Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, 17 de
junho de 2021
Ortega y Gasset, as manifestações, as badernas, os youtubers
e a rebelião das massas.
As massas se agitam quando sentem falta daquilo que
consideram “de direito” ou essencial, mas a sua agitação peca pela falta de
lógica. Ricardo Vélez-Rodríguez para o Instituto Liberal:
Data de 1928 o clássico livro do filósofo espanhol José
Ortega y Gasset (1883-1955) intitulado A rebelião das massas, que conta com
bela edição brasileira publicada pela Martins Fontes (tradução de Marylene
Pinto Michael, 2ª ed., São Paulo, 2002, 300 páginas). O livro continua
atualíssimo, haja vista que nos deparamos constantemente com a tal “rebelião
das massas” nas invasões de terras pelo MST, nas manifestações multitudinárias
de jovens descontentes (muitos deles pertencentes à geração “nem-nem”), nas
badernas dos black blocs, no fechamento de ruas pelos “trabalhadores sem teto”,
nas arruaças protagonizadas por universitários porque um deles foi preso com
maconha no campus da Universidade, no sucesso atordoante de anônimos youtubers que
em mágicos posts arrebanham milhões de seguidores, nos palanques messiânicos em
que os “salvadores da Pátria” de plantão oferecem felicidade e riqueza sem
esforço, nas operações de “enriqueça-se quem quiser e como puder” que tomaram
conta das estatais dominadas pelos companheiros (remember Petrobrás e outras)
no lastimoso ciclo lulopetista, etc.
Lembro-me de que, no início da minha vida profissional de
professor de filosofia, em meados de 1968, pouco antes de assinar o primeiro
contrato como docente na Universidade, desempenhava as funções de vendedor da
editora Aguilar, em Medellín, na Colômbia. Tinha conseguido tal emprego em
janeiro desse ano, por intermédio de amigos espanhóis. Não vendi nada, mas li
muito. Uma das obras mais vendidas era justamente a do citado filósofo
espanhol. Afinal de contas, a Colômbia, em 68, era uma espécie de caixa de
ressonância das ideias revolucionárias que transitavam na Europa. Como não
podia deixar de ser, Maio de 68 impactou fortemente meu país natal,
especialmente no meio universitário. A rebelião das massas de Ortega formava
parte do cardápio obrigatório para os que queriam ter da revolução uma ideia
menos romântica do que a apregoada pelos marxistas de todos os matizes.
Porém, volto ao relato da minha profissão de vendedor
fracassado. Tentando sensibilizar a bibliotecária da Universidade EAFIT, em
Medellín, numa tarde calorenta de Julho de 68, para que a Universidade
comprasse a coleção de Museus que era a peça de ouro da editora Aguilar, ouvi a
seguinte conversa entre as secretárias da biblioteca: “A Carmencita vai casar
no fim do mês, mas ainda não foi liberada pela Universidade das suas aulas,
pois o Diretor do Departamento de Humanidades não conseguiu quem a
substituísse”. De imediato pedi à bibliotecária para que me guardasse a pesada
pasta de livreiro e me apresentei no gabinete do Diretor de Humanidades.
Evidentemente, escondi a minha ocupação de vendedor que, se revelada, teria me
garantido um chute no traseiro de parte dos burocratas universitários. Falei
que era professor de Filosofia, formado pela prestigiosa Universidade Javeriana
de Bogotá, e que estava em Medellín para tentar uma vinculação como professor
em algum centro de estudos superiores. O Diretor falou-me, surpreso: “Veja como
são as coincidências da vida, professor. Justamente estava à procura de um
docente da área de humanas, para que substituísse uma professora que vai se
casar no final do mês”. Acertei a papelada em questão de dias e fui contratado
para a vaga da professora Carmencita, que lecionava a disciplina: “Humanismo de
la Técnica”. O programa que me foi apresentado partia justamente da análise da
obra de Ortega, A rebelião das massas.
Na época, os estudantes colombianos não queriam saber de Ortega. Achavam que o pensador espanhol era um burguês que falava para os burgueses, mas que não explicava nada da luta de classes que se vivia em escala latino-americana e mundial. Os meus alunos reagiram mal à sugestão de leitura da obra de Ortega contida no programa. O semestre transcorreu numa briga entre a maioria dos meus alunos, influenciados pelas ideias marxistas, que achavam a obra uma excrescência da mentalidade burguesa, e eu, que, como professor – embora simpatizante do marxismo -, devia zelar para que o programa fosse desenvolvido a contento. Resumo da ópera: a obra foi lida, mas nas provas abri espaço para que quem dissentisse da mesma fundamentasse os seus arrazoados numa bibliografia complementar, de autores marxistas, que lhes passei.
Jovem professor, ainda dependente das ideias de Karl Marx
(1818-1883), ignorava, por esse tempo, que Ortega era profundo admirador dos
liberais doutrinários franceses, os quais considero como autores do que de mais
interessante se escreveu no século XIX. Somente viria a ler sob esse viés
liberal a obra de Ortega anos depois, (em 1973-1974) quando, tendo abandonado o
marxismo sob a benfazeja influência do meu saudoso orientador no mestrado em
Pensamento Brasileiro da PUC-RJ, Antônio Paim (1927-2021), estudei as obras dos
doutrinários, notadamente as de François Guizot (1787-1874), a quem Georgi
Plekhanov (1856-1918), o grande estudioso russo da formação do marxismo,
considerava o pai da sociologia moderna e formulador do conceito de “luta de
classes”, que iria inspirar a obra de crítica econômica de Marx .
A rebelião das massas parte de um dado estatístico que foi
destacado por Werner Sombart:(1863-1941): as massas estão aí e ocupam todos os
lugares. Esse dado tinha sido identificado, antes, pelos liberais doutrinários,
como responsável pelo clima de massificação que já, desde finais do século
XVIII, era perceptível pela Europa afora, notadamente na França do período
revolucionário. O fato foi registrado por Henri-Benjamin Constant de Rebecque
(1767-1830), bem como por François Guizot, e se tornou dado central das
análises do discípulo deles, Alexis de Tocqueville (1805-1859). Para este, a
luta pela liberdade devia ser livrada no contexto democrático que constituiu o
clima dos novos tempos.
Em relação ao dado destacado por Sombart, escreve Ortega:
“Há alguns anos, o grande economista Werner Sombart destacava um dado muito
simples, que é estranho não estar presente para todos que se preocupam com os
assuntos contemporâneos. Esse dado tão simples é suficiente para esclarecer
nossa visão da Europa atual ou, pelo menos, dar-nos a pista para toda a sua
compreensão. O dado é o seguinte: desde o início da história europeia no século
VI até o ano de 1800 – portanto, no decorrer de doze séculos-, a Europa não
conseguiu ultrapassar a cifra de 180 milhões de habitantes. Pois bem: de 1800 a
1914 – ou seja, em pouco mais de um século – a população europeia cresceu de
180 para 460 milhões! Creio que o contraste destas cifras não deixa nenhuma
dúvida quanto aos dotes de proliferação do último século. Em três gerações, ele
produziu, de maneira gigantesca, uma pasta humana que, lançada como uma
torrente sobre a área histórica, a inundou. Repito que bastaria esse dado para
compreender o triunfo das massas e tudo quanto ele reflete e prenuncia. Por
outro lado, também deve ser somada a isso a parcela mais concreta referente ao
crescimento da vida já mencionado” [ob. cit., p. 80].
E conclui a respeito Ortega: “(…) Paralelamente, esse dado
mostra-nos que a admiração com que destacamos o crescimento de países novos,
como os Estados Unidos da América, é infundada. Ficamos admirados com seu
crescimento populacional, que em um século chegou a cem milhões de homens,
quando o maravilhoso é a proliferação da Europa. Eis aqui outra razão para
acabar com a ilusão de ter havido uma americanização da Europa. Nem sequer o
traço que poderia parecer o mais evidente para caracterizar a América – a
velocidade de crescimento de sua população – lhe é peculiar. A Europa cresceu
no século passado (XIX) muito mais que a América. A América foi feita pelo que transbordou
da Europa” [ob. cit., ibid.].
Vivemos, portanto, desde finais do século XVIII, tempos de
massificação. Nestes, as massas são conscientes da sua força. Já não é a
história o palco dos grandes heróis. As massas ocuparam o seu lugar. A respeito
do protagonismo das massas, escreve Ortega: “De repente a multidão tornou-se
visível, instalou-se nos lugares preferenciais da sociedade. Antes, não
existia, passava desapercebida, ocupava o fundo do cenário social; agora
antecipou-se às baterias, tornou-se o personagem principal. Já não há
protagonistas: só há coro” [ob. cit., p. 43].
Quem integra essa tal de “massa”? – Ortega responde: “A
massa é o conjunto das pessoas não especialmente qualificadas” [p. 44]. “Massa
é o homem médio (…). Massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor”
[p. 45]. No texto a seguir, relaciona “massa” com o império da vulgaridade: “A
característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a
coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte. Como se
diz nos Estados Unidos: ser diferente é indecente” [p. 48].
As massas se agitam quando sentem falta daquilo que
consideram “de direito” ou essencial, mas a sua agitação peca pela falta de
lógica. Destroem justamente o meio que lhes garantiria adquirir o de que
necessitam. Nas manifestações urbanas a que assistimos a diário, vemos as
massas tocando fogo nos ônibus para reclamar passagens mais baratas. Ou
destruindo escolas para exigir melhor educação. Uma “contradictio in terminis“,
diriam os escolásticos. A respeito, escreve Ortega: “nas agitações provocadas
pela escassez, as massas populares costumam procurar pão, e o meio que empregam
costuma ser o de destruir as padarias. Isto pode servir como símbolo do
comportamento que, em proporções mais vastas e sutis, têm as massas atuais para
com a civilização que as alimenta” [p. 91]. Esse comportamento obtuso provém de
uma tendência niilista decorrente do imediatismo que anima as massas. A
respeito, Ortega frisa: “Abandonada à sua própria inclinação, a massa, qualquer
que seja, plebeia ou aristocrática, tende sempre, no afã de viver, a destruir
as causas de sua vida” [p. 91, nota 2].
Esse niilismo decorre do fato de a massa se sentir
autossuficiente e dona da sua vida. “O homem massa – frisa Ortega – jamais
teria apelado para qualquer coisa fora dele se a circunstância não o tivesse
forçado violentamente a isso. Como as circunstâncias atuais não o obrigam, o
eterno homem-massa, de acordo com a sua índole, deixa de apelar e se sente
senhor de sua vida” [p. 95].
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com
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