‘Nove e Meia Semanas de Amor’: a história de uma filmagem
que ultrapassou todos os limites Bofetadas e ataques de pânico em um dos filmes de maior
sucesso dos anos 80
Publicado originalmente no site [brasil.elpais.com], em 11 de outubro de 2019
Mickey Rourke e Kim Basinger só tinham permissão de se ver
durante as filmagens...
Por Juan Sanguino
Kim Basinger saiu chorando de seu teste de elenco para Nove e Meia Semanas de Amor (1986). Depois de telefonar a seu agente para gritar que tinha sido a pior experiência de sua vida, que se sentia humilhada e não queria saber de jeito nenhum daquele filme, dirigiu até sua casa sem parar de chorar. Mas, ao chegar, encontrou 24 rosas vermelhas esperando por ela com um bilhete assinado pelo diretor do filme, Adrian Lyne (Inglaterra, 1941), e seu coprotagonista, Mickey Rourke (Nova York, 1952). O jogo perverso tinha acabado de começar, dentro e fora da tela.
Kim Basinger saiu chorando de seu teste de elenco para Nove e Meia Semanas de Amor (1986). Depois de telefonar a seu agente para gritar que tinha sido a pior experiência de sua vida, que se sentia humilhada e não queria saber de jeito nenhum daquele filme, dirigiu até sua casa sem parar de chorar. Mas, ao chegar, encontrou 24 rosas vermelhas esperando por ela com um bilhete assinado pelo diretor do filme, Adrian Lyne (Inglaterra, 1941), e seu coprotagonista, Mickey Rourke (Nova York, 1952). O jogo perverso tinha acabado de começar, dentro e fora da tela.
Naquela altura, Kim Basinger (Geórgia, EUA, 1953) era
conhecida como a Bond Girl de 007 – Nunca Mais Outra Vez ou a garota Playboy de
fevereiro de 1983. Nessa capa, a atriz aparecia com uma expressão inerte, uma
juba indomável e um relógio de ouro, como se seu triunfo fosse uma questão de
tempo. O produtor de Louco de Amor (um filme de 1985 em que Basinger é uma das
protagonistas) a definia como "um cruzamento entre Marilyn Monroe,
Brigitte Bardot e Judy Holliday com o talento de Julie Christie".
O diretor de Louco de Amor, Robert Altman, o corrigiu: “Não
é a próxima Marilyn Monroe. É a próxima Meryl Streep”. E o que Kim Basinger
tinha a dizer sobre tudo isso? “Havia algo mais em Marilyn Monroe: terror. Ela
sempre parecia aterrorizada por dentro”, refletiu a atriz no The New York
Times. Ela sabia do que falava.
Rourke agarrou o braço de Basinger com força. Apesar de suas
súplicas, não a soltou enquanto ela gritava, chorava e batia nele. Rourke
finalmente largou o braço, mas em seguida lhe deu uma bofetada. Ela sofreu um
ataque de pânico
Essa obsessão sexual de Hollywood por Kim Basinger fez com
que o diretor Adrian Lyne a escolhesse ("por causa de sua vulnerabilidade
especial") como a primeira opção para Nove e Meia Semanas de Amor, baseada
na autobiografia de Ingeborg Day. A escritora relatou seu relacionamento,
depois de fugir de seu casamento e de sua vida como professora em Wisconsin
para se refugiar no anonimato de Manhattan, com um desconhecido que a
introduziu no sexo sadomasoquista até que ela, após nove semanas e meia de
submissão física e emocional, decidiu abandoná-lo para se salvar. O estúdio
queria uma atriz mais popular, por isso Jacqueline Bisset, Isabella Rosselini e
Kathleen Turner fizeram o teste de elenco. Mas ninguém passou no teste como
Kim, a única que se recusou a se submeter.
Quando chegou o dia de filmar a última cena do roteiro
(que
acabaria sendo removida da montagem final), a personagem
de Basinger deveria
estar no limite da resistência física e emocional
Quando entrou no quarto, Lyne mal falou com ela e só dava
instruções para Mickey Rourke. Na cena, ele lhe jogava notas no chão e ela
precisava fingir ser uma prostituta que as pegava enquanto andava de quatro e, depois,
acabava se despindo e se entregando à personagem do ator quando ele finalmente
ordenava.
"Foi muito sexual e muito estranho", recordaria a
atriz, que tinha 33 anos quando o filme foi rodado, "só queria me
levantar-me e sair correndo".
Quando deixou o quarto, furiosa, Lyne ligou para o agente de
Basinger para lhe dizer que ela havia conseguido o papel. “Acontece que Adrian
queria que eu reagisse exatamente como reagi, porque a personagem de Elizabeth
era assim. Uma mulher que não entrava no jogo, mas ingênua e transformada
depois por um homem no que ele queria dela. Essa é a história verdadeira de
Nove e Meia Semanas de Amor”, concluiu Basinger.
O filme se baseia em um livro de Ingeborg Day (foto),
que
narra a própria experiência ao manter um relacionamento
com um estranho que a
introduz nas técnicas sadomasoquistas.
Durante as filmagens, Lyne seguiu, em suas próprias
palavras, "quebrando" a atriz. As cenas seriam filmadas em ordem
cronológica, para que Rourke e Basinger experimentassem a degeneração sexual de
suas personagens em tempo real e eles foram proibidos de falar um com o outro
longe das câmeras. “Ela precisava ter medo dele”, explicou o diretor, “se
saíssem para tomar um café juntos, perderíamos essa tensão. No 'teste de
elenco' [de Basinger] surgiu tamanha hostilidade e tamanha energia sexual entre
eles que eu não queria que desenvolvessem uma relação sem que eu estivesse
presente. Ela deveria viver à beira do terror. Eu queria que essas dez semanas
de filmagem fossem como as nove semanas e meia da relação”.
Toda vez que uma cena não funcionava, Lyne chamava Rourke de
lado e o instruía, sem dirigir a palavra a Basinger. Os operários da filmagem
começaram a comentar se o sadismo de Lyne estava indo longe demais e
reconheceram em uma reportagem do The New York Times que se sentiam
desconfortáveis diante da manipulação emocional, da raiva ao desespero, que
Basinger estava sofrendo para que a câmera “os captassem cruamente”.
A experiência de Mickey Rourke foi muito diferente.
"Adrian é um ótimo diretor de atores", disse Rourke. E acrescentou:
"Durante as filmagens, ficou muito preocupado comigo, certificando-se de
que dormia o suficiente, que comia de modo saudável e que me sentia confortável
com as pessoas ao meu redor". Lyne também não incomodava Rourke quando o
ator colocava Rebel's Yell, de Billy Idol, em um volume ensurdecedor antes de
cada cena, para o desespero da equipe de filmagem.
Quando chegou o dia de filmar a última cena do roteiro (que
acabaria sendo removida da montagem final), a personagem de Basinger deveria
estar no limite da resistência física e emocional. Mas a atriz apareceu nas
filmagens mais bonita do que nunca, como recordaria Lyne. Na cena, o amo
propunha um jogo a sua escrava: tomar pílulas para dormir, uma a uma, para ver
até onde ela seria capaz de chegar para satisfazê-lo.
"Ela [Basinger] precisava ter medo dele [Rourke]",
explicou o diretor Adrian Lyne. “Se eles saíssem para tomar um café juntos,
perderíamos essa tensão. No 'teste de elenco' [de Basinger] surgiu tamanha
hostilidade e tamanha energia sexual entre eles que eu não queria que
desenvolvessem uma relação sem que eu estivesse presente"
Na verdade, as pílulas eram balas, mas ela não sabia. Ao se
dar conta de que tinha estado prestes a cometer suicídio por seu amante,
decidia abandoná-lo sem olhar para trás. “A cena não estava funcionando. Kim
tinha uma aparência fresca como uma rosa, adorável demais", contou Lyne,
“então tivemos que quebrá-la". Depois de receber as anotações do diretor,
Rourke agarrou o braço de Basinger com força. Apesar de suas súplicas, não a
soltou enquanto ela gritava, chorava e batia nele. Rourke finalmente largou o
braço, mas em seguida lhe deu uma bofetada. Ela sofreu um ataque de pânico. O
diretor exclamou: "Vamos filmar a cena agora".
Quando perguntaram a Adrian Lyne onde estavam os limites do
abuso em relação a um ator, ele explicou, como se se tratasse de um
relacionamento sadomasoquista, que os limites são definidos pelos
participantes. “Se não pudesse suportar, seria perceptível diante da câmera.
Ela ficaria louca. Desmoronaria.” Mas, e se a cena precisa justamente que a
personagem desmorone? “Então, é legítimo. Você está fazendo isso pelo filme.”
“Depois de terminar o filme, não queria ver ninguém que
tivesse participado das filmagens. Se chegasse a encontrar com o cara que me
trazia o café, eu o teria matado”, disse a atriz. Lyne, por sua vez,
argumentava que a atriz sabia que no fundo a estava ajudando com sua tortura
passivo-agressiva: “Não foi agradável, mas foi útil. Kim é um pouco como uma
menina. É inocente. Isso é parte de seu atrativo. Ela se tornou sua personagem
durante dez semanas, não estava interpretando. Para deixá-la irritada, eu
ficava agressivo com ela, e ela ficava agressiva comigo. Mickey também tinha de
assustá-la de propósito. Kim não é uma intelectual, não lê livros. Na realidade,
não atua, apenas reage, uma qualidade que Marilyn Monroe também tinha”. Essa
imagem da atriz se encaixa com a traçada por Alec Baldwin, que foi seu marido,
quando garantia, sem ironia, que o que mais gostava nela era “sua ingenuidade,
nunca se dá conta de nada”.
Basinger, de certo modo, concordava com Lyne (além de
reconhecer que, de fato, não lia livros porque tinha muito pouca capacidade de
atenção), explicando que, se um artista deseja alcançar a excelência precisa
atravessar a dor. “Seria difícil decidir se voltaria a fazer [o filme], mas, no
final, teria que dizer sim. Houve momentos em que quis abandonar tudo, em que
me perguntava se [Adrian Lyne] era um homem doente ou se todos estávamos
doentes por nos prestar a isso. Mas, no final, enfrentei meu medo e passei por
isso”, confessou a atriz, a meio caminho entre uma artista comprometida com sua
vocação até as últimas consequências e uma mulher com síndrome de Estocolmo.
Durante a promoção do filme, Basinger descrevia as filmagens
como "um exorcismo, emocionalmente penoso, mas também libertador",
que a fez se sentir como "um nervo exposto" durante dez semanas e que
esteve a ponto de comprometer seu casamento com o maquiador Ron Snyder-Britton.
(Ela o acabaria abandonando em 1988, já transformada na atriz mais famosa do
planeta, para viver uma aventura com Prince).
"Todas as atrizes deveriam experimentar algo assim, saí
mais forte do que em toda a minha vida", concluiu Basinger. Seus ataques
de pânico, que tinham começado na escola e continuam a mantê-la reclusa em sua
casa por longos períodos, se transformaram em uma agorafobia que a levou a
descrever a cerimônia em que ganhou o Oscar por Los Angeles – Cidade Proibida,
com um bilhão de pessoas ouvindo seu discurso, como a pior noite de sua vida. A
vulnerabilidade que Adrian Lyne tinha visto nela era real, mas muito menos sexy
do que parecia diante da câmera.
Adrian Lyne se especializou em 'thrillers' de conteúdo
erótico.
Além de 'Nove meia semanas de amor" dirigiu 'Atração fatal'.
Nove e Meia Semanas de Amor levou 18 meses em montagem, em
meio a rumores de que nenhum estúdio distribuiria um filme tão sexualmente
perturbador. Dos 1.000 espectadores que assistiram às exibições de teste, 960
deixaram a sala antes do fim. A cena dos soníferos foi eliminada, de acordo com
Adrian Lyne, porque o público "odiava Mickey por fazer isso, Kim por
deixarem fazer isso com ela, a mim por filmá-la e o filme inteiro". Também
ficaram de fora um ménage à trois com uma prostituta, um estupro simulado e uma
cena de sexo na qual Basinger estava disfarçada de um homem com bigode.
No final, esse "último tango em Manhattan" estreou
como um drama romântico com mais erotismo de videoclipe do que pornografia. Sua
cena mais sensual foi o strip-tease de Basinger, a contraluz e ao ritmo de You
can leave your hat on, de Joe Cocker Você, que acabava com Rourke dando-lhe de
comer tudo o que restava na geladeira (cerejas, morangos, mel,
pimenta-jalapenho). A crítica o definiu como "monótono e adolescente"
e como "condenado ao fracasso". O público o ignorou nos Estados
Unidos, mas na Europa o filme causou sensação (com uma montagem que incluía
todas as cenas eróticas) e os videoclubes o converteram em clássico. Em Paris,
Nove e Meia Semanas de Amor ficou cinco anos em cartaz.
Em 2015, Kim Basinger contou que só voltou a ver Adrian Lyne
uma vez na vida: “Alguns meses atrás cruzei com ele em uma rua em Beverly
Hills. Eu lhe disse 'aquele filme mudou minha vida'. Ele respondeu 'a minha
também'. Então, ele entrou em seu carro sem dizer mais nada. Não é lindo?”.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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