio: Viviendo Historia, ainda não traduzido para o português, obra na qual revisita sua trajetória pessoal, ao acompanhar o mundo em transformação. Mergulha sobretudo nos dias de maio de 1968, quando a agitação estudantil reinventou a civilização ocidental, ao anunciar que era “proibido proibir” — Castells esteve no coração dos protestos e acabou sendo expulso da França. Na semana passada ele participou, em Brasília, do Seminário Internacional Democracia e Novas Tecnologias, em comemoração ao bicentenário do Senado. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele trata dos riscos, mas também das oportunidades, de um planeta conectado.

Há dez anos, o senhor disse que a comunicação em rede revitalizaria a democracia. Ainda acredita nisso? Até certo ponto, sim, porque a democracia depende da abertura das instituições para a livre expressão e o livre protesto dos cidadãos de todo o mundo. A internet acabou com o monopólio do poder de comunicação, porque as empresas são proprietárias das plataformas de mídia social. Como o modelo de negócio pressupõe aumento do tráfego, elas não têm interesse em limitar a autoexpressão. O problema é que essa livre expressão cheia de contradições e conflitos não segue as normas de comportamento que gostaríamos. Quais sejam: educação, respeito e construção. Isso não é um problema das redes sociais, mas sim de quem somos como humanos.

O problema então é o mau uso da tecnologia? Originalmente, a internet era o domínio de elites supostamente educadas e de boa vontade, mas, com 5,4 bilhões de usuários no mundo, as pessoas comuns também passaram a povoá-la. Uma boa parcela dessas pessoas é sexista, racista, xenófoba, homofóbica, fanática religiosa, nacionalista extremista e propensa à violência. A internet é nosso espelho.

E o que ele mostra? Não é uma imagem muito bonita. Somos capazes de comunicação livre e de escolhas ideológicas independentes, mas o conteúdo da liberdade pode não ser o que esperávamos. Adolf Hitler, Donald Trump e Jair Bolsonaro foram eleitos democraticamente.

Mas já não temos a opção de desligar a internet… O que fazer? Não há como voltar atrás. Só podemos tentar regular o potencial uso negativo dessas tecnologias extraordinárias. Eu observei os embriões da sociedade em rede entre 1996 e 2000. No século XXI, a plena digitalização da sociedade, não apenas com a internet, se tornou uma plataforma para o pleno desenvolvimento da sociedade em rede. Aliás, é do que tratarei em meu próximo livro, A Sociedade Digital, que deve ser publicado em breve.

Sucessivos estudos, sobretudo com adolescentes, mostram as pessoas mais ansiosas, tristes e solitárias — e a internet parece ter culpa no cartório. Como desatar esse nó que amarra a sociedade? Isso não é verdade. Está provado que a internet aumenta a sociabilidade e a satisfação com a vida para a maioria da população — temos evidências empíricas de cinquenta institutos de pesquisa ao redor do mundo. Mas as pessoas estão de fato ansiosas e tristes — mas não solitárias — por causa do massivo deterioramento das condições de vida na maior parte dos países. No entanto, mais uma vez, como ressaltei anteriormente, criminosos e fascistas também usam a internet. É uma boa desculpa para os políticos dizerem, como sempre fazem, que é tudo culpa da internet. Mas não é.

E de quem é a culpa? Em muitos casos, é culpa deles.

Não há dúvida: observamos uma mudança na forma como as pessoas usam as redes sociais, que deixaram de ser um lugar de diálogo saudável e amistoso. Como esse comportamento nocivo poderá afetar a sociedade? Isso, de fato, está criando uma polarização prejudicial entre visões extremas. No entanto, a maior parte das interações não é sobre política e ideologia. Na verdade, elas representam menos de 20% das conversas. As pessoas falam mais sobre suas vidas, músicas, sonhos e tristezas. Os grupos ideológicos extremos alimentam o conflito entre si e tornam seus debates mais visíveis. Eles moldam a conversa em torno da violência e do confronto. A civilidade nos debates públicos deixou de existir. Basta olhar para os debates nos parlamentos em todo o mundo. Há mais insultos e acusações infundadas em vez de argumentos. Não apenas no ambiente virtual da internet, mas na realidade e materialidade dos templos da democracia.

O que motiva a crescente onda de notícias falsas, as infames fake news? Justamente a polarização e a violência, porque os humanos tendem a acreditar no que querem e rejeitam aquilo com que não concordam. Isso é o que a neurociência diz sobre nossos cérebros. Procuramos notícias ou fake news não para nos informar, mas para nos reafirmar.

A inteligência artificial (IA) ganhou, nos últimos meses, imenso espaço — e dadas as denúncias de aproveitamento desonesto da ferramenta, com o objetivo de enganar os cidadãos, entramos em novo fosso. Afinal de contas, é possível usar as tecnologias em benefício de uma sociedade mais pacífica? Sim, claro. Por meio de regulamentação e da aplicação de algoritmos diferentes. A inteligência artificial não opera em um vácuo. Ela depende de bases de dados abertas, e as bases existentes são tendenciosas. Atualmente, já existem algumas empresas, como a (startup americana) Anthropic, que desenvolvem IAs cujas bases de dados consultadas foram tratadas de forma ética para evitar esse tipo de problema.

O senhor acha realmente que a regulamentação das redes sociais e da inteligência artificial está seguindo em uma direção positiva em todo o mundo? A regulamentação é absolutamente necessária. Estou trabalhando nisso com o governo espanhol e alguns especialistas. A indústria está ciente dos problemas, é como uma bomba atômica. Simplesmente não dá para confiar apenas nos humanos.

A pandemia, que pôs a humanidade dentro de casa, diante de telas, teve papel transformador? Somos seres humanos melhores do que há cinco anos? Nós lutamos com sucesso contra a Covid-19 em todo o mundo, mas 7 milhões morreram por ignorância e má política governamental. O Brasil e os Estados Unidos não se saíram bem. Nós mostramos que a engenhosidade humana e a ciência podem nos salvar, mas, independentemente da doença que resultou na pandemia, os humanos não progrediram em superar sua própria estupidez.

Seu livro mais recente, Testimonio: Viviendo Historia, ainda sem tradução para o português, é uma reflexão profunda baseada nas suas próprias vivências, especialmente no tempo das manifestações estudantis de maio de 1968, em Paris. Considerando tudo o que viveu, como percebe o mundo agora? Eu acredito que estamos em um momento sombrio da história, porque nosso superdesenvolvimento tecnológico está em contradição com nosso subdesenvolvimento moral e político.

Haveria, agora, um novo sistema geopolítico, desenhado com a ajuda do poder de influência da internet? Geopoliticamente, sim, as coisas mudaram. A dominação do Ocidente, representado por Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia, acabou. Hoje eles representam apenas 20% da população mundial e 40% do produto interno bruto (PIB) global. O resto do mundo está dividido entre Ásia, Oriente Médio e América Latina, com exceção da Argentina, que hoje se tornou um satélite dos americanos. Cada país tem sua própria estratégia, mas todos concordam em não se curvar ao velho monopólio. A guerra na Ucrânia é decisiva, porque sinaliza o ressurgimento de uma Rússia militarmente muito poderosa.

E, ainda assim, o senhor tem mesmo convicção de que a democracia prospere? A solução para a crise da democracia é que as elites do poder ouçam seu povo. O orçamento de metade das pessoas na União Europeia não chega ao final do mês e 20% da população está na pobreza. Os Estados Unidos têm uma economia dinâmica, mas a desigualdade é histórica, com a educação e a saúde em crise permanente.

Mas as derrapagens democráticas parecem se espalhar sem freio… A América Latina está em guerra. Vocês só não dizem isso claramente. Há as guerras do narcotráfico em todos os países. No México, 250 mil pessoas foram mortas ou desapareceram nos últimos vinte anos. Há gangues e facções no Equador, no Peru e, agora, também no Chile e na Argentina, onde o Exército chegou a ocupar a cidade de Rosário.

E o Brasil? Também está envolto por gangues. O Brasil é um escândalo de desigualdade. Como disse meu amigo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não se trata de um país pobre, é um país injusto. Lula estava melhorando a situação, mas grande parte da classe política está bloqueando suas medidas para obter benefícios políticos.

E qual o resultado dessa postura? Não pode haver democracia estável sem democracia social, com políticas redistributivas e um Estado de bem-­estar social decente. A economia criminosa está desenfreada, e as pessoas temem a violência diária mais do que qualquer outra coisa. Muitas forças policiais são corruptas e não protegem os cidadãos. Os Estados são continuamente penetrados pela corrupção.

Parece então não haver espaço para esperança… Há saída? Sim. Nós podemos lutar e usar nosso conhecimento e nossa vontade para criar um mundo melhor. Não podemos perder a esperança. Se o fizermos, não haverá salvação possível.

Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

sábado, 16 de março de 2024

A terrível ideia de querer pensar

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 16 de março de 2024

A terrível ideia de querer pensar

Qualquer fraqueza que a filosofia brasileira tenha se deve a uma coisa só: à falta de calçadas boas nas cidades do país. Alexandre Soares Silva para a revista Crusoé:

Uma das maiores discussões filosóficas da história está sendo travada no Brasil, agora mesmo, entre a filósofa Márcia Tiburi e o professor de filosofia Aluízio Couto.

Intelectualmente, é eletrizante. Lembra um pouco o grande debate de 1948 entre o filósofo Bertrand Russell e o padre Copplestone sobre a existência de Deus. Acompanhem, se conseguirem: a filósofa disse que a América Latina devia se chamar “Abya Yala”, um nome indígena — mais adequado, segundo ela, aos “avessos a heterodenominações patriarcais europeias e capitalistas”. O Professor Aluízio disse, por sua vez, que dava para imaginar a filósofa dizendo isso “para pinturas rupestres em um discoporto”. E, como reza o método socrático que se faça quando uma proposição filosófica é ridicularizada, Márcia Tiburi está processando o Professor de Filosofia da rede pública.

Não me sinto preparado para comentar essas especulações filosóficas da filósofa muito filósofa Márcia Tiburi. É um raciocínio complexo demais para mim e, sugiro agora, com intimidade excessiva talvez, que para você também.

Mas sempre encarei a filosofia como algo intransponível para mim.

***

Uma vez, anos atrás, decidi que ia ganhar um hábito novo: ia pensar um pouco. Ia sair todas as tardes pra dar uma volta e pensar sobre um Grande Assunto. Daí saí naquela tarde, na época morava em Perdizes, e passeei pelas ruas arborizadas do Pacaembu pensando num desses grandes assuntos da filosofia. Acho que era a eternidade, ou o Céu, ou o Inferno.

Ao voltar pra casa tinha chegado num insight enormíssimo, que já esqueci qual foi, mas que me deixou excitado: na história da humanidade sou o primeiro homem que pensa! Que tira de verdade um tempo pra pensar! E decidi fazer isso (pensar) todas as tardes da minha vida.

Nunca mais fiz. É, nunca mais pensei em nada. Claro que algumas crises, poucas, me fizeram pensar durante duas ou três horas em problemas pessoais meus, defeitos de personalidade meus, ou melhor ainda dos outros. Traçar planos práticos. Mas nos grandes assuntos da filosofia, ou mesmo mais mesquinhamente da política, nunca mais pensei. Não de verdade.

E acuso todo mundo de fazer o mesmo. Sobre um assunto genérico temos espasmos de pensamento de trinta segundos. Depois nos distraímos, e nossas opiniões sobre as coisas (esquerda ou direita, feminismo ou antifeminismo, qual o papel do governo, o que é uma boa vida, ser elitista ou não ser, etc) são o acúmulo ao longo de anos de muitos espasmos de pensamentos de trinta segundos, misturados com as nossas reações emocionais a uma frase sobre o assunto dita por alguém simpático ou antipático, anos atrás.

E essas são as nossas opiniões, e por isso inclusive nos sacrificamos e somos mártires, lutamos contra ditaduras, somos torturados etc — por espasminhos de pensamento de trinta segundos acumulados ao longo de anos.

“Fale por você”, disse uma pessoa uma vez quando falei mais ou menos isso, e fiquei espantado olhando para a cara boçal da pessoa (uma indireta pra você, Guilherme Bocchini). Fiquei considerando se estava de fato olhando para a única pessoa que pensava no mundo. Mas poderia a única pessoa que pensava no mundo ser um simples carinha, meio banana, com opiniões iguais à de todo mundo, como o Guilherme Bocchini? Desculpe, não acredito. Muito menos acredito que pensar seja um hábito geral da humanidade e que só eu esteja de fora. (Você falou com um membro da humanidade recentemente? Pois então.)

Às vezes tenho certeza que os grandes nomes da filosofia foram pessoas que pensaram só mais um pouquinho que eu. Dois mil e quatrocentos anos atrás, Platão tirou umas três tardes de agosto pra passear num bosque de Siracusa e pensar no que é a justiça, e ainda aproveitou pra passar na padaria antes de voltar pra casa. Pronto, bastou isso: elevou a humanidade, rompeu o véu da ignorância, descobriu algo, criou uma filosofia.

***

Qualquer fraqueza que a filosofia brasileira tenha se deve a uma coisa só: à falta de calçadas boas nas cidades do país.

Como alguém pode ter qualquer pensamento coerente se, a cada três segundos, tem o raciocínio interrompido por um tropeço? Como um ser humano pode ter qualquer introspecção se o tempo todo é obrigado a olhar pra baixo pra dar o próximo passo?

Se, no lugar de caminhadas diárias de duas horas em volta do lago Silvaplana, Nietzsche tivesse que andar em volta da praça Sílvio Romero no Tatuapé, saltando as rachaduras no concreto, teria conseguido pensar o suficiente para escrever O Nascimento da Tragédia? Não, claro que não; ele não teria conseguido pensar o suficiente nem para escrever uma coluna da Márcia Tiburi.

Se você se preocupa com o destino do pensamento brasileiro, não construa escolas, não funde universidades nem think tanks: cuide da sua calçada.

Quanto a mim, qualquer insight que eu tenha tido na vida devo à calçada do Colégio São Domingos entre a rua Caiubi e a rua Bartira, em Perdizes: uns sessenta metros de superfície lisa, responsáveis por oitenta segundos diários de abstração feliz.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

terça-feira, 12 de março de 2024

Como era Freud dentro de seu consultório?

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 12 de março de 2024

‘Minha Análise com Freud’: leia trecho exclusivo do livro que mostra o pai da psicanálise como clínico.

Abram Kardiner (1891-1981) foi paciente de Freud na década de 1920; grande incentivador da psicanálise nos EUA, ele faz relato íntimo de como era ser analisado pelo médico. Julia Queiroz para o Estadão:

Como era Freud dentro de seu consultório? Como seus pacientes se sentiam ao deitar no mais famoso divã da história da psicanálise? Este é o tema do livro Minha Análise com Freud, de Abram Kardiner (1891-1981), psiquiatra norte-americano que foi professor na Universidade Columbia de Nova York e um dos fundadores da New York Psychoanalytic Institute.

A obra narra o período de seis meses em que Kardiner foi analisado pelo pai da psicanálise em seu consultório em Viena, Áustria, no início da década de 1920. Inédito no Brasil e publicado originalmente em 1977, o livro chega às livrarias nesta quarta-feira, 13 de março, pela Quina. Leia um trecho abaixo.

“Poucas pessoas tiveram o privilégio de ser analisadas pelo próprio Freud. Por uma série de eventualidades, cheguei a ele por meio de H. W. Frink [psicanalista americano]. Se eu fosse mais jovem, hesitaria em revelar os fatos biográficos necessários para essa empreitada”, explica o autor no prefácio.

Kardiner diz que seu objetivo não é contribuir à Freudiana, “sobre a qual já existe material abundante”, e sim revelar a técnica do médico a partir de um caso específico - o dele mesmo. O especialista conta, através dos encontros com Freud, sobre sua infância, as diferenças com o pai, a relação sinuosa com a madrasta e descreve os sonhos que foram analisados pelo psicanalista.

O período que passou com Freud alterou “o destino e a existência” de Kardiner, como ele próprio escreve no livro. Um deles momentos de análise e a interpretação de um sonho aparecem em trecho da obra selecionado pelo Estadão. Confira:

Leia trecho de Minha Análise com Freud:

Então houve outro sonho, acho que na mesma noite, o qual eu nunca compreendi por inteiro. Eu estava ao lado de um enorme gato do qual aparentemente eu não sentia medo, mas ele estava imóvel e indiferente.

Freud disse: “Bem, parece que chegamos a algo muito importante aqui. No primeiro sonho, você obviamente não quer que eu aprofunde a sua relação com seu pai. Quer que a imagem permaneça como você a retocou, e assim, no sonho, você me diz para não continuar escavando o passado, que não encontrarei nada de importante”.

“Mas por que”, perguntei, “teria eu retocado a imagem do meu pai?”

“Para que de alguma maneira você pudesse conviver com ele. Em sua primeira infância, ele evidentemente o apavorava. No entanto, quando sua madrasta chegou, o temperamento de seu pai mudou, e é esse temperamento retocado que você desejava conservar e assim esquecer o pai raivoso dos seus primeiros anos. Mas você permaneceu submisso e obediente a ele de modo a não despertar o dragão adormecido, o pai bravio”. Minha reação imediata foi aceitar a interpretação de Freud. Foi apenas muitos anos depois que entendi o erro básico que ele cometeu aqui.

O homem que havia concebido o conceito de transferência não o reconheceu quando ocorreu nesse caso. Ele não percebeu uma coisa. Sim, eu tive medo do meu pai na infância, mas aquele que eu temia agora era o próprio Freud. Ele poderia me ajudar ou me destruir, o que meu pai não mais poderia fazer. Com sua afirmação, ele deslocou toda a ação para o passado, assim fazendo da análise uma reconstrução histórica. A parte retouchée de sua interpretação, entretanto, estava bastante correta.

Eu havia sido mais temeroso e submisso diante do meu pai do que eu tinha consciência, e dissimulara de mim mesmo minha própria agressividade e hostilidade em relação a ele. Mas pelos mesmos motivos, eu agora temia que Freud fosse descobrir minha agressividade dissimulada. Fiz com Freud um pacto silencioso. “Continuarei a ser submisso desde que você me deixe usufruir de sua proteção”. Se ele me rejeitasse, eu perderia a minha chance de entrar nesse círculo profissional mágico. A aceitação tática, de minha parte, isolou do escrutínio uma parte importante do meu caráter.

“O gato”, eu disse. “E quanto ao gato?”

“O grande gato”, Freud respondeu, “é a sua madrasta”.

Isso desencadeou uma série de associações em minha mente. Eu ainda podia ver a expressão enigmática no rosto do gato. Ele parecia imóvel, inacessível, indiferente. O que tinha isso a ver com a minha madrasta? Se, por um lado, eu temia meu pai, por outro faltava-me “confiança” nela. Talvez fosse essa a conexão com o gato. Ela estaria ali quando eu realmente precisasse dela, sobretudo como uma proteção contra meu pai? A resposta parecia estar no gato. Ela não era hostil, mas imóvel!

Em voz alta, eu disse a Freud: “Mas a minha madrasta é uma força tão estabilizadora na minha vida que sempre lhe serei grato”.

Pela primeira vez na análise, Freud ergueu o tom de voz. “Você está enganado a respeito de sua madrasta. Ainda que seja verdade que ela lhe propiciou um ambiente estruturado, também o superestimulou sexualmente e assim intensificou sua culpa em relação ao seu pai. Para evitar esse dilema você se refugiou em sua homossexualidade inconsciente por meio da identificação com a sua mãe natural. A base para isso foi ter se identificado com sua mãe indefesa pelo medo de se identificar com seu pai raivoso, agressivo”.

Tentei compreender o que Freud estava me dizendo. Eu podia entender a identificação e a parte feminina. Quando criança, eu me lembro de sentir que deveria ser um privilégio extraordinário ser uma dessas notáveis criaturas. Elas pareciam dispor de um tempo tão mais tranquilo. Tudo o que precisavam fazer era cuidar da casa e dos filhos. A verdadeira responsabilidade recaía sobre o pai. Tendo eu assistido aos esforços do meu pai para sustentar uma vida simples, essa imagem era agora compreensível para mim. Ao olhar para esse homem que era um adulto gigante, eu, a criança, podia apenas sentir uma fragilidade que me tornava inepto para a tarefa de desempenhar feitos audaciosos, como ir para a América ou combater um mundo hostil e assim ganhar a vida arduamente. Desta maneira, meu desejo pelo papel feminino era de fato o desejo de escapar das tribulações de ser homem. Mas isso nunca interferiu em minha pulsão erótica direcionada ao sexo feminino. Portanto, a interpretação de Freud me surpreendeu. Não consegui entender o que tudo isso tinha a ver com homossexualidade inconsciente, e pedi a ele que me explicasse.

“O que você quer dizer”, perguntei, “com homossexualidade inconsciente?”

Ele esclareceu: “Ao identificar-se com a mãe, a criança renuncia à sua identificação com o pai, dessa forma descontinuando seu papel de rival do pai. Isso lhe garante a contínua proteção do pai, assim respondendo a suas necessidades de dependência”.

“O que posso fazer em relação a isso?”

A resposta de Freud foi: “Bem, assim como ocorre em relação ao complexo de Édipo, acaba-se aceitando, reconciliando-se com isso”.

Ao comparar minhas anotações com as de outros estudantes, descobri que, assim como o complexo de Édipo, a homossexualidade inconsciente era parte rotineira das análises de todos. Ela consumiu boa parte do restante da minha.

Eu havia deixado a última sessão sentindo-me tranquilo, mas de certa forma intrigado por essas novas compreensões.

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