O poeta Vinicius de Moraes.
Publicado originalmente no site EL PAÍS BRASIL, em 3 de
agosto de 2020
A história de Vinicius de Moraes, contada pela neta Mariana,
revela o artista que exaltou a alma brasileira
Em homenagem aos 40 anos de morte do poeta, a atriz e
cantora Mariana de Moraes resgata em curso as histórias por trás das canções e
poemas do avô, que fez o Brasil grande mundo afora
Por Joana Oliveira
Vinicius de Moraes (1913-1980) sempre escreveu canções,
desde muito jovem, mas o fazia às escondidas. Para um jovem poeta cultuado na
Academia, pegava mal ser compositor. “Era como se ele tivesse duas
personalidades que se ocultavam mutuamente, uma não contava que existia para a
outra”, comenta a atriz e cantora Mariana de Moraes, de 50 anos, neta do
Poetinha que cantou como ninguém o amor e a saudade. A primeira composição foi
feita aos 15 anos, em 1928, mas Loura ou morena só foi musicada em 1932, por
Haroldo Tapajós. Agora, em homenagem aos 40 anos de sua morte, Mariana resgata
as histórias por trás dessa e de outras letras e poemas do avô em um curso
online de quatro aulas. Em 25 de janeiro, aniversário da cidade de São Paulo,
ela iniciou as homenagens com um show cantando o repertório de Vinicius, que
pretendia transformar em álbum ainda neste ano. Mas a pandemia do novo
coronavírus atrasou os planos.
Ao longo de quase 30 anos de carreira, Mariana, que é filha
do fotógrafo Pedro de Moraes e da atriz Vera Barreto Leite, participou de
diversos projetos mundo afora sobre Vinicius e, ainda que até este ano não
tivesse gravado as músicas do avô, sempre debruçou-se sobre a obra dele. “Não
por ser neta, mas por ser uma fiel seguidora do João Gilberto, que foi o
primeiro e grande intérprete do Vinicius”, diz ela. Atriz de formação —e
discípula do Teatro Oficina de Zé Celso—, Mariana sempre mistura poesia,
histórias e música em seus shows. A oportunidade de preparar um curso sobre o
avô, que começa no dia 10 de agosto, deu-lhe a ideia de levar suas histórias
aos palcos, quando a quarentena acabar. “Quero contar as histórias dele, a
história das músicas dele e dos valores éticos que ele passou para a família,
sobre como viver a vida”.
Uma dessas histórias é sobre como o jovem poeta consagrado,
que recebeu uma bolsa de estudos para a Universidade de Oxford, conheceu aquele
com quem construiria quiçá a maior parceria do cancioneiro brasileiro: Tom
Jobim. Vinicius escreveu a peça O Orfeu da Conceição e moveu mundos e fundos
—pedindo empréstimos a amigos e endividando-se— com o sonho de encená-la no
Teatro Municipal. Enquanto buscava um compositor para o musical, conheceu Tom
Jobim. E o sonho deu certo. A peça foi apresentada durante três noites e entrou
para a história como a primeira vez em que 36 negros apresentaram-se no panteão
das artes cênicas brasileiras. O Orfeu da Conceição viria a se tornar o filme
Orfeu Negro (ou Orfeu do Carnaval), de 1959, dirigido pelo francês Marcel
Camus, que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e a Palma de Ouro em
Cannes.
“Em alguns de seus textos, Vinicius revela o desenvolvimento
dessa ideia de transpor o mito grego de Orfeu para a favela carioca e de ele
não ser um herói helênico que toca lira, mas um negro que toca violão”, conta
Mariana, que destaca a admiração de Vinicius por toda a cultura africana e
afrobrasileira. Não à toa, uma das aulas do seu curso será dedicada aos
afro-sambas que Vinicius compôs com o amigo Baden Powell. “Uma das grandes
bandeiras na vida de Vinicius era mostrar que a arte popular não é menor que a
arte erudita ou acadêmica e ousar unir ambas. A trajetória dele mostra como
essa poesia erudita se infiltrou no artista popular e fez com que a música no
Brasil ganhasse uma dimensão que nunca tinha tido”, diz Mariana.
Dessa fusão surgiu a bossa nova e sua santíssima trindade:
Vinicius, Tom e João Gilberto. “Essas e outras amizades são um capítulo muito
importante da vida dele. Todo mundo fala das nove mulheres que ele teve, mas,
na verdade, o que ele mais cultivou foram amigos, de todas as áreas”, afirma a
neta. De Pablo Neruda a Carybé, Manuel Bandeira, Rubem Braga, o mestre
Pixinguinha, até Carmen Miranda e o cineasta Orson Welles, quem conheceu em Los
Angeles, o primeiro posto de Vinicius de Moraes como adido cultural do
Itamaraty.
Foi precisamente depois de ele deixar a carreira de
diplomata, que exerceu entre 1943 a 1963, que Mariana conviveu mais tempo com o
avô, que morreu quando ela tinha 11 anos, no dia 9 de julho de 1980. “Quatro
anos antes disso, fui viver o exílio na França com meus pais. Foi justamente
nesse período que ele foi demitido do Itamaraty pela ditadura militar e ficou
livre para ser um artista de palco. É sua fase popstar”, lembra ela,
referindo-se aos shows que Vinicius passou a fazer no exterior. “Ele sempre me
levava aos shows que fazia em Paris e, pelo menos três vezes no ano, era a
única pessoa da família que eu encontrava. A lembrança que eu tenho é de um avô
muito amoroso”.
Mariana, que cantava com afinação desde pequena, era um dos xodós
do poeta. “Ele tinha o maior orgulho de mim porque eu cantava e era uma criança
afinada que sabia todas as músicas do João Gilberto”, ri ela, que lembra com
carinho de quando Vinicius lhe presenteou com um gravador para que ela
treinasse como cantora. Mariana fala com igual carinho da tia, Susana de
Moraes, primogênita de Vinicius. “Ela fez por mim o que ele teria feito, foi
uma grande amiga e conselheira”. Foi a tia quem aconselhou Mariana a não cantar
o repertório do avô enquanto não tivesse uma carreira consolidada. “Ela dizia
que primeiro eu tinha que me colocar no mundo e ser reconhecida pela minha
própria voz”, diz Mariana sobre a tia, para quem Vinicius compôs Valsa de
Eurídice, para celebrar seus 15 anos, muito antes de lançar-se oficialmente como
compositor.
Vinicius atemporal
Mariana ressalta que a figura de Vinicius de Moraes, assim
como sua obra, é atemporal, apesar de, segundo ela, “estar fora de moda”
atualmente no Brasil. “Os artistas do país estamos abandonados. A música
popular brasileira está abandonada no Brasil. É uma tristeza, porque o que a
música popular deu para o Brasil, como o futebol no esporte, foi uma
identidade. Desde o Cartola ao [Heitor] Villa-Lobos.”, lamenta ela, que critica
a falta de política cultural do Governo de Jair Bolsonaro.
A artista acredita que, se estivesse vivo hoje, o avô se
posicionaria, “com seu pragmatismo amoroso”, contra essa realidade. “Ele foi
importante para a carreira de praticamente todo mundo que faz música popular
brasileira hoje. Tenho certeza que, se estivesse aqui, estaria usando de seu
privilégio para colocar-se politicamente contra o atual panorama sociopolítico
do país, de fascismo, racismo, ignorância”, diz e logo acrescenta, saudosa:
“Como eu gostaria de ter tomado um porre com meu avô!”.
Mas, mesmo em meio à realidade menos romântica que as
canções do Poetinha, é também nas memórias do avô que Mariana encontra
paralelos e lampejos de esperança. “Achei outro dia um texto dele sobre a
Segunda Guerra Mundial, em que ele fala da dor daquele momento e chega a usar a
palavra quarentena ao referir-se à situação dos familiares dos soldados que
foram para a Guerra. Foi um momento difícil, mas que passou”. Como escreveu em
Chega de saudade, Vinicius de Moraes faz lembrar que o amor prevalece e que “a
distância não existe”.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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