Contardo Calligaris: "Para muitos, sentir que a gente pertence a um
grupo é mais importante do que argumentar e debater".
Publicado originalmente no site [huffpostbrasil], em 8 de dezembro de 2019
Vivemos uma 'psicopatia difusa' na política brasileira, diz
psicanalista
Em entrevista exclusiva, Contardo Calligaris critica o
nacionalismo, reflete sobre a negação do estrangeiro e comenta as relações
conflituosas do Brasil contemporâneo.
By Amanda Mont'Alvão Veloso
Dor de amor, dor de rejeição, dor de desânimo. Queixas
semelhantes podem ser trazidas por diversas pessoas, mas cada vivência será diferente.
Décadas de prática no consultório não fizeram que o
psicanalista, ensaísta e escritor Contardo Calligaris deixasse de se
surpreender com as falas dos pacientes. Sua escuta é fundamentada no
imprevisível e singular que cada pessoa traz ao falar de seu sofrimento. Tanto
que uma de suas principais sugestões aos psicoterapeutas é que se mantenham
curiosos pelo humano.
Afinal, os humanos são variados, apoiados em crenças
distintas e afetados de maneira diversificada pelos eventos da vida. A falta de
sono que incomoda uma pessoa todas as noites pode ser a garantia de emprego
para um vigilante. A obsessão por detalhes que traz complicação à rotina de um
pode ser perfeitamente bem-vinda em uma tarefa meticulosa.
Dessa pluralidade de existências extraímos a riqueza de
nossas relações. Mas o que fazer quando a diferença é “caçada” como uma
inimiga, com incentivo ao seu apagamento? E como lidar com os conflitos
internos de cada um que se emaranham na convivência social, a ponto de
comprometer os laços?
Algumas das recomendações a profissionais de primeira viagem
estavam compiladas no livro Cartas a um jovem terapeuta, que ganhou nova edição
em 2019 pela editora Planeta, além de conteúdos inéditos. Mais do que
orientações específicas para a clínica, o psicanalista costura teoria e prática
em lições sobre escuta e acolhimento, o que interessa também a quem não é da
área.
Em entrevista ao HuffPost, Calligaris comenta o momento
político-social do País, as demonstrações de intolerância no dia a dia e o
desânimo que tem se abatido sobre muitos brasileiros. Italiano radicado no
Brasil, ele aborda os discursos nacionalistas crescentes em alguns países, a
rejeição a imigrantes e o quanto nós, enquanto humanos, nos desconhecemos e
somos estrangeiros em nossa própria casa.
Leia os principais trechos:
HuffPost Brasil: Como você vê o discurso de autocuidado
vigente na sociedade contemporânea, frequentemente associado ao consumo e a
tratamentos que prometem rápida solução?
Contardo Calligaris: A tradição terapêutica da cultura
ocidental é dupla. Tem o diálogo com o outro (desde o amigo, o sábio, o
confessor, o diretor de consciência até os psicoterapeutas), e também tem a
autoajuda, o exame de consciência, a leitura… Então, a autoajuda não é uma
invenção recente. E há obras de autoajuda que são ótimas. Agora, sempre houve e
haverá pessoas vendendo um biotônico para tratar câncer ou uma prece para curar
as dores do amor.
No livro Cartas a um jovem terapeuta, você afirma que nenhuma
psicoterapia deveria almejar a dependência do paciente. Por que a autonomia do
paciente é tão importante para o tratamento psicanalítico?
A autonomia é um dos ideais da modernidade. Nós mal
conseguimos imaginar alguém que esteja bem e não seja autônomo. Concordo que é
um ideal um pouco ilusório; sempre somos autônomos com a ajuda de alguns
outros, mas uma terapia, seja ela qual for, que almejasse a dependência seria
facilmente uma vigarice. Venha me ver (e me pague) a cada dia, para sempre...
Seu livro enfatiza a importância da curiosidade pelo humano
como premissa para se tornar um psicoterapeuta, bem como os cuidados com as
crenças e convicções pessoais. Temos visto a demanda, entre pacientes, por
profissionais específicos, como psicólogos e psicanalistas feministas ou LGBTs,
apenas citando dois exemplos. Em paralelo, observamos também a criação de
linhas psicoterápicas religiosas ou com algum atributo identitário. O que essas
ofertas e demandas têm a dizer sobre como lidamos com o sofrimento?
Na hora de escolher um terapeuta, entendo que a gente
procure uma pessoa que, à primeira vista, pareça ter uma experiência de vida
“parecida” com a nossa. É como se a gente quisesse garantir que o terapeuta
terá empatia conosco. E também garantir que não seremos desrespeitados. Agora,
em tese, para o terapeuta, isso não é relevante: ele/ela não tem uma identidade
de grupo e ainda menos uma crença, seja ela qual for, que intervenham na escuta
ou na direção do tratamento. É possível, claro, que um agitador ache que a cura
para um deprimido seja se tornar militante político. Ou que um pastor ache que
a cura da psicose seja exorcismo e conversão. Mas essas duas pessoas,
consideradas como terapeutas, seriam charlatães.
As notificações de suicídio demonstram aumento nas taxas
entre os jovens brasileiros. A quais fatores você atribui este cenário?
Em geral, acho a adolescência uma época infernalmente
difícil, uma espécie de moratória em vista de quê? De um vestibular? De uma
vida profissional morna e que o adolescente frequentemente acha ou imagina
chata? Também acho que nossos adolescentes desejam pequeno, são razoáveis além
da conta.
O noticiário brasileiro com frequência estampa declarações
de lideranças que invalidam ou tripudiam o sofrimento alheio. Estamos vivendo
uma época de perversidade na política e nas relações?
Eu diria psicopatia, mais do que perversidade, mas o
resultado é o mesmo. A psicopatia é a indiferença diante do sofrimento dos
outros e desrespeito de qualquer regra. Uma psicopatia difusa, no Brasil, não
deveria nos surpreender: a cultura mal reconhece a ideia de bem ou interesse
públicos — só entende bem e interesse pessoal ou familiar. Nesse quadro, a lei
não é internalizada, não se transforma numa exigência interna — ela é sempre
apenas uma exigência externa que se trata de burlar assim que for possível. O
triunfo dessa herança nacional se dá quando o Executivo parece legislar por
interesse familiar ou pessoal de quem legisla (tipo, abolir radares de controle
de velocidade porque o presidente levou multas, ou acabar com proibição de
pesca em viveiros pela mesma razão).
Ao mesmo tempo, percebemos um efeito de desespero e revolta
a cada “notícia ruim”, de forma que muitas pessoas sentem a necessidade de se
alienar do que está acontecendo como forma de sobrevivência. O que pode ser
feito para preservar um “mínimo de saúde mental” diante da realidade que soa
absurda?
O mais difícil, para mim, é lidar com declarações públicas
(por exemplo, do presidente) cuja lógica interna me é profundamente estrangeira.
Estamos acostumados a não compreender a natureza ou, em
geral, os efeitos do acaso e da má sorte. Mas não estamos acostumados a lidar
com um outro que é tão aleatório quanto um aguaceiro e que, eventualmente, nos
agride sem que a gente entenda por quê.
Nesse caso, a tentação é grande de fazer de conta que
estamos em outro mundo — mudar-se para Portugal (ou Miami) ou, então, viver na
nossa bolha.
Por que tem sido tão difícil (até mesmo inviável) conversar
no dia a dia, especialmente com quem pensa diferente?
Para muitos, sentir que a gente pertence a um grupo é mais
importante do que argumentar e debater — você imagina uma verdadeira conversa
sobre quem poderia jogar melhor entre torcidas de futebol opostas?
O que seria necessário, pensando na sociedade brasileira,
para retornarmos a uma “convivência pacífica” no dissenso?
De fato, chegar a uma “convivência pacífica” não parece ser
a esperança de ninguém. Ao contrário, uma maioria quer ditar regras aos outros,
constrangê-los, limitar sua liberdade, ameaçá-los. Politicamente, o que seria
necessário seria o surgimento de um liberalismo laico clássico, que no Brasil
não é uma tradição.
O conservadorismo tem avançado sobre as pautas de costumes e
teve uma relevância decisiva nas últimas eleições brasileiras. A moral e a
religião de alguns têm sido usadas para definir, para toda a população, o que é
permitido e o que não é, inclusive com o reforço de preconceitos. Como você vê
a ascensão deste discurso e qual a importância da singularidade?
Esse discurso começou dois milênios atrás. A gente podia
esperar que, com o século 18, ele estivesse perdendo influência. Talvez esteja,
e apenas estejamos assistindo a alguns sobressaltos finais. Seja como for, o
cristianismo inventou algo que não estava no judaísmo e ainda menos no
paganismo: a sanha missionária. Além de serem exclusivistas (não haverá outro
deus fora de mim), o cristianismo, e o islã a seguir, se constituem como
religiões que querem conquistar e converter. Estamos ainda nessa. Claro, houve
a grande tradição libertina, as Luzes do século 18, houve 1968 e a liberação
dos costumes nas últimas décadas, mas a luta contra a sanha missionária será
longa, longa...
Vemos esforços para combater fake news por meio da checagem
de notícias e de argumentos, mas a adesão dos leitores parece resistir a
qualquer tática racional. A pós-verdade se relaciona com uma espécie de
“inflação” do mundo interno daqueles que compartilham de uma crença? Qual a
melhor forma de lidarmos com este cenário de versões declaradamente mentirosas?
Pegue o artigo “Bias” (viés) da Wikipedia em inglês: você
achará uma lista impressionante (embora ainda incompleta) dos vieses que
atrapalham nossa capacidade racional de pensar e conhecer. A internet nos
apresenta a cada instante pretextos para ceder a nossos vieses e preconceitos
contra os fatos ou a razão.
Com frequência, as fake news mais estapafúrdias nos oferecem
explicações do mundo mais satisfatórias porque mais completas (e, claro, mais
próximas de nossas convicções prévias). Como resistir?
Acredito no trabalho da imprensa e talvez no da Justiça -
embora, nesse caso, seja muito difícil a
Justiça agir sem ameaçar a liberdade de expressão.
A noção de “estrangeiro” frequentemente é restrita a
questões geográficas. Poderia falar um pouco sobre o estrangeiro que habita
cada um de nós?
Sempre achei um pouco ridícula qualquer forma de
nacionalismo (ou, pior ainda, de patriotismo). Em geral, quem precisa se
defender contra os estrangeiros está sobretudo tentando se defender contra o
estrangeiro dentro dele. É uma regra sem exceções em psicologia dinâmica. O
homofóbico, por exemplo, sempre está se defendendo contra sua própria
homossexualidade mal reprimida. O moralista está sempre se defendendo contra
suas fantasias orgiásticas.
Enfim, o mundo talvez fosse um pouco mais habitável se todos
fôssemos capazes de encontrar, reconhecer e respeitar os estrangeiros, a
começar por aqueles que estão dentro da gente.
Texto e imagens reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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