Leandro Karnal em foto reproduzida do site Diário da Região
e
postada pelo blog para ilustrar o presente artigo
Publicado no blog A VARANDA, em 10 de junho de 2020
Os demônios de antigamente - LEANDRO KARNAL
ESTADÃO - 10/06
A crença na existência real do demônio e sua ação maléfica
unia intelectuais, reis e população
A vida corria tranquila na pequena Loudun, no interior da
França. A orgulhosa torre (Tour Carrée) da cidade já era velha de meio milênio
quando os Bourbons assumiram a coroa. O cotidiano modorrento seria abalado por
vários acontecimentos extraordinários.
Alguns anos antes dos fatos que descreveremos, foi nomeado
um padre para a paróquia de São Pedro e com um cargo na vizinha igreja da Santa
Cruz. Urbain Grandier era dotado de boa cultura, aparência agradável e um
incontrolável impulso de seduzir mulheres. Suas boas relações políticas o
livraram de algumas acusações graves de assédio às paroquianas.
O caldo começou a ficar mais denso: a região foi atacada por
uma peste (1632) e crescia a tensão entre protestantes e católicos em torno de
questões se a cidade deveria ou não manter seus muros, cuja demolição já tinha
sido ordenada pelo cardeal Richelieu. Vamos acrescentar uma outra personagem:
Joana de Belcier, descendente de uma pequena nobreza provinciana, dotada de um
leve defeito físico na postura. Após fracassar em um convento beneditino,
acabou integrando a ordem das irmãs ursulinas, em Loudon.
O lugar passa a viver estranhos acontecimentos sob a
liderança de Joana, agora com o nome religioso de Joana dos Anjos. Tudo começou
com a visão do fantasma do antigo confessor das religiosas. Depois, as freiras
apresentaram ataques histéricos e gritavam palavras obscenas para um público
escandalizado. As convulsões se multiplicam e vozes estranhas saíam das
gargantas das religiosas. O caso lembrava o precedente em Aix-en-Provence onde,
igualmente, freiras ursulinas tinham sido infectadas por espíritos malignos, em
1611. Quase toda a Europa (protestante, inclusive) vivia um surto de “caça às
bruxas” e a crença na existência real do demônio e sua ação maléfica unia intelectuais,
reis e a população em geral.
Joana dos Anjos acusou formalmente o padre Grandier de ser o
causador de todos os distúrbios no convento. O clérigo tinha um bom número de
inimigos e tinha se pronunciado contra a decisão do cardeal-ministro de demolir
os muros da cidade, aumentando o coro dos descontentes contra o Don Juan
clerical. O espetáculo da possessão coletiva das freiras era, agora, um tema
nacional. Diante de autoridades e interrogadores, as freiras rolavam no chão e
gritavam blasfêmias.
Urbain Grandier foi preso e julgado. Apareceu um pacto
diabólico, um documento concreto assinado por vários demônios e conservado até
hoje nos arquivos franceses. Os crimes, claro, foram todos comprovados. No dia
18 de agosto de 1634, com uma multidão que excedia a população local, o fogo
foi aceso em frente à igreja da Santa Cruz. O clérigo foi muito torturado e,
como era esperado, encontraram-se pontos insensíveis à dor e ao sangramento no
seu corpo, outro sinal evidente de que tinha selado um acordo com o Inferno. O
agente de Satanás convertera-se em carne carbonizada. Restava a possessão do
convento.
As freiras foram exorcizadas diversas vezes. O problema era
a grande quantidade de demônios. Expulsava-se um e surgiam vários outros que
diziam seus nomes e permaneciam no corpo das aflitas. Houve rivalidade entre as
ordens. Os capuchinhos foram substituídos por jesuítas na luta contra as
legiões. O exorcismo envolvia opiniões do cardeal Richelieu, dos juízes locais
e do bispo. Lutava-se pelas almas das ursulinas, lutava-se contra a ação dos
seres infernais e, acima de tudo, pelo triunfo do poder monárquico e católico
sobre a região. O caso é tão envolvente que a própria Joana dos Anjos é levada
à presença do rei Luís XIII e da rainha Ana de Áustria.
Um erudito e místico jesuíta, Jean-Joseph Surin, foi trazido
para participar do esforço de exorcismos. Conseguiu expulsar ainda mais
demônios, porém entrou em crise depressiva e descreveu que os demônios
retirados do corpo das freiras vinham para o seu. O religioso desenvolveu
tendências suicidas e descreveu como sentia uma entidade dentro dele. Em
janeiro de 1665, morreu Joana. Seus anos finais foram marcados pela obsessão de
virar santa. Imersa em afasia e penitências, marcada por estigmas pelo corpo, a
popular freira do século 17 faleceu de complicações respiratórias. A 22 de
abril do mesmo ano, o padre Surin também fechava os olhos definitivamente. Ele
havia trocado uma forte correspondência com a exorcizada.
O caso de Loudon foi descrito como histeria coletiva, jogo
político, esquizofrenia e fruto da “demonomania” moderna. Após o escândalo, os
juízes passaram a acreditar menos em possessões demoníacas, como defendeu
Robert Mandrou no controverso livro Magistrados e Feiticeiros na França do
Século 17 (ed. Perspectiva). O jesuíta Michel de Certeau escreveu uma análise
clássica: La Possession de Loudun, ainda sem versão em português. De Certeau
também explorou a escrita mística do padre Surin, seu colega de ordem. Freud
interessou-se pelas narrativas em texto de 1923. Aldous Huxley publicou o
romance Os Demônios de Loudun, em 1952. O livro inspirou uma ópera de Krzysztof
Penderecki. Jerzy Kawalerowicz fez um filme: Madre Joana dos Anjos. O inglês
Ken Russell dirigiu Vanessa Redgrave e Oliver Reed tratando do episódio. A
possessão inspirou o intelecto e as artes.
E os demônios? Ainda brilhariam em Salem, no fim do século
17. Depois iriam perder lugar para outras atrações. A histeria coletiva? Essa
sobreviveu e ainda assombra governantes e juízes. Ah se madre Joana dos Anjos
tivesse internet... É preciso manter a esperança... e a sanidade.
Texto reproduzido do blog: avaranda.blogspot.com
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