A cantora Adriana Calcanhotto. (Foto: Leonardo Aversa)
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
7 de junho de 2020
Adriana Calcanhotto: “A política cultural é inexistente no
Brasil”
Isolada em uma casa no meio da Mata Atlântica, a cantora e
compositora produziu e lançou o álbum ‘Só’. Em conversa com o EL PAÍS, ela fala
sobre a quarentena e os problemas do país
Por Joana Oliveira
Adriana Calcanhotto se propôs a escrever uma canção por dia
durante a quarentena, em uma brincadeira que chamou de “uma canção até o
almoço”, enquanto vive o período isolada em uma sua casa no meio da Mata
Atlântica, no Rio de Janeiro. O resultado foi o recém-lançado álbum Só, com
nove músicas inéditas totalmente escritas, gravadas e produzidas em 43 dias de
isolamento. Em formato quase de um diário de quarentena, com as datas e
horários anotadas para cada canção, o trabalho vai do samba ao funk, passando
por baladas e pitadas de música eletrônica. “O que me inspirou a compor foi a
própria quarentena, que me deu uma oportunidade de foco e de ócio criativo”,
diz ela em entrevista ao EL PAÍS.
A cantora e compositora, que já flertava com o que chama de
“um funk mais híbrido”, contou com Dennis DJ para fazer batidas que casam bem
com o tom lúdico de algumas das letras, como a de Bunda lê lê. Além dele, o
cantor e compositor Arthur Nogueira coproduziu Só, que também conta com Leo
Chaves, Rafael Rocha (percussão), Bruno Di Lullo (violão e baixo), Bem Gil
(guitarra), Zé Manoel (piano) e Chibatinha (guitarrista do grupo baiano
Attooxxa). “A experiência de gravar com cada músico em um lugar não é novidade
para mim. Posso estar, por exemplo, em Coimbra, dando aula e, ao mesmo tempo,
ouvindo uma mixagem que chega de um disco”, diz Adriana, que ministra, de março
a maio, o curso Como escrever canções na universidade portuguesa.
Em Só —dedicado a Moraes Moreira, que faleceu em abril—, ela
reflete sobre o momento em que todos “estamos amontoados e sós”, olhando uns
aos outros desde janelas, e também, de certa forma —mas jamais diretamente—
sobre o lugar do Brasil no meio da pandemia, com suas muitas crises sociais e
políticas. Na faixa O que temos, por exemplo, ela incluiu o barulho de um
panelaço contra o presidente Jair Bolsonaro.
Pergunta. Você dedica o álbum a Moraes Moreira. De que forma
ele e sua sonoridade influenciaram seu trabalho?
Resposta. O Moraes Moreira é o homem da alegria, ele foi um
dos maiores representantes da alegria em seu trabalho, nas canções, em sua
postura, em sua vida. Eu ouvia e via na televisão o Moraes Moreira desde que eu
era adolescente e depois tive a oportunidade de conhecê-lo, não intimamente,
mas nos encontramos por coincidência em aeroportos, programas de tevê... E
tínhamos um afeto muito profundo, uma identificação. Nós nos gostamos desde a
primeira vez que nos vimos pessoalmente. Acho que o fato de ele ter falecido no
meio da pandemia, embora não por covid-19, tornou tudo ainda mais triste pela
impossibilidade de despedida dele. O Brasil não teve a chance de se despedir do
representante da alegria. No momento em que vi isso, essa tristeza, quis
dedicar o álbum a ele, pensando nessa ideia oswaldiana de que a alegria é a
prova dos nove. É tudo por ele, mas é por isso também.
P. O que te inspirou a compor tanto durante a quarentena?
R. O que me inspirou a compor durante a quarentena foi a
própria quarentena, num certo sentido. Foi essa oportunidade que a quarentena
dá de foco, de estar em casa, de ter menos interrupções, de não ter que sair,
não ter que viajar. Isso propicia, para mim, um ambiente de concentração e ócio
criativo. Fora isso, o pano de fundo, as notícias de tudo o que está
acontecendo... Eu moro em uma casa no meio da mata e só posso saber do mundo
através das notícias. Esse eco do caos do mundo e, ao mesmo tempo, um tempo
vazio, de ócio, me deram a possibilidade de me expressar a respeito da
situação.
P. Como tem sido sua rotina nesses dias? Como você lida com
uma reclusão imposta pela força das circunstâncias?
R. Eu tenho um temperamento adaptável. Se não é para sair,
eu não fico questionando, não fico me frustrando nem criando armadilhas
internas. E quando eu estou em casa, eu adoro estar em casa, com os bichos, com
a natureza, com a mata. Eu não estou infeliz de estar aqui. Agora, mesmo que eu
não gostasse, estaria me adaptando a essa situação, em vez de me debater. Acho
que isso me ajudou a ter uma disciplina para compor. Durante essa época do ano,
de março a maio, quando dou aulas de composição em Coimbra, meu cérebro já está
condicionado a investigar a feitura, a construção e o alcance das canções. Acho
que isso também foi propício para a criação desse álbum.
P. Ainda está compondo outras canções? Tem escrito também
poesia ou outras coisas?
R. Eu não tenho escrito nem inventado nada que não sejam
canções. Eu vim no ritmo de uma canção por dia, nessa brincadeira que eu chamei
de uma canção até o almoço. Não sabia que estava fazendo um álbum, mas no
momento em que ficou claro para mim que era uma coletânea de canções da mesma
safra, comecei a trabalhar nos arranjos, a ouvir as faixas que chegavam, a
trabalhar propriamente na gravação do álbum, e aí esse impulso de composição
arrefeceu. Uma vez o disco pronto, as coisas encaminhadas, já voltei a compor.
No momento, atendendo a compromissos referentes ao álbum, fazendo algumas
lives, ainda não voltei àquele momento totalmente isolada, dentro do
estudiozinho, para poder compor uma música por dia. Mas não duvido que isso
volte a acontecer, porque, desde que o disco está pronto, já fiz três canções
novas.
P. Na apresentação do álbum, você agradece aos profissionais
de saúde e a “todos os trabalhadores da linha de frente na guerra contra o
vírus da ignorância”. Como avalia a situação do Brasil em meio à pandemia?
R. Não é nem minha avaliação, são os fatos: a situação do
Brasil em meio à pandemia é péssima. Temos as equipes de saúde, os médicos e
enfermeiros que estão dando tudo de si para salvar vidas, e a Presidência
pedindo para as pessoas saírem às ruas... Não estamos nada bem.
P. Você canta que estamos “amontoados e sós”. É do time que
acredita que a humanidade pode sair melhor da tragédia, que as pessoas podem
aprender empatia e solidariedade?
R. Sim, eu sou do time que escolhe acreditar que a
humanidade pode sair melhor, é uma oportunidade. Já vimos na história da
humanidade finais de epidemias e pestes que fazem com que as coisas sejam
vistas de outras maneiras, se iluminem. Há essa possibilidade e oportunidade de
as pessoas aprenderem solidariedade e civilidade. Acho muito difícil uma pessoa
que não tem empatia simplesmente aprender isso, mas existem as pessoas que acreditam
que a gente pode começar uma coisa nova... As pessoas dizem ‘vamos voltar ao
normal’, mas que normal? Não tinha nada normal, as coisas estavam péssimas. O
máximo que admito é que, quando voltarmos ao anormal, podemos, assim, inventar
alguma coisa nova.
P. Em O que temos, você incluiu o som de um panelaço contra
Jair Bolsonaro. O que pensa do governo brasileiro? Como avalia, por exemplo, a
política cultural, eclipsada por trocas constantes de líderes à frente da pasta
de Cultura em Brasília?
R. Eu não me sinto em condições de avaliar a política
cultural do Governo de Jair Bolsonaro porque não encontrei, não conheço, não
acho que exista essa política cultural. A primeira coisa seria voltar a pasta
ao status de ministério e não de secretaria. Mas não sou capaz de fazer essa
avaliação, porque penso que essa política é inexistente.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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