segunda-feira, 23 de junho de 2025

"Somos todos visitantes", por Roberto Motta

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 22 de junho de 2025

Somos todos visitantes

Toda a glória terrena é efêmera porque és pó e ao pó voltarás. Nada é mais certo na vida do que os impostos e a morte. Algumas pessoas até conseguem isenção fiscal. Mas ninguém será isento de morrer. Roberto Motta para a Gazeta do Povo:

Chegamos ao hospital para visitar meu amigo. Foi nesse hospital que meu pai morreu depois de sofrer muito com um câncer de pâncreas. Foi aqui também que meu amigo Marcelo passou seus últimos dias antes de sua morte, depois que um cirurgião incompetente falhou na remoção de um tumor maligno no rim esquerdo. Hoje o amigo doente é Paulo César. Uma pneumonia dominou seus pulmões e a situação foi agravada por influenza. Paulo ficou vários dias entubado na UTI. Hoje, domingo, viemos visitá-lo.

Depois de dois dias de chuva o sol de outono brilha em um céu limpo e pálido. Dirigimos sem pressa pela Avenida Atlântica rumo ao hospital. Na pista do lado do mar, que aos domingos fica fechada aos carros, senhores de calção e camiseta tentam perder a barriga caminhando. Inutilmente, ao que parece.

Ontem fui dormir de madrugada, depois de horas trabalhando em uma palestra nova, que batizei de A Era da Incompreensão. Inspirado por um texto que achei por acaso na internet, montei uma sequência de slides que misturam literatura, filosofia, geopolítica e tecnologia para apresentar a minha perspectiva sobre o que é viver no mundo de hoje. Talvez essa seja a coisa mais importante que a idade nos traz: perspectiva. “Se fosse possível, você gostaria de saber o dia exato da sua morte?” perguntou meu amigo Luciano Pires. Eu respondi que não. Prefiro ser surpreendido. Se eu soubesse o dia exato em que vou morrer provavelmente não conseguiria mais viver. A paz só é possível se esquecemos que somos mortais.

Hospitais, inevitavelmente, me lembram morte. O cheiro de desinfetante é um lembrete de que, no melhor cenário, um dia entraremos em um hospital e não sairemos. Não tenho medo da morte, só não quero ficar inválido e dependendo dos outros. É claro que minto: tenho muito medo da morte. Ela me parece a forma definitiva de solidão. Para quem tem fé a morte não é mais que uma passagem, sei disso. Mas se minha mente e meu espírito pensam uma coisa, meu corpo sente outra. Esse corpo, com todas as suas forças, quer continuar vivendo. Essa vida é doce demais, como disse Charles Bukowski (algumas pessoas se espantam que eu goste de Bukowski; elas provavelmente nunca leram um poema dele).

Chegamos na UTI. Encontramos meu amigo melhor, sentado na cama lendo um livro sobre a independência americana. Na capa está a famosa pintura de Emanuel Leutze que mostra o general George Washington em pé, na proa de um barco que atravessa o rio Delaware. Washington está prestes a atacar as tropas britânicas. Essa será a primeira vitória na guerra pela independência das treze colônias que um dia formariam os Estados Unidos da América. Paulo César está pálido e cansado, mas se recuperando depois dos quatro dias entubado. Ele também cruzou o seu rio Delaware e foi vitorioso. Ele não vai morrer. Não agora. Não dessa vez. Mas ele vai morrer um dia porque todos nós morreremos um dia e haverá um tempo na face da Terra em quem ninguém mais lembrará nossos nomes, ninguém saberá que andamos por essas ruas e que amamos tanto.

Nos despedimos e vamos embora, minha mulher e eu. Ainda levamos os adesivos de visitante, fornecidos pelo hospital, pregados no peito. É um crachá de mortalidade, a lembrança de que, no fim de tudo, somos todos visitantes. Memento mori, “lembre-se que você é mortal” – era essa a frase que um escravo soprava no ouvido dos generais de Roma, depois que eles voltavam vitoriosos das guerras, para que não permitissem que a glória lhes subisse à cabeça. Será que alguém disse isso a George Washington? Toda a glória terrena é efêmera porque és pó e ao pó voltarás. Nada é mais certo na vida do que os impostos e a morte. Algumas pessoas até conseguem isenção fiscal. Mas ninguém será isento de morrer.

O celular faz um barulho: é uma mensagem de Paulo Cesar, emocionado, agradecendo a visita.

Na orla do Rio de Janeiro pessoas continuam passeando sem ter ideia de quanto tempo lhes resta. Eu penso: daqui a duzentos anos nem uma dessas pessoas estará viva. O sol se põe mais bonito que de costume, e pouco depois começa a soprar o vento leste.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

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